Liberdade Bandeira 2
Componente 1 – 3

© André Carrilho

Em meio século, no país apelidado como “de brandos costumes” por Salazar, na ditadura do Estado Novo, ergueu-se uma democracia. Das greves, protestos, ocupações e assembleias dos primeiros anos da Revolução, o direito de manifestação pacífica foi conquistando, ao longo do tempo, ruas e praças, fábricas, campos, transportes e escolas para, nos últimos anos, adquirir novas formas – umas mais consensuais do que outras – em nome da liberdade de consciência e de expressão.

É sobre os desafios atuais deste exercício individual e coletivo que a Amnistia Internacional – Portugal no âmbito da campanha global “Protege a Liberdade” convida à reflexão, apresentando os resultados de uma investigação e de um inquérito, este último feito em parceria com a Universidade Católica Portuguesa.

Passavam poucos minutos das 11 da manhã, Pedro Passos Coelho desapertava o fato para começar a responder aos deputados no que seria mais um debate quinzenal, quando é subitamente interrompido. “Grândola, Vila Morena / terra da fraternidade / O povo é quem mais ordena / dentro de ti, ó cidade...”. Das bancadas, um grupo de algumas dezenas de pessoas levantava-se a entoar a canção, senha e hino do 25 de Abril, em protesto1. A ação suspende os trabalhos no hemiciclo do parlamento durante alguns minutos e consegue até arrancar um elogio do então primeiro-ministro, que classifica a manifestação como “a de mais bom gosto”. Contudo, o que parecia ser uma nota isolada replicar-se-ia, nas semanas seguintes, em ações de desobediência civil em vários pontos do país, desta vez deixando ministros corados a tentar balbuciar alguns refrões. Em poucos meses, dá ainda origem, primeiro, a um verbo e, depois, ao termo “grandolada”, uma das dez finalistas a palavra do ano. O ano era 2013.

Mais de uma década depois, Tiago Carvalho, investigador do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), não hesita em descrever o ato como “um golpe de génio”. “Foi muito importante na preparação da manifestação do 2 de março nesse ano”, realça, “ao servir de abertura” para a orquestra de vozes que aí se ergueu “numa das maiores manifestações de sempre”.

O episódio marca um dos picos de um ciclo de protestos que “entre 2008 e 2016, antes e depois da crise [financeira], fez aumentar várias formas de participação cívica – do voto ao contato com políticos e instituições ou a outras formas de protesto menos convencional”, um padrão que segundo o investigador em movimentos sociais “se manteve até hoje”. Mas não foi sempre assim.

O país tem atravessado diferentes ondas ou momentos desde as gigantescas mobilizações nos anos quentes do pós-revolução. Os anos 1980 trouxeram uma certa acalmia nos protestos face à década anterior, interrompida por marés de greves e lutas da classe trabalhadora, impulsionadas pelos sindicatos.

A década de 1990 fica marcada pela luta antipropinas e pela carga policial a centenas de camionistas contra o aumento das portagens na ponte 25 de abril. A campanha pela libertação de Timor-Leste e o primeiro referendo sobre o aborto deram força ao aparecimento de novas correntes na entrada para o novo século, embora a maioria destas forças se tenha institucionalizado. Seria preciso esperar pela manifestação da “Geração à Rasca” em 2011 e, nos dois anos seguintes, pelas do movimento “Que se Lixe a Troika!” para ver novamente um “tsunami” de gente nas ruas contra a precariedade e as políticas de austeridade então impostas. A partir de 2016 há novamente uma diminuição na dimensão dos protestos até 2019, e depois no pós-pandemia, em que tem havido uma reorganização dos movimentos sociais impulsionados pelos direitos dos trabalhadores, a crise na habitação, as guerras (Ucrânia e territórios ocupados da Palestina), o aumento do custo de vida e o combate às alterações climáticas.

Participou em alguma reunião ou manifestação públicas nos últimos 5 anos?

Quantas vezes?

Quantas dessas vezes em 2023?

© José Alves/Francisco Lopes

Este inquérito foi realizado pelo CESOP-Universidade Católica Portuguesa para a Amnistia Internacional Portugal entre os dias 9 e 29 de novembro de 2023. O universo alvo é composto por residentes em Portugal com idade igual ou superior a 16 anos. Os inquiridos foram selecionados aleatoriamente a partir duma lista de números de telemóvel, também ela gerada de forma aleatória. Todas as entrevistas foram efetuadas por telefone. Os inquiridos foram informados do objetivo do estudo e demonstraram vontade de participar. Foram obtidos 1001 inquéritos válidos, sendo 48% dos inquiridos mulheres. Distribuição geográfica: 32% da região Norte, 19% do Centro, 33% da A.M. de Lisboa, 7% do Alentejo, 5% do Algarve, 2% da Madeira e 2% dos Açores. Todos os resultados obtidos foram depois ponderados de acordo com a distribuição da população por sexo, escalões etários e região com base nos dados do INE. A taxa de resposta foi de 31%. A margem de erro máximo associado a uma amostra aleatória de 1001 inquiridos é de 3,1%, com um nível de confiança de 95%.

