23 Março 2018

Um ataque da coligação liderada pela Arábia Saudita feito com uma bomba de fabrico norte-americano, que destruiu por completo uma residência e matou ou feriu todas as seis pessoas da família que ali vivia, é o mais recente de uma longa série de potenciais crimes de guerra que a Amnistia Internacional documenta terem sido cometidos durante os três anos do conflito devastador no Iémen.

Desde que começou a ofensiva de ataques aéreos pela coligação contra o grupo armado huthi, a 25 de março de 2015, a organização de direitos humanos tem documentado que todas as partes envolvidas no conflito violaram repetidamente a lei internacional.

“Ao fim de três anos, o conflito no Iémen não mostra nenhuns sinais de decrescer, e todas os lados continuam a infligir um sofrimento horrível à população civil. Escolas e hospitais estão em ruínas, milhares de pessoas perderam a vida e milhões encontram-se deslocadas internamente e em necessidade extrema de ajuda humanitária”, frisa a diretora de Investigação da Amnistia Internacional para a região do Médio Oriente, Lynn Maalouf.

“Escolas e hospitais estão em ruínas, milhares de pessoas perderam a vida e milhões encontram-se deslocadas internamente.”

Lynn Maalouf, diretora de Investigação da Amnistia Internacional para a região do Médio Oriente

A perita explica que “há provas extensas de que fornecimentos irresponsáveis de armamento para a coligação liderada pela Arábia Saudita têm resultado em danos enormes para os civis iemenitas”. “Mas isto não tem impedido os Estados Unidos, o Reino Unido e outros países, incluindo a França, a Espanha e a Itália, de continuarem a transferir armas no valor de milhares de milhões de dólares. Além de devastar as vidas dos civis, esta conduta escarnece do Tratado sobre o Comércio de Armas Convencionais [TCA, ATT na sigla em inglês]”, critica.

Ataques aéreos da coligação liderada pela Arábia Saudita

A 27 de janeiro passado, entre as 6h e as 8h, um raide aéreo feito pela coligação liderada pela Arábia Saudita atingiu uma residência em Al-Rakab, na região de Taiz, Sul do Iémen. Todos os membros da família Naji que nela habitavam foram vitimados no ataque: a mãe, Roweyda, e dois filhos, de dez e de seis anos, morreram no bombardeamento; o pai, Riyad, e o filho de três anos sofreram ferimentos na zona abdominal causados pelos estilhaços da explosão e a filha de um ano ficou com alguns ferimentos ligeiros.

Um familiar dos Naji, Amin Mohamad Naji, chegou ao local dez minutos depois do ataque. Descreveu à amnistia Internacional: “Ajudei a tirar os feridos e [os mortos] de debaixo dos escombros. Quando lá cheguei vi a casa toda destruída… [duas das] crianças estavam sob os destroços, tinham morrido, e a mulher do meu irmão também. O meu irmão Riyad e outros dois dos seus filhos foram gravemente feridos”.

“Ajudei a tirar os feridos e [os mortos] de debaixo dos escombros. Quando lá cheguei vi a casa toda destruída… [duas das] crianças estavam sob os destroços, tinham morrido.”

Amin Mohamad Naji

Testemunhas reportaram que o local atingido fica a pelo menos três quilómetros de distância de qualquer posição militar e que não havia nenhuns combatentes nas proximidades no momento do raide. A Amnistia Internacional analisou imagens de vídeos filmadas após o ataque aéreo e confirmou que a munição usada foi uma bomba GBU-12 de 227 quilos e guiada por laser fabricada nos Estados Unidos pela empresa Lockheed Martin.

Em agosto de 2017, um outro ataque feito durante a noite pela coligação liderada pela Arábia Saudita sobre um bairro residencial na zona Sul de Sana, a capital iemenita, matou 16 civis e causou ferimentos a 17 outros. A maioria dos mortos e feridos eram crianças. Também neste raide, a Amnistia Internacional concluiu que foi lançada uma bomba de fabrico norte-americano – da empresa Raytheon – sobre uma residência.

E estes ataques estão longe de serem casos isolados. Desde o início do conflito, a Amnistia Internacional documentou 36 raides aéreos da coligação que indiciam ter sido violada a lei internacional humanitária, muitos dos quais podem constituir crimes de guerra. No conjunto destes ataques foram mortos 513 civis (incluindo pelo menos 157 crianças) e 379 outras pessoas foram feridas.

Violações de direitos humanos pelos huthi e outras forças terrestres

O grupo armado huthi e forças anti-huthi mataram ou feriram civis em disparos indiscriminados de munições explosivas que têm efeito sobre uma vasta área contra zonas residenciais. A cidade de Taiz, em especial, tem sido alvo de ataques intensos com morteiros e artilharia pesada até recentemente, em janeiro e fevereiro passados.

Em Sana e noutras áreas sob o controlo dos huthi, estes e forças suas aliadas continuaram com as vagas de detenções e condenações à prisão arbitrárias de quem entendem ser seus oponentes. Muitos homens e mulheres foram sujeitos a desaparecimentos forçados, alguns sendo condenados em penas muito severas em julgamentos flagrantemente injustos.

