15 Setembro 2025

 

  • Investigação da Amnistia Internacional durou um ano
  • Paquistaneses nem se apercebem que são vigiados
  • Estão envolvidas empresas de França, EUA, Alemanha, Canadá, China e EAU
  • Oprimidos direitos à privacidade, liberdade de expressão e liberdade de reunião

 

A expansão ilegal da vigilância em massa e da censura no Paquistão é alimentada por um vasto conjunto de empresas sedeadas na Alemanha, França, Emirados Árabes Unidos (EAU), China, Canadá e Estados Unidos da América, afirmou a Amnistia Internacional num novo relatório intitulado “Shadows of Control”. A investigação, que durou um ano, foi realizada em colaboração com a Paper Trail Media, Der Standard, Follow the Money, The Globe and Mail, Justice For Myanmar, InterSecLab e o Tor Project.

Esta investigação expõe a forma como as autoridades paquistanesas obtiveram tecnologia de empresas estrangeiras, através de uma cadeia de abastecimento global secreta de ferramentas sofisticadas de vigilância e censura, particularmente o novo firewall (o Sistema de Monitorização da Web [WMS 2.0, na sigla inglesa]) e um Sistema de Gestão de Interceção Legal (LIMS, na sigla inglesa). O relatório documenta ainda como a firewall WMS evoluiu ao longo do tempo, inicialmente utilizando tecnologia fornecida pela empresa canadiana Sandvine (agora AppLogic Networks).

Após a alienação da Sandvine, em 2023, uma nova tecnologia da Geedge Networks, com sede na China, utilizando componentes de hardware e software fornecidos pela Niagara Networks, dos EUA, e pela tecnológica francesa Thales, foi usada para criar uma nova versão da firewall. O Sistema de Gestão de Interceção Legal utiliza tecnologia da empresa alemã Utimaco, através de uma companhia dos Emirados Árabes Unidos chamada Datafusion.

“O Sistema de Monitorização da Web e o Sistema de Gestão de Interceção Legal do Paquistão funcionam como torres de vigia, espiando constantemente a vida dos cidadãos comuns. No Paquistão, mensagens de texto, e-mails, chamadas e acesso à Internet estão todos sob escrutínio. Tudo, sem que as pessoas se apercebam dessa vigilância constante e do seu vasto alcance”.

“Esta realidade distópica é extremamente perigosa porque opera nas sombras, restringindo severamente a liberdade de expressão e o acesso à informação”, afirmou Agnès Callamard, secretária-geral da Amnistia Internacional. “A vigilância em massa e a censura no Paquistão foram possibilitadas através da conivência de um grande número de empresas que operam em jurisdições tão diversas como a França, a Alemanha, o Canadá, a China e os Emirados Árabes Unidos. Isto é, nada menos, do que uma vasta e lucrativa economia de opressão, possibilitada por empresas e Estados que não cumprem as suas obrigações ao abrigo do direito internacional”.

“O Sistema de Monitorização da Web e o Sistema de Gestão de Interceção Legal do Paquistão funcionam como torres de vigia, espiando constantemente a vida dos cidadãos comuns”

Agnès Callamard

“Existem restrições aos direitos humanos originadas pela procura de lucro, mas todas elas têm sido ignoradas. O povo paquistanês está a pagar um preço bem alto”, apontou a responsável da Amnistia.

O WMS 2.0 pode bloquear tanto o acesso à Internet como a conteúdos específicos, praticamente sem qualquer transparência.

O LIMS é mandatado pela Autoridade de Telecomunicações do Paquistão (PTA, na sigla inglesa) para ser instalado em todas as redes de telecomunicações por empresas privadas, permitindo às Forças Armadas e aos Serviços Secretos Inter-Serviços (ISI, na sigla inglesa) aceder aos dados dos consumidores, tais como chamadas telefónicas, mensagens de texto e até mesmo os sites que as pessoas visitam.

“O LIMS e o WMS 2.0 são financiados com dinheiro público, viabilizados por tecnologia estrangeira e usados para silenciar a dissidência, causando graves violações dos direitos humanos contra o povo paquistanês”, disse Jurre van Bergen, especialista em tecnologia da Amnistia Internacional.

Embora ambas as tecnologias permitam a vigilância em massa através da recolha de grandes quantidades de dados pessoais ou permitindo às autoridades ampliar os hábitos de navegação de alguém, o WMS 2.0 também permite às autoridades bloquear VPNs ou qualquer site considerado como conteúdo “ilegal” pelas autoridades.

 

Um sistema de vigilância que opera nas sombras

As preocupações em torno da vigilância ilegal e da censura online no Paquistão são antigas. Num panorama político opressivo, o sistema jurídico do país não oferece proteção real contra a vigilância em massa. As leis nacionais carecem de salvaguardas e as que existem, como os requisitos de mandado previstos na Lei do Julgamento Justo, são frequentemente ignoradas. Entretanto, as autoridades vão adquirindo ferramentas de vigilância e censura cada vez mais sofisticadas a empresas estrangeiras. A aquisição destas tecnologias sofisticadas ampliou a capacidade do país de silenciar a dissidência, incluindo jornalistas e sociedade civil.

Um jornalista entrevistado para o relatório disse à Amnistia Internacional que acreditava estar sob vigilância constante, o que o obrigou a autocensurar-se.

“Obviamente, tudo é monitorizado, sejam e-mails ou chamadas”. Destacou que, após publicar uma reportagem sobre corrupção, ficou sob vigilância severa, o que o afetou pessoalmente e às pessoas ao seu redor.

