Entre a invisibilidade e a discriminação

Se eu fosse biologicamente homem, tenho a certeza que teria muito mais oportunidades mesmo sendo migrante. (…) O ponto é: eu não sou a pessoa que querem que eu seja.

Marco, de 28 anos, é um homem trans que vive em Lima há quatro anos. Veio de Caracas para o Peru em busca de melhores condições de vida, à medida que se deterioraram as condições sociais, económicas e políticas, já que se tornava gradualmente insustentável viver no seu país. Sabia que não seria fácil começar do zero e rapidamente chegou à conclusão de que as oportunidades para refugiados LGBTIQ+ são ainda mais limitadas e que as portas se fecham mais facilmente.

Não tendo tido tratamento hormonal ou cirurgia, Marco acredita que o seu aspeto físico – fora da norma – é usado para o discriminar.

As pessoas (…) esperam que eu seja mulher ou homem e parece que eu não encaixo em nenhuma destas categorias. E se depois disso eu ainda digo que sou da Venezuela, bom… não imaginam a dificuldade que é.

As razões para fugir são inúmeras: falta de segurança, violência, ameaça constante aos direitos humanos e a escassez de alimento e de medicamentos.  

A discriminação aumenta, está interligada e leva a que as pessoas LGBTIQ+ que chegam da Venezuela a países como a Colômbia e o Peru sofram uma constante negação dos seus direitos. 

Apesar do acrónimo LGBTIQ+ ser usado para se referir a pessoas com orientações sexuais diversas, identidades de género e características sexuais, isto não quer dizer que este seja um grupo homogéneo. Pelo contrário, cada uma destas letras contém uma variedade de experiências combinada com a classe social, a cor da pele, situação migratória. Mais ainda, a expressão de género, que faz parte destas várias identidades, tem um papel muito importante em relação à forma através da qual uma pessoa é tratada em sociedade pelo comportamento, maneira de vestir, gestos, etc. que são convencionados como masculinos ou femininos. Quem não se enquadra nesta polaridade é visto com suspeição. 

De acordo com a pesquisa de organizações como a Caribe Afirmativo na Colômbia ou a Presente no Peru, a segregação sentida por estas pessoas é o resultado da interseção entre o seu estatuto de refugiados/as e a sua orientação sexual, identidade de género e/ou expressão, ou características sexuais.  

Sem direitos, não há vidas dignas

A Colômbia e o Peru são os principais países para onde se dirigem as pessoas que estão a fugir da Venezuela em busca de proteção internacional, com cerca de 1.8 e 1.3 milhões de pessoas respetivamente, de acordo com a plataforma R4V.

Para as pessoas LGBTIQ+, que historicamente já vêm de grupos marginalizados, estes dois países aparentam ser destinos exequíveis.  

Preconceito contra a diversidade na Colômbia e no Peru

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Tanto a Colômbia como o Peru, ratificaram vários tratados internacionais que as obrigam a garantir a defesa e a promoção dos direitos humanos para todas as pessoas sem discriminação, incluindo pela sua nacionalidade, orientação sexual ou identidade de género. No entanto, o machismo sistémico nestas sociedades, a xenofobia e a violência com base em preconceito contra a diversidade sexual e de género, criam um ambiente hostil e perigoso.    

De acordo com a Colômbia Diversa, há proteção legal suficiente neste país para a população LGBTIQ+, mas o maior obstáculo é a sua implementação efetiva, em particular para os refugiados. Por exemplo, apesar de o novo programa de regularização de migração, conhecido como Estatuto de Proteção Temporário para Migrantes da Venezuela, permitir que as pessoas trans obtenham documentos que reflitam a sua identidade de género, elas têm de passar por uma série de procedimentos extraordinários com custos adicionais e que limitam o acesso livre aos documentos. A Fundación Karisma levantou preocupações sobre os elementos do processo que ameaçam “os princípios de não-discriminação e inclusão que os sistemas de identificação têm de cumprir de forma a apoiar o respeito pelos direitos humanos”, em especial sobre as barreiras no acesso ao direito de reconhecimento legal desta população.  