Os dados do inquérito da Amnistia Internacional – Portugal (AIPT) e da Universidade Católica Portuguesa (UCP) mostram que, nos últimos cinco anos, cerca de 10% das pessoas inquiridas participaram em reuniões ou manifestações públicas. A formulação da pergunta é bastante aberta, podendo incluir protestos ditos tradicionais como desfiles e greves, ou reuniões de assembleias de freguesia, por exemplo. Ainda assim, estas conclusões estão para Tiago Carvalho “em linha com os estudos do European Social Survey (ESS) que mostram que, a partir de 2012, há um aumento das formas de participação não convencionais, como é o caso de manifestações, da assinatura de petições ou até usar um crachá com uma mensagem política, por exemplo”.

A participação neste tipo de eventos, contudo, não é equivalente para todas as categorias sociais neste inquérito, sendo muito mais elevada entre as pessoas mais escolarizadas (17% entre os que têm ensino superior) do que entre as pessoas menos escolarizadas (3%). Também é maior entre os votantes de partidos à esquerda do que entre votantes de partidos ao centro e à direita no espectro político português.

No contexto europeu, em termos de média ponderada, Portugal surge a meio da tabela nos estudos do ESS, sem grande distinção em termos de escalões etários. A propensão inferior dos portugueses para se manifestarem contrasta em especial com a dos cidadãos de países como Espanha, França e Alemanha. Haverá várias possíveis explicações para estes números, não só históricas como também sociais e económicas.

Na bolha de quem protesta

São nove da manhã e B. acende o primeiro cigarro. Apesar da tenra idade, está habituada a dar entrevistas e já perdeu a conta do número de protestos em que participou. Em 2019, era uma entre os milhares de jovens que se manifestaram em 20 cidades portuguesas no âmbito da greve mundial pelo clima. Há um ano estava entre a multidão que respondia à convocatória de um grupo nascido na periferia dos bairros de Lisboa, e que reivindica uma vida justa, e nos últimos meses tem engrossado os caudais da luta pela habitação.

“Entre as ativistas há a perspetiva de que as causas estão relacionadas e é normal que pessoas que fazem parte de um coletivo acabem por estar envolvidas em outros movimentos sociais”, explica.

Para Tiago Carvalho, em Portugal “há sobretudo uma questão de recursos culturais” que distingue quem organiza e participa em reuniões e manifestações públicas. A principal “clivagem é entre pessoas com educação superior ligadas a profissões em que o capital cultural predomina, como professores, médicos ou artistas e as sem essa educação”. “Têm surgido algumas pessoas novas nos movimentos sociais”, admite, “ainda assim, há uma bolha”.

Um outro dado visível no inquérito da AIPT/UCP relativo aos últimos cinco anos, é que a maioria dos participantes em protestos reside em áreas urbanas, com destaque para Lisboa. Um facto que só por si não indica uma grande novidade, tendo em conta que as maiores manifestações são convocadas para as cidades. Em linha com estes dados, está um levantamento feito pela Amnistia Internacional - Portugal sobre o número de notificações, referentes à intenção de organizar uma manifestação, recebidas por 23 câmaras municipais, entre as quais todas as capitais de distrito e algumas cidades de grande dimensão como Almada, Amadora e Sintra2. Entre os 17 municípios que deram resposta, salta à vista que, desde 2018, quase 80% das notificações para a realização de reuniões e manifestações públicas foi feita às autarquias de Lisboa e do Porto. Na lista dos restantes 20% surgem Coimbra, Aveiro e Sintra por esta ordem, por contabilizar ficaram ainda assim importantes núcleos como é o caso de Braga e Setúbal que não responderam às perguntas da Amnistia Internacional - Portugal.

“Há uma dificuldade destes grupos [de ativistas] em chegar a pessoas de outros setores”, defende Tiago Carvalho. Às vezes, por questões práticas do quotidiano: “Há muita gente que não tem capacidade, tempo ou recursos para organizar ou participar nestas ações".

Outro fator, é o tal capital cultural referido pelo investigador do ISCTE. “Quem é que tem noção de como é que as instituições funcionam, de como se organiza uma manifestação, se faz uma queixa, contata o presidente da Câmara ou os deputados da Assembleia da República?”, lança.

