10 Maio 2022

No último ano, a diminuição de ajuda internacional à região noroeste da Síria deixou cerca de 3.1 milhões de pessoas, das quais 2.8 milhões de deslocados internos, a enfrentar uma crise de saúde, já que os hospitais e outras instalações médicas foram desafiados a operar com baixos recursos, referiu a Amnistia Internacional.

Na região noroeste do país, que se encontra sob controlo do grupo armado de oposição Hay’at Tahrir al Sham, as instalações médicas dependem por completo do financiamento da comunidade internacional para prestar serviços de saúde e fornecer medicamentos gratuitos. A redução global da assistência internacional à Síria tem sido uma realidade e, nos últimos dez meses, a ajuda internacional alocada ao setor da saúde decresceu mais de 40%.

Nos últimos dez meses, a ajuda internacional alocada ao setor da saúde decresceu mais de 40%

“É escusado dizer, particularmente após dois anos de pandemia, que os sistemas de saúde são serviços fundamentais para a sobrevivência da população. A queda acentuada do seu financiamento, no ano passado, traduziu-se imediatamente no encerramento de hospitais e serviços essenciais, conduzindo milhões de sírios – que já tanto sofreram com conflito e violência – a lutar pelo acesso a medicamentos e a cuidados de saúde que lhes são imprescindíveis”, declarou Lynn Maalouf, diretora regional adjunta para o Médio Oriente e Norte de África na Amnistia Internacional.

“Os doadores internacionais reunidos em Bruxelas esta semana devem priorizar a garantia de financiamento adequado para a saúde e outros serviços vitais, uma vez que milhões de pessoas enfrentam a terrível perspetiva de lhes ser negado o acesso a cuidados de saúde em plena crise. O direito universal à saúde deve ser protegido. Isto significa que as pessoas possam ter acesso aos serviços de saúde quando necessário, sem se preocupar com os custos financeiros”.

“O direito universal à saúde deve ser protegido. Isto significa que as pessoas possam ter acesso aos serviços de saúde quando necessário, sem se preocupar com os custos financeiros”

Lynn Maalouf

A Amnistia Internacional entrevistou oito médicos e profissionais de saúde, quatro pessoas que recentemente procuraram cuidados médicos e quatro trabalhadores humanitários. Todos eles descreveram como os cortes de financiamento levaram a uma escassez de recursos e medicamentos que, por sua vez, provocaram uma diminuição das operações e serviços vitais.

O Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) divulgou que apenas 25% dos fundos necessários para o setor de saúde da Síria tinham sido assegurados em dezembro de 2021, em comparação com os 67% em julho de 2021. De acordo com a Direção de Saúde de Idlib, dez dos seus 50 hospitais – incluindo seis hospitais de ginecologia e pediatria, 12 centros de saúde primários e três centros médicos especializados -perderam o financiamento em 2022.  Outras instalações de saúde com contratos mais longos para os próximos meses, ou anos, estarãotambém em risco de encerramento, caso os seus contratos não sejam renovados.

 

Redução da capacidade e fornecimentos colocam saúde e vidas em risco

A falta de trabalhadores, medicamentos, equipamento e capacidades operacionais reduzidas obrigaram os hospitais a reduzir os seus serviços, colocando em risco a vida das pessoas. Quatro gestores hospitalares partilharam à Amnistia Internacional que as suas instalações enfrentam um risco iminente de encerramento se o financiamento não for assegurado com urgência.

“Antes dos cortes de financiamento em dezembro de 2021, costumávamos receber cerca de 500 pacientes, ambulatórios e internados, por dia. Hoje, só conseguimos receber 10% desse número, uma vez que suspendemos todos os serviços exceto o tratamento básico na sala de urgências”, revelou o administrador de um hospital de obstetrícia e pediatria.

“Antes dos cortes de financiamento em dezembro de 2021, costumávamos receber cerca de 500 pacientes, ambulatórios e internados, por dia. Hoje, só conseguimos receber 10% desse número”

Relato do administrador de um hospital

Num outro hospital, também de obstetrícia e pediatria, o seu administrador declarou que foi necessário encerrar a unidade de cuidados intensivos neonatais e deixar ativas apenas quatro das oito incubadoras. Descreveu ainda um incidente angustiante que ocorreu no início deste ano, após os cortes de financiamento, quando não pôde oferecer apoio respiratório a uma criança que precisava de um ventilador: “Os seus pais imploraram-me por ajuda, mas não tive outra alternativa senão recusá-los”.