Mais ainda, tanto a experiência das pessoas LGBTIQ+ como das pessoas refugiadas na Colômbia não pode ser dissociada do conflito armado, especialmente nas áreas fronteiriças, onde o risco de tráfico e de aumento de violência afeta aqueles cuja expressão de género é diversificada e diferente das normas binárias convencionais. Atravessar a fronteira via “trochas” (travessias de fronteira irregulares) é aparentemente a melhor opção para muitas das pessoas trans que enfrentam a possibilidade de serem ridicularizadas ou violadas nos pontos oficiais, avisa o Caribe Afirmativo. Assim, viajam sem documentação, o que as coloca em situações de grande perigo e gera ainda mais obstáculos no acesso à regularização.  

No Peru, como é sublinhado no relatório da ONG Presente, os direitos das pessoas LGBTIQ+  são os mais afetados no acesso a proteção internacional e regularização migratória, saúde, habitação e condições dignas de trabalho. Adicionalmente, neste país, o casamento igual e o direito a ser reconhecido legalmente como identidade trans ainda aguardam aprovação.

Um enorme obstáculo para os Venezuelanos na Colômbia e no Peru é o acesso a cuidados de saúde. Os sistemas de segurança social têm deficiências em termos de acesso efetivo e atempado pela população nacional, o que é exacerbado para quem não tem um estatuto migratório regularizado ou por quem não pode pagar por serviços privados. No caso da população LGBTIQ+, os impedimentos mais documentados estão relacionados com a incapacidade de se registar no sistema de saúde, o que afeta muito em particular aqueles que vivem com doenças crónicas, incluindo o HIV. A recusa deste direito põe em risco as suas vidas quando confrontados com uma falta de cuidados em tempo útil. 

No que refere a tratamento hormonal, por exemplo, os migrantes trans não têm apoio médico adequado. As pessoas trans são expostas a um conjunto de processos perigosos: “nós temos amigos que foram envenenados, pessoas que morreram com ataques cardíacos porque fizeram coágulos sanguíneos por automedicação, amigos trans que ficaram com problemas no útero devido ao uso de testosterona.” Na Colômbia, Caribe Afirmativo confirmou que os obstáculos no acesso a acompanhamento e a tratamentos médicos à população trans leva a procedimentos de transformação corporal arriscados e até mesmo fatais.  

'Quando é óbvio que és diferente, tudo é mais difícil'

Negociar a sua identidade pública de forma a superar situações de risco ou de discriminação é algo que muitos refugiados LGBTIQ+ experienciam. Algumas estratégias incluem esconder a sua identidade e expressão de género o mais possível em situações de risco ou de potencial discriminação, diz Pía Bravo, da direção da Presente:

Se eu não me adapto à situação em que me encontro, incluindo questionar a minha própria identidade, eu não vou conseguir sobreviver

Para Vanessa, uma pessoa queer não-binária a viver em Lima, a aparência e a pronúncia definem as relações com as pessoas com quem interagem. Evitaram falar em público durante o primeiro ano no Peru porque não queriam ser identificadas como venezuelanas. A xenofobia pode surgir a qualquer momento, e por isso estão gratas por terem criado um círculo de amigas e colegas feministas em quem confiam para as receber. 

Pessoas com expressão de género diversificada não são as únicas que experienciam discriminação. Pessoas lébicas e gay, que em muitos casos são menos visíveis sob esta perspetiva, lidam com a rejeição quando procuram casa enquanto casais do mesmo sexo ou não têm os seus filhos reconhecidos como tal em resultado desta relação não ter legislação na Venezuela, nem na Colômbia e no Peru. Assim, alguns abrigos geridos por instituições religiosas são lugares de revitimização para pessoas LGBTIQ+, de acordo com as organizações consultadas.  

Depois de encararem inúmeras barreiras a uma vida digna, algumas pessoas trans decidiram interromper o seu processo de transição, especialmente enquanto tentam alcançar estabilidade financeira. “Algumas mulheres trans tiveram de voltar à sua expressão de género masculina de forma a não terem de lidar com tanta violência em termos de migração e de integração social. Temos casos de pessoas que querem interromper o seu tratamento hormonal, não porque não haja um enquadramento normativo de proteção, mas sim pela escala de violência contra elas”, explica Giovanni Molinares, investigador na Caribe Afirmativo. Este “regresso ao armário” foi também identificado no Peru, como assinalado no supramencionado relatório da ONG Presente 

Marco por vezes prefere resignar-se e aceitar quando dizem que é uma mulher como forma de se proteger:

Eu não conseguiria lidar com uma situação de violência como aquelas que alguns dos meus amigos trans viveram com assédio e violência da polícia. Eu não acho que sobrevivesse a um ataque. Eu não estou psicologicamente preparado para encarar isso.

