9 Maio 2018

EM RESUMO

  • a Matrix estigmatiza jovens negros do sexo masculino, com o género musical grime a ser considerado um indicador-chave de possível pertença a gangue
  • polícias criam contas falsas nas redes sociais para se tornarem “amigos” de suspeitos
  • apelo ao presidente da Câmara de Londres, Sadiq Khan, para desmantelar a Matrix a não ser que a base de dados passe a cumprir as normas
  • Gabinete do Comissário de Informação, a autoridade britânica de proteção de dados, deve abrir inquérito público

 


 

“Há claramente um problema enorme de violência no crime com armas brancas atualmente em Londres, mas a Matrix de gangues não é a resposta. É antes parte de um enfoque inútil e racializado no conceito de gangues.” – Kate Allen, diretora da Amnistia Internacional Reino Unido.

A Matrix de gangues da Polícia Metropolitana de Londres é “a ferramenta errada para o problema errado”, alerta a Amnistia Internacional no relatório publicado esta quarta-feira, 9 de maio, muito crítico da pouco conhecida base de dados de mapeamento de gangues.

Este relatório, com 55 páginas e intitulado Trapped in the Matrix: Secrecy, stigma and bias in the Met’s Gangs Database (Encurralados na Matrix: Secretismo, estigma e preconceitos na base de dados de gangues da Polícia Metropolitana), destaca profunda apreensão face à forma como as pessoas são registadas na base de dados, sobre a forma como a informação nela contida é partilhada com outros organismos – como associações e cooperativas de habitação e escolas – e sobre os efeitos adversos que ser listado na Matrix pode ter para os jovens negros do sexo masculino, os quais são desproporcionalmente visados.

Os investigadores da Amnistia Internacional entrevistaram mais de 30 profissionais que usam a base dados de gangues, incluindo dentro das forças policiais e noutras organizações, assim como membros da comunidade e jovens afetados pela Matrix.

A Matrix de gangues

A base de dados de mapeamento de gangues da Polícia Metropolitana de Londres, conhecida como Gangs Matrix, foi criada em 2012 integrada na resposta altamente politizada aos motins de Londres de 2011. Nela são listadas pessoas como “gang nominals” (membros de gangues) e a cada indivíduo é atribuída uma classificação automática de grau de violência com as cores verde, âmbar ou vermelho.

Em outubro de 2017 estavam listadas 3 806 pessoas na Matrix. Mais de três quartos (78%) dos identificados na Matriz são negros – número que é desproporcional aos próprios dados da Polícia Metropolitana londrina, os quais mostram que apenas 27% dos responsáveis por grave violência juvenil são negros. A pessoa mais nova na Matrix tem 12 anos e 99% dos listados na base de dados são do género masculino.

A diretora da Amnistia Internacional Reino Unido, Kate Allen, frisa que “há claramente um problema enorme de violência no crime com armas brancas atualmente em Londres, mas a Matrix de gangues não é a resposta”. “É antes parte de um enfoque inútil e racializado no conceito de gangues. Posto de forma simples: é a ferramenta errada para o problema errado”, prossegue.

“Há claramente um problema enorme de violência no crime com armas brancas atualmente em Londres, mas a Matrix de gangues não é a resposta.”

Kate Allen, diretora da Amnistia Internacional Reino Unido

“Todo o sistema discrimina racialmente, estigmatiza os jovens negros com base no tipo de música que ouvem e nos seus comportamentos nas redes sociais, e perpetua preconceitos raciais com potencial impacto em todas as dimensões das suas vidas”, critica a diretora da Amnistia Internacional Reino Unido.

Kate Allen avança ainda que “alguns agentes da polícia têm vindo a comportar-se como se estivessem no faroeste, fazendo suposições erradas de que podem criar perfis falsos e, de forma secreta, tornarem-se ‘amigos’ das pessoas online para as monitorizar sem que precisem de obter os mandados de busca apropriados”.

“O presidente da Câmara de Londres tem de desmantelar a Matrix, a não ser que consiga pô-la de acordo com os padrões internacionais de direitos humanos”, insta ainda esta responsável da Amnistia Internacional.