Protestar é ou não um direito?

“Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização”. A citação é da Constituição da República Portuguesa (CRP), concretamente o ponto 2 do artigo 45º, que rege o direito à reunião e manifestação. Sendo lei fundamental, não deveria trazer dúvidas, mas na prática elas não faltam.

Quase metade dos inquiridos (47%) pela AIPT/UCP acha que estes eventos precisam ser autorizados, uma resposta que não se altera em função do grau de escolaridade dos entrevistados e é a opção mais escolhida entre as pessoas com 45 ou mais anos.

Para entender estes resultados é preciso recuar ao verão de 1974. No final de agosto era publicado em Diário da República o decreto-lei 406/74 por decisão do então governo provisório com o objetivo de “dar cumprimento ao programa do Movimento das Forças Armadas”. Durante dois anos, este documento teve valor de lei constitucional e mesmo tendo passado para segundo plano após 1976, nunca sofreu qualquer alteração. São 16 artigos, aprovados em Conselho de Ministros e promulgados pelo então Presidente da República, António de Spínola. O regime de notificação é abordado no artigo 2º, que refere que “as pessoas ou entidades que pretendam realizar reuniões, comícios, manifestações ou desfiles em lugares públicos ou abertos ao público deverão avisar por escrito e com a antecedência mínima de dois dias úteis o presidente da câmara municipal”. Este aviso/notificação deve vir “assinado por três dos promotores devidamente identificados pelo nome, profissão e morada ou, tratando-se de associações, pelas respetivas direções”, especifica o ponto 2 do mesmo artigo.

Para a constitucionalista Teresa Violante “basta confrontar o que está na Constituição com o decreto-lei de 1974 para perceber que há ali problemas”. A também investigadora da Universidade Erlangen-Nuremberga, na Alemanha, lamenta que um documento "aprovado num período quente” da nossa democracia sobre “um direito com a importância matricial” como este nunca tenha sido revisto, abrindo caminho, explica, “a que vigore a letra de um decreto extremamente problemático”.

As manifestações públicas precisam de ser autorizadas pelas autoridades?

As dúvidas estão em todo o lado. Entre as dezenas de entrevistas a ativistas que a Amnistia Internacional – Portugal conduziu, são muitos aqueles que, mesmo depois de ter organizado várias ações de protesto, não sabem responder a esta pergunta do inquérito. Nas próprias autarquias, responsáveis pela receção destas notificações, falta informação.

Numa pesquisa às páginas na internet dos 23 municípios consultados no âmbito desta investigação, apenas em quatro está disponível informação para os cidadãos que queiram notificar as autoridades sobre a realização de uma reunião ou manifestação públicas.

Embora possa haver um enorme desconhecimento sobre a legislação, dois em cada três inquiridos consideram que podem manifestar-se sem restrições em Portugal, quando comparado com muitos outros países.

Em outubro de 2023, a Amnistia Internacional - Portugal disponibilizou no seu site algumas informações sobre o direito à reunião e manifestação.

Alguma vez sentiu que os seus direitos, enquanto manifestante, foram limitados?

“Lamentamos incomodar a vossa festa”

Em julho de 2023, a Amnistia Internacional - Portugal teve conhecimento de uma coima de 700€ emitida à organização da “Marcha LGBTQ+” em Sintra, “pela utilização de vias públicas para fins especiais sem autorização das autoridades competentes”. Em causa a realização de uma manifestação um mês antes, no dia 10 de junho de 2023. Segundo os relatos e a documentação recolhidos pela Amnistia Internacional - Portugal, os promotores tentaram notificar, no prazo legalmente previsto, a Câmara Municipal de Sintra através do portal do munícipe. Contudo, no site, alegam só terem conseguido submeter um pedido de licenciamento para uma manifestação desportiva e que teria sido também este o procedimento indicado pela autarquia. Foi a esta solicitação que, na véspera do evento, mesmo após vários contactos, o município deu resposta negativa. A organização decidiu levar a manifestação avante, a multa chegou semanas depois. Feito recurso pelos promotores ainda em julho, a Amnistia Internacional - Portugal contatou a Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária para saber qual o estado do processo, que segundo esta entidade, passado mais de meio ano, estará nesta altura em fase de instrução.

