5 Julho 2021

Mais de um milhão de pessoas no noroeste da Síria corre o risco de ficar sem comida, água, vacinas para a COVID-19 e medicação indispensável se o Conselho de Segurança da ONU (CSNU) não renovar a autorização para a entrega transfronteiriça de ajuda humanitária pelas Nações Unidas, a partir de Bab al-Hawa, na fronteira turca. Nas próximas duas semanas, o CSNU deverá decidir se vai prorrogar a resolução.

Em 2020, a China e a Rússia vetaram resoluções do CSNU que teriam permitido que dois outros pontos de travessia – Bab al-Salam e al-Yarubiyah – permanecessem abertos. Desta forma, Bab al-Hawa é a última e única passagem existente para a ajuda transfronteiriça da ONU. Os trabalhadores humanitários no noroeste da Síria afirmam que o seu encerramento teria um impacto devastador na zona noroeste, onde, atualmente, essa ajuda chega a 85% das pessoas com necessidades, todos os meses.

“Devido ao abuso do poder de veto pela Rússia – e também pela China no ano passado -, Bab al-Hawa é agora a única linha de socorro remanescente para civis no noroeste da Síria. Encerrá-la terá consequências humanitárias catastróficas, como vimos no ano passado com o encerramento da passagem de al-Yarubiyah”, mencionou Diana Semaan, investigadora para a Síria da Amnistia Internacional.

“Devido ao abuso do poder de veto pela Rússia – e também pela China no ano passado – Bab al-Hawa é agora a única linha de socorro remanescente para civis no noroeste da Síria”

Diana Semaan, investigadora para a Síria da Amnistia Internacional

“Apelamos ao Conselho de Segurança que reautorize o acesso humanitário através de Bab al-Hawa, e que reabra as travessias em Bab al-Salam e al-Yarubiyah. É lamentável que a postura política no Conselho de Segurança esteja a impedir a resposta internacional a uma das piores crises humanitárias do nosso tempo.”

A 22 de junho, o ministro dos negócios estrangeiros da Rússia, Sergey Lavrov, deu a entender que a Rússia bloqueará a renovação da passagem de Bab al-Hawa, insistindo que são possíveis rotas alternativas de prestação de ajuda humanitária e que o papel da Turquia não é essencial.

A Amnistia Internacional entrevistou 20 trabalhadores humanitários que prestam assistência humanitária no norte da Síria. Estes trabalhadores detalharam à organização como o encerramento de al-Yarubiyah, a passagem fronteiriça do Iraque para o nordeste, conduziu a uma grave escassez de assistência e material médico.

Referiram que a reabertura da passagem de Bab al-Salam seria crucial para assegurar a prestação de ajuda de forma sustentada, atempada e rentável. Acrescentaram ainda que depender apenas de Bab al-Hawa é arriscado, caso sejam retomadas as hostilidades, devido à sua proximidade com as linhas da frente. Além disso, o transporte de ajuda leva mais tempo e é mais caro, uma vez que Bab al-Hawa é longe da zona rural a norte de Alepo, que costumava receber ajuda de Bab al-Salam.

A Síria e os seus aliados procuram colocar um ponto final no mecanismo transfronteiriço, estabelecido pelo CSNU em 2014 e, para isso, requerem que a ajuda seja veiculada pela capital, Damasco.

Todas as partes do conflito sírio têm o dever de, ao abrigo do direito humanitário internacional, assegurar acesso pleno e livre da ajuda humanitária imparcial, para os civis que dela necessitam. O governo sírio deve garantir que os civis, em todas as partes da Síria, recebem a ajuda humanitária de que carecem para sobreviver.

 

Apoio incontornável da ONU

Entre dezembro de 2019 e março de 2020, os governos sírio e russo lançaram uma violenta ofensiva militar no noroeste da Síria, que forçou quase um milhão de pessoas a fugir de suas casas e agravou uma situação humanitária, já de si aterradora. Segundo o Programa Alimentar Mundial da ONU, 40.7% dos deslocados em 2020 estão, atualmente, em insegurança alimentar.

Toda a ajuda transfronteiriça está agora limitada à travessia de Bab al-Hawa, e 50% da ajuda e dos serviços fornecidos através desta única passagem são providenciados pelas Nações Unidas. As organizações humanitárias sírias e internacionais indicaram ainda, à Amnistia Internacional, que o apoio da ONU é insubstituível.

“Anos de hostilidades e deslocações forçadas em massa conduziram a um desastre humanitário no noroeste da Síria. Que a Rússia esteja sequer a considerar remover a última linha de socorro da região é absolutamente cruel”, afirmou Diana Semaan.

Que a Rússia esteja sequer a considerar remover a última linha de socorro da região é absolutamente cruel

Diana Semaan

A 23 de junho, o secretário-geral da ONU, António Guterres, alertou que não renovar a autorização para Bab al-Hawa traria “consequências devastadoras”.

