12 Novembro 2020

A resposta ineficaz do governo da Ucrânia não garante proteção às vítimas de violência doméstica e sexual, no leste do país, aponta a Amnistia Internacional, que alerta ainda para o facto deste problema não só permanecer oculto, como também ser crescente.

“As mulheres que vivem no leste da Ucrânia, uma zona afetada por um conflito, não se sentem seguras, seja dentro ou fora de casa”

Oksana Pokalchuk, diretora da Amnistia Internacional Ucrânia

Com base em seis missões de campo, o relatório Not a private matter (“Não é um assunto privado”) destaca várias falhas no sistema que visa proteger sobreviventes, principalmente mulheres, de violência doméstica e sexual. A situação é agravada por crises sociais e económicas devastadoras, facilidade no acesso a armas e os traumascriados pelo conflito armado em curso entre o governo da Ucrânia e separatistas apoiados pela Rússia.

“É desesperante que as mulheres, cujas vidas já são gravemente afetadas por traumas e pela destruição causados ​​pelo conflito, se encontrem sem acesso a apoio e sem respostas das autoridades que têm a responsabilidade de protegê-las da violência doméstica e sexual”, afirma a diretora da Amnistia Internacional Ucrânia, Oksana Pokalchuk.

“As mulheres que vivem no leste da Ucrânia, uma zona afetada por um conflito, não se sentem seguras, seja dentro ou fora de casa”, prossegue a mesma responsável.

A Amnistia Internacional viajou até aos territórios controlados pelo governo nas regiões de Donetsk e Luhansk, entre janeiro e novembro de 2019. Contudo, a organização não conseguiu acesso às áreas controladas pelos separatistas, que não estão incluídas no relatório.

As estatísticas oficiais sobre violência doméstica, embora pouco confiáveis ​​e incompletas, mostram uma subida no número de casos registados nos últimos três anos. Em 2018, houve um  crescimento de 76 por cento nas notificações na região de Donetsk e um aumento de 158 por cento na região de Luhansk, em comparação com a média dos três anos anteriores.

Iniciativas do governo pouco efetivas

Nos últimos três anos, a Ucrânia adotou legislação e quadros institucionais relacionados com violência de género, geralmente em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Isso inclui a histórica Lei de Prevenção e Combate à Violência Doméstica de 2018, a introdução de ordens de proteção de emergência e abrigos,e unidades especiais de polícia formadas para lidar com este tipo de casos.

No entanto, as novas leis e iniciativas são frequentemente mal implementadas. Além disso, o país continua semratificar a Convenção do Conselho da Europa para a prevenção e o combate à violência contra as Mulheres e a violência doméstica (Convenção de Istambul).

“As autoridades ucranianas devem realizar reformas jurídicas rápidas e abrangentes, que protejam as vítimas de violência doméstica e de género. Estas reformas só podem ter sucesso se resultarem de processos de consulta genuínos com sobreviventes e organizações de mulheres”

Oksana Pokalchuk, diretora da Amnistia Internacional Ucrânia

A polícia ainda se mostra relutante em registar queixas de sobreviventes de violência doméstica e a impunidade generalizada impede muitas vítimas de falarem. Em dez dos 27 casos de violência doméstica documentados no relatório, as mulheres não denunciaram a violência que sofreram à polícia porque acreditavam que as autoridades não iriam responder de forma adequada, caso avançassem com algum procedimento.

Um dos casos envolvia uma grávida espancada pelo marido, que era militar na altura dos factos. A mulher não apresentou queixa, pois decidiu que não valia a pena, uma vez que, anteriormente, já tinha sido pressionada por responsáveis do exército a retirar uma denúncia para “não envergonhar” o homem. Nesse caso, a agressão resultou em ferimentos graves no nariz.

Vítimas em risco

A nova legislação da Ucrânia dá aos agentes da polícia a autoridade para emitir as chamadas ordens de proteção de emergência, que proíbem os alegados perpetradores de entrar e permanecer nas instalações em que uma vítima possa residir e de contactá-las durante dez dias. Nos casos documentados pela Amnistia Internacional, esses poderes raramente são aplicados e, quando isso acontece, não são implementados de forma efetiva.

Apesar da evolução positiva da legislação nacional, a proteção continua a apresentar lacunas. Na Ucrânia, a violência doméstica é abrangida por legislação administrativa e penal. Atualmente, os processos criminais não podem ser iniciados, caso o autor não tenha acumulado duas sanções administrativas por violência doméstica.

Além disso, tanto os militares como os polícias estão isentos de processos administrativos em tribunais de jurisdição geral, o que serve para protegê-los em casos de violência doméstica.

“A Ucrânia deve ratificar a Convenção de Istambul, pois isso fornecerá às autoridades um quadro claro para as reformas, incluindo melhorias adicionais na legislação, programas educacionais para funcionários e para o público em geral”

Oksana Pokalchuk, diretora da Amnistia Internacional Ucrânia

Oksana Mamchenko sofreu violência física e psicológica do ex-marido, pai dos seus 12 filhos, durante 20 anos. Depois de sair de casa, o tribunal emitiu ordens de proteção temporária três vezes, impedindo o homem de ficar na mesma casa ou perto da família.

Entre janeiro de 2019 e janeiro de 2020, Oksana Mamchenko obteve três ordens de restrição e uma ordem de proteção de emergência contra o ex-marido e apresentou várias queixas à polícia. O homem ignorou todas as decisões e as autoridades não cumpriram as mesmas de forma adequada. Em maio deste ano, acabou condenado a um ano de pena suspensa por não cumprimento da ordem de restrição, mas não foi punido por violência doméstica.

Violência sexual

A investigação da Amnistia Internacional indica que as mulheres no leste da Ucrânia continuam a sofrer várias formas de violência sexual, por parte de militares, especialmente em áreas ao longo da chamada “linha de contacto”. A Amnistia Internacional documentou oito casos de violência sexual contra mulheres e raparigas civis, incluindo dois casos de violação, uma tentativa de violação e cinco de assédio sexual, ao longo de 2017 e 2018.

“As autoridades ucranianas devem realizar reformas jurídicas rápidas e abrangentes, que protejam as vítimas de violência doméstica e de género. Estas reformas só podem ter sucesso se resultarem de processos de consulta genuínos com sobreviventes e organizações de mulheres”, explica Oksana Pokalchuk.

“Nos último anos, o governo ucraniano demonstrou disposição de abordar a questão da violência contra as mulheres. Agora, é hora de intensificar os seus esforços. A Ucrânia deve ratificar a Convenção de Istambul, pois isso fornecerá às autoridades um quadro claro para as reformas, incluindo melhorias adicionais na legislação, programas educacionais para funcionários e para o público em geral, um mecanismo de informação do governo e outras mudanças importantes”, enumera a diretora-executiva da Amnistia Internacional Ucrânia.

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