Além deste caso, o de Francisco Pedro, um manifestante acusado do crime de desobediência qualificada por alegadamente ter sido o promotor de um protesto “não notificado” às autoridades. Foi há quatro anos, em abril de 2019. Um grupo de ativistas contra o novo aeroporto interrompe o então primeiro-ministro, António Costa, num evento do Partido Socialista. O objetivo era ler um manifesto que não passou da primeira frase: “Lamentamos incomodar a vossa festa”. Demorou menos de um minuto até os ativistas serem expulsos pelos seguranças. Francisco foi o único arguido. Depois de uma sentença favorável na primeira instância, que o absolveu, o Tribunal da Relação de Lisboa aceitou o recurso do Ministério Público para haver um novo julgamento. Após quatro anos em suspenso, com termo de identidade e residência, Francisco foi condenado ao pagamento de uma multa de 300€, num processo que sente como uma perseguição. “Há uma repressão às vozes que tentam denunciar o que se passa. Os crimes passam em claro, já a denúncia é reprimida. Haver um aceitar coletivo dessa repressão, é angustiante”, confessa. O ativista recorreu da decisão.

“Exercício gratuito de autoridade”

Quando D. abriu os olhos, o agente da polícia que seguia ao seu lado já não lá estava. “O embate foi tal, que ele foi projetado porque acho que ia sem cinto”, conta. A estudante teve mais sorte, terá apenas magoado um dos braços que levava atrás das costas com as mãos algemadas. O carro da PSP em que seguia, envolveu-se num acidente com outro veículo civil, depois de alegadamente ter passado, em marcha de emergência, um sinal vermelho3.

O destino era a esquadra da Penha-de-França, para onde foram levados D. e mais cinco estudantes detidos na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), da Universidade Nova de Lisboa, na madrugada de 13 de novembro de 2023.

O caso foi a tribunal no final de 2023. Os jovens estavam acusados de desobediência a ordem de dispersão por se terem recusado a sair do edifício C da faculdade, onde tencionavam passar aquela que seria a primeira noite de um ciclo de protestos pelo Clima. Acabaram por ser condenados a uma multa de 150€ por pessoa, num desfecho semelhante ao dos quatros estudantes detidos na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no final de 2022.

O jurista e professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Miguel Prata Roque, aceitou defender em regime pro bono os estudantes da Nova. Confessa que “é com muito espanto e até com lamento” que tem assistido às decisões de diretores das faculdades de chamar a polícia para retirar os alunos. Para o jurista, estas são “ordens ilícitas porque são excessivas e desproporcionais” e fala de um “exercício gratuito de autoridade”.

“Não há um valor jurídico a proteger quando se trata apenas de uma mera desobediência à ordem instituída, porque senão o que estamos ali a punir é o facto de haver um desafio à autoridade do Estado. Não é aceitável quando coloca em causa outros valores, como o direito à manifestação”, explica.

Prata Roque acrescenta: “Essa tensão entre a própria faculdade e os alunos é uma negação da própria liberdade universitária, porque na minha perspetiva este é um espaço de exercício de liberdades. As instalações não são dos professores ou de quem dirige a escola, mas de toda a comunidade escolar”.

Em resposta à Amnistia Internacional - Portugal, a direção da faculdade garante que a decisão foi tomada por “não estarem reunidas as condições de segurança necessárias para a pernoita dos ativistas naquele espaço e por não haver garantia de integridade das instalações, esgotadas todas as tentativas de diálogo”. Os estudantes detidos ponderam recorrer da decisão do tribunal.

Que temas o levaram a manifestar-se nos últimos 5 anos?

“SAI DAÍ, C*****! QUERO IR TRABALHAR!”

A desobediência civil tem vários exemplos na história. Tido como pai deste tipo de ações, Henry David Thoreau terá sido o primeiro a dar nome à prática política ao ser preso por se recusar a pagar um imposto como forma de protesto. Desde então, muitos seguiram os mesmos passos, como as Sufragistas, Gandhi, Rosa Parks ou Martin Luther King Jr.. Portugal não foi exceção. Durante a ditadura, quem ousava desafiar o regime, desobedecendo a ordens e a leis em protesto, pagava muitas vezes com prisão, tortura e a própria vida.

Nos últimos tempos, o tema tem vindo a ganhar atualidade graças aos ativistas pelo Clima, ainda que nem todas as suas ações estejam dentro do âmbito da desobediência civil. Entre outubro de 2023 e janeiro de 2024, cortaram estradas em hora de ponta, bloquearam aviões e jatos privados, partiram montras de lojas de luxo, protestaram em frente de multinacionais, pintaram fachadas de edifícios ligados a grandes empresas e até mancharam a camisa a dois ministros. Foram quase trinta atos de protesto em três meses em resposta a quem, escreve o Climáximo no seu site, “declarou guerra às pessoas e ao planeta”. O inverno que estes ativistas asseguram “será o último com gás” ainda agora terminou, pela frente há mais três estações.