Os trabalhadores humanitários declararam que dependiam das Nações Unidas para abastecimentos médicos essenciais e para o aprovisionamento de 70 a 80% da assistência alimentar e água.

A ONU desempenhou um papel crucial na entrega de vacinas ao noroeste da Síria, sendo que, em abril de 2021, a região recebeu o primeiro lote de 53.800 doses de vacinas contra a COVID-19. Todos os trabalhadores humanitários com os quais a Amnistia Internacional falou, confirmaram que, se a resolução não for renovada em julho, a região não receberá o seu segundo lote de vacinas através da fronteira. Mesmo que fossem entregues vacinas a partir de Damasco ou da Turquia, sem a assistência técnica e logística das Nações Unidas, as organizações locais não seriam capazes de gerir o seu armazenamento e distribuição.

Um trabalhador humanitário na Turquia relatou que comprar vacinas para a COVID-19 é “praticamente impossível”, dada a procura global. Acrescentou que, sem o apoio da ONU, não conseguiriam garantir um armazenamento seguro.

Não renovar a resolução significaria também que as ONGs locais perderiam o financiamento da ONU para os seus programas, especialmente os de proteção, educação e saúde, que são tão essenciais como a assistência para salvar vidas.

Um trabalhador humanitário sírio em Idlib partilhou com a Amnistia Internacional: “Cinquenta por cento do nosso financiamento vem das Nações Unidas, o que significa que o número de pessoas que alcançamos será reduzido a metade se a resolução não for renovada […] Conseguem imaginar o impacto?”

 

Crise sanitária no nordeste sírio

Muitas destas preocupações estão já a concretizar-se no nordeste sírio, que é predominantemente controlado pela Administração Autónoma curda, onde cerca de 1.8 milhões de pessoas dependem da assistência humanitária para sobreviver. Em janeiro de 2020, a passagem em al-Yarubiyah fechou, terminando com a prestação de ajuda transfronteiriça das Nações Unidas a partir do Iraque.

As operações da ONU por al-Yarubiyah deveriam ser substituídas por fornecimentos vindos de Damasco, sob controlo do governo, mas a quantidade de ajuda – em particular a assistência médica que chegava à região – diminuiu drasticamente, devido a obstáculos burocráticos e restrições de acesso pelo governo sírio. As organizações humanitárias perderam igualmente o financiamento das Nações Unidas, ficando com dificuldades em manter as suas operações.

Mais de um ano após a pandemia, a região continua a sofrer de sérias privações na área da saúde, nomeadamente falta de testes, financiamento insuficiente para infraestruturas de combate à COVID-19, e dificuldades na aquisição de oxigénio. De acordo com os trabalhadores humanitários, pelo menos nove instalações sanitárias apoiadas por ONGs estão em risco de encerrar. As ONGs têm sido incapazes de assegurar o fornecimento contínuo de medicações específicas para o tratamento de diabetes, infeções cardiovasculares e bacterianas, bem como para o tratamento após uma violação e kits de saúde reprodutiva – abastecimentos que, anteriormente, eram providenciados pela OMS e pelo FNUAP através da fronteira.

Os trabalhadores humanitários partilharam também que a falta de um mecanismo de supervisão, ou responsabilização, torna impossível saber se a ajuda médica da ONU, fornecida a responsáveis do governo sírio no nordeste, está a ser distribuída a instalações sanitárias na região. As autoridades sírias têm um longo histórico de desvio e obstrução da assistência humanitária.

“A perceção de que o governo sírio pode substituir a ajuda da ONU é absurda. Não só seria impossível ao governo igualar a escala do apoio transfronteiriço prestado, como as autoridades são conhecidas por bloquearem sistematicamente o acesso de ajuda humanitária”, afirmou Diana Semaan.

As autoridades [sírias] são conhecidas por bloquearem sistematicamente o acesso de ajuda humanitária”

Diana Semaan

Segundo os trabalhadores humanitários, nenhuma ajuda da ONU chegou às cidades de Kobani e Menbij desde o encerramento de al-Yarubiyah, em consequência das restrições governamentais. Estas cidades, com uma população conjunta de cerca de 350.000 pessoas, dependem, em grande parte, do apoio de organizações humanitárias internacionais e da Administração Autónoma, que são conseguem ir ao encontro de todas as necessidades da população.

Uma profissional de saúde em Menbij destacou a incapacidade de tratar doenças crónicas tais como cancro, talassemia e diabetes, e a escolha forçada entre pacientes, devido à escassez de provisões. Acrescentou que ainda não era claro se Menbij e Kobani seriam incluídas na distribuição de vacinas para a COVID-19.

“É fundamental que as três passagens – por Bab al-Hawa, al-Yarubiyah e Bab al-Salam – sejam reautorizadas pelo Conselho de Segurança por, pelo menos, 12 meses, como qualquer avaliação justa da situação humanitária, com urgência, requer”, disse Diana Semaan.

 

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