  

Obstáculos para denunciar

Para mulheres trans que são profissionais do sexo, como Priscilla, que viveu em Cúcuta por cinco anos, a violência nesta cidade fronteiriça expoõe-na a lutas territoriais, ameaças e ataques físicos por colombianos e venezuelanos. Estas disputas deixam-nas numa situação de tremenda vulnerabilidade, onde a impunidade é a norma. “Eles matam-te e ninguém sabe disso e ninguém ouviu nada sobre isso”, disse. 

Nestes casos não há opção de fazer uma denúncia, devido ao medo em relação às autoridades ou simplesmente ao facto de estas terem de de gerir burocracia num tempo de que não dispõem. A desconfiança das autoridades, especialmente da polícia, é baseada nas diferentes formas de violência que encaram, em especial as mulheres trans. Apesar de Priscilla acreditar no ditado “Palavras loucas, ouvidos moucos”, admite que estes insultos a magoam. “Às vezes tento sublimar, mas não, quando começas a ouvir as palavras, afeta-te um pouco mentalmente.” 

Os venezuelanos adotam estratégias para evitar estas situações nos países de destino, de forma a tentar obter um estatuto migratório regularizado, mas esta não é uma garantia absoluta contra a discriminação e violência. O medo da xenofobia leva-os a adotar atitudes passivas em relação aos abusos de autoridade. 

Augusto cresceu a acreditar que é melhor evitar o contacto com as forças de segurança pública por medo da arbitrariedade; mesmo tendo protestado sempre pelos seus direitos na Venezuela, pararam de o fazer na Colômbia. Disseram que há umas semanas um agente da polícia parou-os e, quando ouviu a pronúncia, lhes tirou o telemóvel para verificar se era roubado. “Não podem fazer isso, quero dizer, na Venezuela é ilegal, mas o que posso fazer se sou venezuelano, um imigrante? Levaram o meu telemóvel e não me disseram nada. 

Entre janeiro de 2020 e maio de 2021, Colombian Ombudsman’s Office analisou 88 casos de pessoas da Venezuela com diversas identidades de género, incluindo dezenas de casos de discriminação contra profissionais do sexo, abuso policial e violência institucional. O relatório apela à implementação de uma perspetiva de género nas investigações do Ministério Público para os casos de violência devido a preconceito – algo que já tem estado em falta até agora. 

Partir em busca da liberdade e de uma família que se escolhe

Vários venezuelanos LGBTIQ+ relataram que a discriminação e a perseguição que viveram nos seus países, a par da busca pela liberdade para desenvolver os seus planos de vida enquanto pessoas diversas, levou a que se fixassem noutros países.  

Molinares acredita que as pessoas jovens deixam a Venezuela porque os seus parceiros já o tinham feito ou estão no processo para o fazer de forma a que se possam libertar de pressões das suas famílias. “Quando começam a falar a partir de um lugar de diversidade sexual, querem sair deste círculo familiar fechado e frequentemente repressivo. A opção mais rápida e barata é ir para a Colômbia onde já têm uma rede de pessoas”, diz. 

Agora que é pai, Marco está a pensar na sua nova família. O seu parceiro tem um filho pequeno, então como mãe e pai o casal tem de fazer os possíveis para que a criança não seja exposta à situação precária em que se encontram. Tudo se tornou mais difícil desde que a pandemia desestabilizou tudo.   

A ideia de partir novamente está na sua cabeça. Mas regressar à Venezuela não é nunca referido como uma opção.

Alguns amigos contaram-lhe que a sociedade uruguaia é mais progressiva e tolerante face à diferença e isso, sabe, mais que nunca, que é um fator indispensável para uma vida com dignidade. 

O país dos seus sonhos, no entanto, é a Islândia: “Penso que é pequeno e isolado o suficiente para alguém como eu”. 

Laura Vásquez Roa,  é antropóloga e jornalista independente colombiana e colaborou com a Amnistia Internacional para esta investigação