Entre as várias lutas em que B. participa, o clima é o denominador comum e o que lhe dá foco mesmo quando fica nervosa. “Numa das ações mais recentes pensei no que estava a fazer à minha vida. Mas depois encontro sempre motivação e enraízo-me nisso”, conta. Sobre o recurso em algumas das ações à desobediência civil, a jovem que pertence ao grupo Climáximo, não hesita na resposta: “É a única forma que faz sentido face ao que estamos a viver. É o que qualquer pessoa, assim que sai do trabalho deve ir fazer”.

Talvez pela diversidade de métodos, nem sempre têm sido bem recebidos. No início de outubro de 2023, em plena hora de ponta, às 9 da manhã, 11 ativistas do grupo entraram com faixas na 2ª Circular, uma das vias de maior fluxo no acesso a Lisboa, e cortaram o trânsito. Os automobilistas revoltaram-se. Num vídeo é possível ver condutores e motociclistas a saírem dos carros aos gritos: “Sai daí, c*****! Não vês que quero ir trabalhar?”. Um deles arranca as faixas das mãos dos ativistas, dando azo a uma escalada nas agressões. Os jovens são arrastados pelos motoristas de forma violenta para a berma, em modo de justiça popular. É visível também uma mota a passar muito rente a uma das ativistas, que se agarra depois ao joelho a gemer com dores. A polícia chegaria depois, 11 ativistas foram detidos.

Protestar, sim, mas dentro da lei

Enquanto 84% do total dos entrevistados crê que as manifestações e outras formas de protesto são importantes para o debate de ideias numa democracia, as opiniões dividem-se quando a questão é a desobediência civil.

Até que ponto concorda ou discorda com a afirmação:

Discorda totalmente


Discorda

Não concorda nem discorda


Concorda

Concorda totalmente


Ns/Nr

“As manifestações e outras formas de protesto são importantes contributos para o debate de ideias políticas numa sociedade democrática”

Os resultados não sendo conclusivos por vários fatores explicados mais abaixo, dão algumas pistas. Se analisarmos as duas dimensões (legitimidade e criminalização) separadamente, observa-se que 43% das pessoas entende as ações de desobediência civil como legítimas, uma escolha muito mais prevalente entre os jovens (18 a 24 anos). Já 49% vê este tipo de atos como ilegítimos. Quanto à criminalização das ações de desobediência civil, os números mostram 59% a favor e 33% contra, sendo que a defesa da criminalização é maior entre as pessoas mais instruídas e com idade entre os 25 e os 54 anos.

Das seguintes frases, qual é a que melhor corresponde à sua opinião sobre ações de Desobediência Civil?

Na pergunta sobre se os ativistas que utilizam este tipo de protesto merecem um tratamento mais severo da lei, a divergência mantém-se. Cerca de metade (51%) dos inquiridos considera que os ativistas pelo clima que se colam ou prendem a edifícios ou recorrem a atos de desobediência civil (corte de estradas, ocupação de edifícios, etc.) devem ser tratados pela lei de uma maneira mais severa. No lado oposto, 30% discorda desta afirmação. Este padrão de distribuição de respostas não sofre grandes alterações em função da idade, sexo, escolaridade ou posicionamento político dos entrevistados. Apenas se observam diferenças significativas entre participantes e não participantes em manifestações, com os primeiros a discordarem mais deste tratamento.

Até que ponto concorda ou discorda com a afirmação:

Discorda totalmente


Discorda

Não concorda nem discorda


Concorda

Concorda totalmente


Ns/Nr

“Ativistas pelo clima que se colam ou prendem a edifícios ou recorrem a atos de desobediência civil (corte de estradas, ocupação de edifícios, etc.) devem ser tratados pela lei de uma maneira mais severa”

A formulação utilizada nesta última pergunta não é a ideal, uma vez que pode ter condicionado, pelos exemplos que cita, uma perceção mais “acalorada” nas respostas. Em especial, tendo em conta que o questionário deste estudo foi conduzido num momento de pico de ações dos grupos Climáximo e Greve Climática Estudantil, algumas delas, como já referido, fora do âmbito da desobediência civil.

Entre as explicações para as opções dos inquiridos, Mónica Soares, investigadora e mestre em psicologia da justiça no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, avança possíveis hipóteses: “este género de intervenção surge como desconectada da vida quotidiana e tem um discurso que não se relaciona com a comunidade em geral, não tem raízes sociais, e com isso não abona a favor da mobilização”. A investigadora do CES considera “que o discurso catastrófico”, por exemplo, “não é estratégico pela forma como acaba por ser traduzido, socialmente, nesta visão de ilegitimidade pública”. Para Tiago Carvalho “não é que as pessoas achem que a luta destes ativistas não é justa, discordam é dos meios”.