A “palavra G”: um enfoque inútil e racializado do conceito de gangue

O conceito de “gangue” e de membro de gangue, ou “nominal”, é vago e mal definido, e baseado em noções racializadas, é apurado no relatório Trapped in the Matrix.

Agentes da polícia expressaram aos investigadores da Amnistia Internacional preocupações sobre a confluência da criminalidade de gangues com grave violência juvenil, apesar de, na verdade, não existir uma tão significativa sobreposição dos dois como presumido. O Gabinete da Câmara de Londres para o Policiamento e Criminalidade apurou que mais de 80% dos incidentes criminais em Londres envolvendo armas brancas e dos quais resultaram ferimentos em vítimas com menos de 25 anos foram considerados não terem nenhuma ligação aos gangues.

Um agente da Polícia Metropolitana declarou à Amnistia Internacional: “Os gangues são, na maior parte, uma falsa questão… a fixação nesse termo é inútil a todos os níveis”.

A ambiguidade do rótulo “gangue”, e o vasto grau de discrição dado aos agentes para o atribuírem, traduz-se em que o chavão de gangue é usado aleatoriamente. Na prática é conferido de forma desproporcionada a homens e jovens negros, até mesmo quando o perfil individual problemático é em tudo o resto igual ao de uma pessoa branca que não é assim rotulada. Esta prática reflete um padrão histórico de policiamento excessivo das comunidades negras, asiáticas e de minorias étnicas (as BAME).

“Todo o sistema discrimina racialmente, estigmatiza os jovens negros com base no tipo de música que ouvem e nos seus comportamentos nas redes sociais.”

Kate Allen, diretora da Amnistia Internacional Reino Unido

Stafford Scott, da organização de direitos civis The Monitoring Group, com sede em Londres e que trabalha sobre o racismo na conduta policial, sustenta que a Matrix de gangues é contraproducente e corrói ainda mais a confiança nas polícias assim como a sua legitimidade.

Este defensor de direitos humanos explicou à Amnistia Internacional: “A nossa comunidade precisa de um serviço de polícia que pare os homicídios, mas a comunidade não se envolverá com a polícia se continuarem a abordá-la de forma opressiva. A Matrix reafirma à comunidade que existe um policiamento com racismo institucionalizado. E não funciona, apenas marginaliza ainda mais este grupo de miúdos”.

“A nossa comunidade precisa de um serviço de polícia que pare os homicídios, mas a comunidade não se envolverá com a polícia se continuarem a abordá-la de forma opressiva.”

Stafford Scott, The Monitoring Group

Entrar na Matrix

O relatório Trapped in the Matrix” expõe a existência de uma abordagem caótica e inconsistente na forma como as pessoas são listadas na Matrix, com grandes variações de bairro para bairro de Londres. Este relatório alerta que o limiar para se ser incluído na Matrix é muito baixo, sendo necessárias apenas duas submissões de “informações verificáveis” sem nenhuma orientação nem critérios claros, ao mesmo tempo que é atribuída ampla discrição tanto à polícia como a variados outros organismos para o fazerem.

“Alguns agentes da polícia têm vindo a comportar-se como se estivessem no faroeste, fazendo suposições erradas de que podem criar perfis falsos e, de forma secreta, tornarem-se ‘amigos’ das pessoas online para as monitorizar.”

Kate Allen, diretora da Amnistia Internacional Reino Unido

Os chamados “organismos parceiros” – em que se incluem associações e cooperativas de habitação, centros de emprego e serviços juvenis ao nível dos bairros – também podem apresentar nomes para serem incluídos na Matrix de gangues.

Pessoas que nunca estiveram envolvidas em crime violento são registadas de forma rotineira na Matrix dos gangues. Até ter sido vítima de um crime que a polícia relacione com um gangue é visto pela Polícia Metropolitana de Londres como um indicador de possibilidade de se ser “subsequentemente atraído a envolvimento em criminalidade grave” – o que pode resultar em essa pessoa ser registada na Matrix.

Monitorização das redes sociais e profiling racial de jovens negros

Aquilo que é apurado no relatório Trapped in the Matrix” inspira sérias preocupações sobre a prática de monitorização do comportamento dos jovens online para determinar possível afiliação a gangues. A partilha de vídeos no YouTube e outra atividade nas plataformas sociais são usadas como potenciais critérios para adicionar nomes à Matrix, com vídeos musicais de grime que mostrem nomes ou sinais usados por gangues a serem considerados como um particular indicador possível de provável afiliação a gangues.