A Amnistia Internacional documentou dois casos ocorridos desde o início de 2018 em que, no total, quatro pessoas foram condenadas à pena de morte pelo Tribunal Penal Especial controlado pelos huthi em Sana – são elas: Hamid Haydara, que pertence à comunidade baha’i iemenita, e Asmaa al-Omeissy, Saeed al-Ruwaished e Ahmed Bawazeer, acusados de prestarem ajuda a Estado inimigo. Estes dois julgamentos foram grosseiramente injustos, com os arguidos a terem sido sujeitos a desaparecimento forçado, a longos períodos de prisão preventiva, a tortura e outros maus-tratos e tendo-lhes sido recusado acesso a advogados.

Uma vez que os huthi cometeram estas violações de direitos humanos em relação ao conflito armado no Iémen, tal pode constituir crimes de guerra.

Crise humana

O Iémen vive atualmente uma das mais graves crise no mundo, com pelo menos 22,2 milhões de pessoas a precisarem de assistência humanitária e mais de um milhão de casos suspeitos de cólera. Esta é uma crise resultante de atividade humana, com a guerra a aprofundar e exacerbar a situação desesperada no terreno e todos os lados envolvidos no conflito a impedirem a entrega da ajuda humanitária.

Depois de as forças huthi terem lançado um míssil que ilegalmente atingiu zonas civis da capital saudita, Riade, em finais de novembro passado, a coligação militar liderada pela Arábia Saudita, também ilegalmente, apertou ainda mais o bloqueio marítimo e aéreo sobre o Iémen.

Apesar de este bloqueio ter sido aliviado desde então, a coligação continua a impor restrições à ajuda humanitária e às importações comerciais de bens essenciais, incluindo alimentos, medicamentos e combustíveis. A coligação argumenta que essas limitações fazem cumprir o embargo às armas aos huthi que foi aprovado pelas Nações Unidas, mas estão a agravar a crise no Iémen e a contribuir para violações do direito à saúde e a padrões de vida adequados.

Profissionais médicos relataram à Amnistia Internacional que a falta de fornecimentos essenciais ou o perigo inerente aos combates próximos forçaram muitas instalações clínicas a fecharem ou suspenderem o seu funcionamento.

“Milhares de civis iemenitas foram mortos e as vidas de milhões mais estão em risco no meio desta crise, uma das mais graves no mundo em décadas”, explicou Lynn Maalouf.

A diretora de Investigação da Amnistia Internacional para a região do Médio Oriente sustenta que “a longa lista de violações de direitos humanos sublinha a necessidade de uma tomada de ação forte por parte da comunidade internacional”. “A declaração feita pela presidência do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre o Iémen, na semana passada, constitui um passo positivo, mas vamos ficar atentos para garantir que é concretizada no terreno”.

“A longa lista de violações de direitos humanos sublinha a necessidade de uma tomada de ação forte por parte da comunidade internacional.”

Lynn Maalouf, diretora de Investigação da Amnistia Internacional para a região do Médio Oriente

Milhões de pessoas a precisarem de ajuda humanitária

O gabinete do alto comissário dos Direitos Humanos das Nações Unidas reportou que, até fevereiro de 2018, mais de 5 974 civis foram mortos e mais de 9 493 civis foram feridos no Iémen desde março de 2015.

De acordo com o gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários das Nações Unidas, mais de 20 milhões de pessoas – ou 80% da população do Iémen – carecem de ajuda humanitária. Num relatório publicado no início de janeiro passado, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, por seu lado, atestou que mais de dois milhões de pessoas estão deslocadas internamente no Iémen.

Num desenvolvimento positivo, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas aprovou uma resolução, em setembro de 2017, em que um grupo de peritos é mandatado para investigar abusos e violações de direitos humanos cometidos por todas as partes no Iémen e identificar os responsáveis no que tal seja possível.

E a 15 de março passado, o Conselho de Segurança das Nações Unidas avalizou uma Declaração da Presidência (PRST, na sigla em inglês) sobre a situação humanitária no Iémen. Esta PRST representa um passo em frente para responsabilizar todas as partes envolvidas no conflito no Iémen pelos abusos cometidos. A declaração exorta, entre outras coisas, a um acesso total da ajuda humanitária e dos fluxos comerciais, tal como a que todas as partes cumpram as suas obrigações ao abrigo da lei internacional humanitária. Porém, não foi criado nenhum mecanismo de monitorização da concretização do que é determinado na PRST.

  • 50 milhões

    50 milhões

    Pela primeira vez desde a II Guerra Mundial, mais de 50 milhões de pessoas foram obrigadas a abandonar as suas casas. A maior parte devido a conflitos armados. (ACNUR, 2014)
  • 12,2 milhões

    12,2 milhões

    No final de 2014, 12,2 milhões de sírios – mais de metade da população do país – dependiam de ajuda humanitária. (UNOCHA)

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