Já sobre o que seria uma disparidade de posturas, Teresa Violante aponta "uma fraca cultura de direitos fundamentais, nomeadamente entre os nossos magistrados”, em que “a interpretação da lei varia consoante o tipo de protesto e consoante o tipo de protestantes”. A constitucionalista dá como exemplo o corte da Ponte Vasco da Gama no início de fevereiro de 2024: “Houve decididamente uma maior tolerância para os agricultores do que para os ativistas pelo clima. Ainda que os cortes de estradas dos primeiros tivessem sido muito mais danosos do que os dos outros”.

© José Alves/Francisco Lopes

Parcialidade VS imparcialidade

Para 56% dos entrevistados no estudo da AIPT/UCP as reuniões e as manifestações não são uma ameaça à ordem e à segurança públicas, enquanto 26% defende o contrário. Esta última opção é maioritária entre pessoas com até o 3º ciclo, ao passo que a concordância vai aumentando com o nível de escolaridade de quem responde. A pergunta não distinguiu tipos ou conteúdos dos protestos, teve apenas como foco a perceção dos inquiridos sobre esta forma de expressão individual e coletiva.

Os resultados dividem-se quando a questão é a imparcialidade da polícia e de outras autoridades. 42% dos inquiridos considera que as forças de segurança não fazem qualquer distinção a quem organiza e aos locais onde acontecem as reuniões e manifestações públicas. Em oposição, 37% acha que há parcialidade no tratamento. Os dados mostram diferenças significativas nas respostas em função da escolaridade, havendo maior discordância, com a afirmação, entre os mais escolarizados e os mais jovens. Ou seja, parece haver entre estes uma maior perceção de uma atuação desigual por parte das autoridades – com uns age de uma maneira e com outros de outra.

Para Mónica Soares, a imparcialidade é um “termo muito complexo” tendo em conta as caraterísticas das instituições policiais. Por um lado, a investigadora defende que “nenhum agente vai atuar de igual maneira, portanto será sempre parcial”, por outro, argumenta, é uma profissão que “normaliza, de alguma forma, uma série de ações que se calhar fora daquele contexto, a maioria das pessoas não consideraria legítima”.

O trabalho da investigadora do CES na área da psicologia da justiça centra-se na análise dos discursos usados pelos agentes policiais para “justificar” o uso da força, ou seja, no descomprometimento moral em relação à violência. Mónica Soares dá como exemplo “a própria linguagem” utilizada pelas forças de segurança. Não se fala “em violência”, em vez disso a expressão usada é sempre “uso da força”.

Até que ponto concorda ou discorda com a afirmação:

Discorda totalmente


Discorda

Não concorda nem discorda


Concorda

Concorda totalmente


Ns/Nr

“As reuniões/manifestações públicas e outras formas de protesto representam uma crescente ameaça para ordem pública e a segurança”

“A polícia e outras autoridades tratam todas as reuniões/manifestações públicas da mesma maneira, independentemente de quem as organiza e onde acontecem”

“É preocupante a existência de discursos de ódio, violência e discriminação na polícia”

O uso da força pelos agentes da polícia está legalmente previsto e regulamentado, embora apenas na medida estritamente necessária para eliminar e atenuar as ameaças à segurança pública, ao abrigo de leis e normas internacionais que são vinculativas para o uso da força em Portugal.

No contexto particular das manifestações, Mónica Soares indica que “a maior parte dos agentes não põe em causa as motivações dos manifestantes” e que “o uso excessivo de força” é justificado em muitos casos como uma reação “à falta de respeito à farda que têm vestidos”. “Atos que não estão contidos nas reivindicações em si, mas que vão contra a autoridade dos polícias são um motivo que pode levar à intensificação da violência ou pelo menos o discurso de legitimação dessa ação vem daí”, explica.

Há também as situações em que os polícias argumentam estar apenas a cumprir ordens, como acontece quando há cargas policiais. Nesses casos, a investigadora do CES explica que “os agentes policiais tendem a pôr-se à margem” e a rejeitar a responsabilidade por essas ações.

Ainda sobre as forças de segurança. Outra das perguntas feitas no inquérito da AIPT/UCP revela que dois em cada três inquiridos (68%) estão preocupados com a existência de discursos de ódio, violência e discriminação na polícia. Proporcionalmente, esta resposta é mais elevada entre as pessoas com maiores níveis de escolaridade e entre os jovens. A questão foi feita com o intuito de avaliar a perceção dos inquiridos sobre um tema que ganhou destaque em novembro de 2022, depois de uma investigação conduzida por um consórcio de jornalistas. Nessa investigação era apontada a existência de 591 perfis de polícias, responsáveis pela difusão de mensagens de ódio, discriminação racial e incitamento à violência no seio das forças policiais.