A aquisição destas tecnologias sofisticadas ampliou a capacidade do país de silenciar a dissidência, incluindo jornalistas e sociedade civil.

 “Depois da reportagem, qualquer pessoa com quem eu falasse, mesmo no WhatsApp, ficava sob escrutínio. [As autoridades] abordavam as pessoas e perguntavam: por que [o jornalista]te contatou? [As autoridades] podem chegar a esse extremo. Agora, passo meses sem falar com a minha família [por medo de que elas sejam o alvo]”, disse o jornalista.

“A combinação de leis inadequadas e estas novas tecnologias está a acelerar a capacidade do Estado de restringir os direitos à privacidade, à liberdade de expressão e à liberdade de reunião pacífica, o que contribui para um efeito inibidor e para a redução do espaço cívico no país”, afirmou, por seu turno, Agnès Callamard.

 

Fornecedores do Sistema de Gestão de Interceção Legal

Através de bases de dados comerciais em plataformas por assinatura, a Amnistia Internacional descobriu que uma empresa alemã, a Utimaco, e uma empresa dos Emirados Árabes Unidos, a Datafusion, forneceram a maior parte da tecnologia que permite ao LIMS operar no Paquistão. O LIMS, da Utimaco, permite às autoridades filtrar os dados dos assinantes das empresas de telecomunicações, que são então disponibilizados através do Monitoring Center Next Generation (McNG) da Datafusion.

Qualquer pessoa que resida no Paquistão e aceda à Internet pode ser sujeita a vigilância em massa direcionada, possibilitada pelo LIMS, que permite a interceção da localização do telefone, chamadas telefónicas e mensagens de texto, uma vez que um número de telefone é inserido no sistema a pedido de agentes do Estado, incluindo os oficiais da agência de espionagem, a ISI.

Qualquer pessoa que resida no Paquistão e aceda à Internet pode ser sujeita a vigilância em massa direcionada, possibilitada pelo LIMS, que permite a interceção da localização do telefone, chamadas telefónicas e mensagens de texto.

Além disso, os agentes estatais que operam o LIMS podem ver o conteúdo de sites se forem acedidos através de HTTP por qualquer residente paquistanês (a forma não encriptada de aceder a um site). Se forem acedidos através de HTTPS, o operador só verá qual o site que foi acedido através de metadados, mas não o conteúdo encriptado.

“Devido à falta de salvaguardas técnicas e legais na implantação e utilização de tecnologias de vigilância em massa no Paquistão, o LIMS é, na prática, uma ferramenta de vigilância ilegal e indiscriminada que permite ao governo espiar mais de quatro milhões de pessoas a qualquer momento”, apontou Jurre van Bergen.

 

Firewall nacional da China ou WMS 2.0

Com base em pesquisas existentes e bases de dados comerciais, a Amnistia Internacional descobriu que a primeira versão do WMS foi instalada no Paquistão em 2018, utilizando tecnologia fornecida por uma empresa canadiana, a Sandvine, agora AppLogic Networks. A Amnistia Internacional denomina esta versão WMS 1.0.

A organização encontrou a Sandvine em dados comerciais já em 2017 e descobriu que enviou equipamentos para, pelo menos, três empresas paquistanesas que têm um histórico de trabalho para o governo paquistanês, como a Inbox Technologies. A Amnistia Internacional encontrou mais duas empresas durante a investigação: a SN Skies Pvt Ltd e a A Hamson Inc.

Através de uma fuga partilhada com os colaboradores, e que é referida pela Amnistia Internacional como o conjunto de dados Geedge, descobriu-se que o WMS 1.0 foi substituído por tecnologia avançada da chinesa Geedge Networks em 2023. Esta versão é o WMS 2.0.

A instalação e operacionalização do WMS 2.0 no Paquistão é possibilitada por software ou hardware fornecido por duas outras empresas: a Niagara Networks, dos Estados Unidos, e a Thales, de França.

A Amnistia Internacional acredita que a tecnologia fornecida pela Geedge Networks é uma versão comercializada da “Grande Firewall# da China, uma ferramenta abrangente de censura estatal, desenvolvida e implantada na China e agora exportada também para outros países.

 

Falta de regulamentação e transparência

Das 20 empresas contatadas pela Amnistia Internacional, apenas a Niagara Networks, sedeada nos Estados Unidos, e a AppLogic Networks (anteriormente Sandvine), sedeada no Canadá, responderam às nossas perguntas. As suas respostas estão incluídas no relatório. A Datafusion Systems e a Utimaco responderam às perguntas enviadas pela Amnistia Internacional em outubro de 202, e as suas respostas estão refletidas no relatório, embora as empresas não tenham respondido às cartas subsequentes, que detalhavam as conclusões do relatório.

A Amnistia Internacional também contatou nove entidades governamentais. O Gabinete Federal Alemão para Assuntos Económicos e Controlo de Exportações (BAFA, na sigla alemã) e o Gabinete Canadiano de Controlo Comercial acusaram a receção da nossa carta, mas não responderam às perguntas. O governo paquistanês não respondeu a nenhuma das nossas cartas.

Tem havido uma falha contínua por parte de empresas e vários países, como a China e os Emirados Árabes Unidos, bem como países da UE e da América do Norte, em regulamentar, controlar e proporcionar transparência nas exportações de tecnologias de vigilância que têm consequências prejudiciais para os direitos humanos, como no Paquistão.

 

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