Investigação feita pela Amnistia Internacional inspira também preocupações de que as pessoas sejam assim identificadas segundo um perfil e monitorizadas pelas Unidades de Gangues da polícia, apenas devido à subcultura a que pertencem e às pessoas com as quais se relacionam online.

“A Matrix reafirma à comunidade que existe um policiamento com racismo institucionalizado. E não funciona, apenas marginaliza ainda mais este grupo de miúdos.”

Stafford Scott, The Monitoring Group

Esta investigação descobriu casos em que agentes da polícia criaram perfis falsos nas redes sociais para monitorizar pessoas que percecionaram como possíveis membros de gangues. Esta conduta, em alguns dos casos, pode violar a Lei britânica de Regulamentação dos Poderes de Investigação (RIPA). Os investigadores da Amnistia Internacional receberam testemunhos de que em pelo menos uma ocasião não foi obtido mandado ao abrigo da RIPA antes de serem postas em marcha operações secretas de investigação. Um responsável da polícia chegou mesmo a declarar que a Polícia Metropolitana pensou não ser necessário esse mandado porque o perfil criado estava ligado a um modem camarário.

O relatório da Amnistia Internacional conclui que, no caso de polícias se tornarem “amigos” ou de qualquer outra forma criarem uma relação online com pessoas potencialmente consideradas relevantes nas investigações, é claramente exigida uma autorização (mandado) para a obtenção de informações por fontes secretas (vulgo informadores).

A organização de direitos humanos insta o Gabinete do Comissário de Informação (autoridade britânica de proteção de dados) a rever com carater de urgência as operações e o uso que é feito da Matrix pela polícia e outros organismos.

Partilha da Matrix com outros organismos

O relatório Trapped in the Matrix” apurou que uma panóplia de organismos não policiais tem acesso à Matrix, e desta forma o estigma da suspeita ou da culpa ligada à inclusão na base de dados pode seguir as pessoas nas suas interações com uma vasta variedade de serviços locais, incluindo centros de emprego, associações e cooperativas de habitação e escolas.

A partilha de tais dados pode implicar resultados negativos em outras dimensões na vida das pessoas, como o seu acesso a habitação. Um ex-responsável dos serviços de habitação e um membro da Unidade de Gangues de Bairro descreveram que a emissão de ordens de despejo é uma tática frequentemente usada para pôr pressão sobre um “nominal”.

Tal prática afeta não apenas quem foi identificado na Matrix mas também, e em particular na habitação, os seus irmãos e outros familiares. Uma vez mais, estes impactos negativos afetam desproporcionalmente os homens e adolescentes negros.

A Amnistia Internacional vê com especial apreensão o facto de a partilha ampla da Matrix com organismos parceiros da Polícia Metropolitana de Londres dar lugar a numerosos conflitos com a Lei de Proteção de Dados e a respetiva regulação e Código de Conduta.

Encurralados na Matrix

Responsáveis reportaram uma pressão generalizada por parte da polícia e das Unidades de Gangues para “manter as pessoas dentro” da Matrix, no caso de posteriormente poderem cometer um crime violento.

O relatório Trapped in the Matrixrevela que os procedimentos envolvidos na revisão de inclusão de uma pessoa na Matrix são desadequados dada a sensibilidade dos dados que ali são registados, incluindo o de crianças de apenas 12 anos.

“O presidente da Câmara de Londres tem de desmantelar a Matrix, a não ser que consiga pô-la de acordo com os padrões internacionais de direitos humanos.”

Kate Allen, diretora da Amnistia Internacional Reino Unido

A Amnistia Internacional exorta o Gabinete do Comissário de Informação a abrir urgentemente uma investigação completa e pública à Matrix e à forma como a base de dados é usada, incluindo se cumpre as leis de proteção de dados. A organização de direitos humanos insta também o presidente da Câmara de Londres, Sadiq Khan, a responder às preocupações expressas no relatório, com o objetivo de desmantelar a Matrix caso não seja possível pôr a base de dados em concordância com os padrões de internacionais de direitos humanos.

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