Em janeiro de 2024, foi noticiado pelos media que o inquérito aberto pelo Ministério Público para investigar estas suspeitas ainda não tinha reunido provas para fundamentar uma acusação. Já a Inspeção-Geral da Administração Interna instaurou processos disciplinares a 13 agentes da polícia.

Protestos dos polícias: “Isto não é uma manifestação”

O ano de 2024 mal tinha começado, quando os polícias tomaram a dianteira dos protestos por todo o país, exigindo uma revisão dos rendimentos e melhorias nas condições de trabalho. A iniciativa partiu de um agente para se “transformar num movimento de todos”, diz J., um dos homens que durante várias noites se manteve, em protesto, frente à Assembleia da República, em Lisboa.

“Custa-me ser polícia, defender os direitos dos outros, mas não ter os mesmos”, explica. O agente fala do artigo 270º da CRP, que se refere a restrições ao exercício de direitos como o de expressão, reunião, manifestação no caso de militares e o da não admissão do direito à greve, que abrange todas as forças de segurança, incluindo os polícias, por serem considerados eles próprios agentes do Estado.

A falta de liberdade de expressão é aliás uma das queixas ouvidas, justificada pelo “clima de medo” que se vive no setor. “Quem ousa falar leva logo com um processo disciplinar”, assegura J.. Uma das mensagens mais repetidas neste protesto.

Apesar da ação não ter sido notificada às autoridades, o agente desvaloriza alegando que, entretanto, “alguém já tratou de avisar o município” ainda que não saiba quem são os promotores. Certo é que, desde o primeiro dia, foi permitido ao grupo permanecer no local muito para lá da meia-noite e meia, o horário limite definido no decreto-lei 406/74. Questionado se o tratamento seria o mesmo se não fossem agentes das forças de segurança a protestar, o polícia reage com espanto, para depois declarar que, na verdade, tal “não é uma manifestação” e que “as pessoas” estão ali, como poderiam “estar em vários lugares”.

O tema não é pacífico. O ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro veio dizer que o direito de manifestação dos polícias "é legítimo, respeitável e até valioso" ao mesmo tempo que lembrava "os deveres de quem tem especial responsabilidade na salvaguarda do Estado de direito e da legalidade democrática".

A Amnistia Internacional – Portugal recebeu informações de que o agente que deu origem ao protesto terá sido identificado no local e a ação sido alvo de registo de ocorrência no primeiro dia, a 7 de janeiro.

Qual é a sua opinião geral sobre reuniões/manifestações públicas e outras formas de protesto?

Já no último dia do ano de 2023, a 31 de dezembro, um outro evento, igualmente não notificado, deu lugar a uma situação bem diferente.

A manifestação tinha sido convocada através das redes sociais pelo fim das prisões e pela libertação da Palestina, frente ao Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL). Durante mais de duas horas, algumas dezenas de pessoas juntaram-se no passeio do lado oposto do edifício da prisão, com a ação a ser acompanhada desde o início por cerca de uma dezena de agentes da PSP, sem incidentes.

Segundo informações recolhidas pela Amnistia Internacional - Portugal, seriam quase 19h00 quando começaram os problemas. Com o protesto já a desmobilizar, terá chegado uma carrinha do corpo de intervenção da PSP. O jornalista Ricardo Esteves Ribeiro que estava no local decidiu nessa altura ficar mais um pouco: “O ambiente não me estava a soar bem. Já estive noutras manifestações e vi o mesmo a acontecer”, relata.

Dois agentes terão ido falar com um dos manifestantes para pedir a sua identificação. O ativista terá questionado a polícia sobre o porquê de ter de se identificar, estando o protesto já no fim. Perante a recusa de apresentar os documentos, é imobilizado e detido. Ricardo tenta então aproximar-se e põe a gravar. No vídeo, é visível um polícia a dar bastonadas, ouve-se a voz do repórter a repetir ser um jornalista e a perguntar quem era o agente responsável pela operação. Segundo os relatos feitos à Amnistia Internacional - Portugal, o telemóvel do jornalista ainda terá sido apreendido durante uns minutos.

Ricardo Esteves Ribeiro apresentou queixa contra as agressões de que foi alvo e contra o facto de vários polícias não estarem a usar identificação visível no uniforme, como obriga a lei. A Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI) confirma que foi aberto um processo interno de inquérito.