Outro médico partilhou à Amnistia Internacional como a escassez de serviços de saúde estava a ameaçar vidas: “Este ano, um paciente com um ataque cardíaco foi levado à pressa para a nossa unidade de emergência. Não tínhamos oxigénio para um ventilador, por isso tentámos transferi-lo para outro hospital numa ambulância, mas ele faleceu antes de lá chegar”.

Num hospital que perdeu o financiamento em agosto de 2021, um médico partilhou uma história semelhante: “Em janeiro, recebemos um bebé de cinco meses na unidade de emergência com desnutrição grave e insuficiência respiratória. Necessitava de apoio em cuidados intensivos, mas não tínhamos lugar para si devido à nossa reduzida capacidade e falta de profissionais. Intubámos o bebé na unidade de emergência e prestámos apoio respiratório manual durante quatro horas, enquanto tentávamos encontrar um lugar para si noutro hospital. Infelizmente, não conseguimos encontrar nenhum e ele faleceu”.

“Intubámos o bebé na unidade de emergência e prestámos apoio respiratório manual durante quatro horas, enquanto tentávamos encontrar um lugar para si noutro hospital. Infelizmente, não conseguimos encontrar nenhum e ele faleceu”

Relato de um médico

Todos os médicos e pessoas que recentemente procuraram cuidados médicos entrevistados pela Amnistia Internacional declararam ter visto uma escassez de medicamentos essenciais, em particular para doenças crónicas. Um médico referiu ainda que o seu hospital tinha tido bastantes dificuldades em obter anestésicos.

Uma parteira relatou que a falta de medicamentos dissuadiu as mulheres de procurarem cuidados pré-natais: “As mulheres disseram-me que não iriam até um centro de saúde que não lhes oferecesse os medicamentos necessários de forma gratuita. Por vezes, até os suplementos mais básicos para mulheres grávidas, como o ácido fólico, não se encontram disponíveis”.

Uma mulher que tinha dado à luz recentemente partilhou à Amnistia Internacional: “Não tinha dinheiro para comprar os medicamentos que o médico me receitou, por isso não os consegui adquirir. O hospital costumava fornecer-nos esses medicamentos antes de perder o financiamento e termos de os pagar”.

A falta de financiamento significa também que os profissionais desaúde, cujos salários eram abrangidos pelos contratos de ajuda, trabalham agora simultaneamente em várias instalações para garantir um rendimento suficiente. Outros profissionais de saúde não foram pagos devido à falta de financiamento. Sete profissionais de saúde referiram ainda à Amnistia Internacional que trabalham sem remuneração há meses.

 

Cuidados de saúde inacessíveis

O encerramento de hospitais, juntamente com a redução dos serviços e o elevado custo dos serviços de saúde privados, tornam o acesso aos cuidados de saúde extremamente difícil para muitas pessoas no noroeste da Síria. Os pacientes têm agora de percorrer distâncias mais longas para encontrar um hospital ou centro médico. O transporte público é frequentemente limitado e, para muitos, o custo dos transportes é incomportável.

O pai de uma criança que sofre de asma mencionou: “Há algum tempo, o meu filho teve um ataque de asma. Como é habitual, levei-o rapidamente a um hospital próximo, mas descobri que o hospital perdeu o financiamento. Na sala de urgências, o médico disse-me que o meu filho necessitava de ser urgentemente internado. Tive de pedir dinheiro emprestado para o levar num carro particular para um hospital de Idlib, a cerca de 60 quilómetros de distância”.

Uma mulher grávida, que tinha estado a receber cuidados pré-natais num hospital local, teve muitas dificuldades em encontrar um hospital onde pudesse dar à luz, depois de as instalações locais terem suspendido as suas operações devido aos cortes no financiamento.

“Eu estava a sofrer muito. O meu marido perguntou a várias pessoas até alguém lhe dizer que existia um lugar disponível em Jisr Al-Shughour, a uma hora de distância. Fomos até lá e, só no local, verificámos que existiam apenas parteiras disponíveis, não um obstetra, quando eu necessitava de fazer uma cesariana. Por esta razão, tive de ir a um hospital privado. Pedimos dinheiro emprestado e pagámos com cada cêntimo que tínhamos para cobrir os custos”.

“Tive de ir a um hospital privado. Pedimos dinheiro emprestado e pagámos com cada cêntimo que tínhamos para cobrir os custos”

Relato de uma mulher grávida

“Os doadores têm o poder de retificar esta situação devastadora. As suas decisões têm um impacto direto no acesso das pessoas aos cuidados de saúde, numa altura em que estão a sofrer mais do que nunca. O que está a acontecer no noroeste da Síria, neste momento, é uma terrível crise humanitária”, remata Lynn Maalouf.

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