Ativistas denunciam abusos

Teresa Violante reforça a preocupação na forma como a legislação sobre o direito à reunião e manifestação tem sido aplicada. A constitucionalista refere o último relatório do Comité para a Prevenção da Tortura do Conselho da Europa4 e fala de um “caldinho em que as pessoas não têm como se proteger de violações”. “Temos um catálogo extremamente generoso de direitos fundamentais, liberdades e garantias, mas depois não temos os remédios, os instrumentos para os fazer efetivar”, defende. Também Prata Roque cita casos de “alguns excessos” dentro das esquadras, mas também fora. “Tem havido apreensão de bens pessoais que não são manifestamente instrumentos da prática de crime. Por exemplo, telemóveis retirados a manifestantes sem nenhum fundamento legal. Ou casos em que são retiradas mochilas e malas que não apresentam risco nenhum para a segurança pública”.

À Amnistia Internacional - Portugal têm chegado relatos de violência verbal e revistas abusivas a manifestantes por parte de agentes da polícia, em especial, dentro das esquadras.

Um dos casos terá acontecido durante a vaga das ocupações pelo Clima no mês de novembro de 2023. Os ativistas descrevem detenções violentas, com braços torcidos e dedos enfiados nos olhos, e várias ameaças verbais dos agentes: “Os que vão para a esquadra é que vão ver. Vai ser tudo à chapada”, “Eu faço-te o que eu quiser”; “Parece que nós os dois vamos ter problemas”. No transporte, relatam a falta de colocação de cinto de segurança em alguns detidos e condução perigosa. Já na esquadra, denunciam que uma das estudantes terá sido obrigada a despir-se da cintura para baixo para ser “revistada” e há ainda relatos de diálogos entre polícias ouvidos pelos ativistas em que estes se referem às mulheres do grupo como “putas”. Questionados sobre o que aconteceu naquela noite, a Direção Nacional da Polícia de Segurança Pública alega que o caso foi reportado à Autoridade Judicial competente, e que, por isso, “não se pronuncia por ora, quanto à mesma”.

Em outubro de 2023, doze ativistas do Climáximo terão sido abordados por polícias à paisana junto ao local onde iria decorrer a meia-maratona de Cascais. São revistados, os materiais que levavam em sacos e mochilas apreendidos e levados para a esquadra, sem que alegadamente lhes fosse dito de que crime eram suspeitos. Entre eles estaria uma menor.

Nos esclarecimentos enviados à Amnistia Internacional - Portugal, a Direção Nacional da PSP garante que os “cidadãos não foram algemados, nem privados da sua liberdade” e que acompanharam os agentes até à esquadra “sem qualquer oposição”. Os ativistas negam esta versão.

Horas depois foram deixados ir, acusados do crime de desobediência qualificada por não terem notificado as autoridades do protesto que nunca chegou a acontecer. O caso foi arquivado pelo Ministério Público.

A Amnistia Internacional - Portugal pediu esclarecimentos à IGAI sobre estes dois casos, que nos informou terem sido iniciados procedimentos administrativos para investigar o sucedido.

No início de 2024, ativistas do Climáximo denunciaram terem sido também vítimas de revistas abusivas numa ação em dezembro de 2023, alegando que as mulheres detidas teriam sido obrigadas a despir-se nas esquadras para onde foram conduzidas. O Ministro da Administração Interna confirmou à Amnistia Internacional - Portugal a abertura de um inquérito urgente. Em 2021, uma agente foi repreendida por um comportamento semelhante. Na consulta aos relatórios disciplinares publicados pela IGAI desde 2016, este é o único processo relativo a casos que aconteceram no contexto de reuniões ou manifestações públicas.

Para o jurista Prata Roque este tipo de revista é uma forma de humilhação dos ativistas. “Parece-me um tratamento manifestamente degradante e excessivo para pessoas que são acusadas do crime de desobediência ou do crime de corte de tráfego rodoviário. Não vejo qual seria a arma do crime que pudesse ser encontrada no corpo de um manifestante acusado de um crime deste tipo”.

Até que ponto concorda ou discorda com a afirmação:

Discorda totalmente


Discorda

Não concorda nem discorda


Concorda

Concorda totalmente


Ns/Nr

“Em Portugal podemos manifestar-nos sem restrições, em comparação com muitos outros países”

Este inquérito foi realizado pelo CESOP-Universidade Católica Portuguesa para a Amnistia Internacional Portugal entre os dias 9 e 29 de novembro de 2023. O universo alvo é composto por residentes em Portugal com idade igual ou superior a 16 anos. Os inquiridos foram selecionados aleatoriamente a partir duma lista de números de telemóvel, também ela gerada de forma aleatória. Todas as entrevistas foram efetuadas por telefone. Os inquiridos foram informados do objetivo do estudo e demonstraram vontade de participar. Foram obtidos 1001 inquéritos válidos, sendo 48% dos inquiridos mulheres. Distribuição geográfica: 32% da região Norte, 19% do Centro, 33% da A.M. de Lisboa, 7% do Alentejo, 5% do Algarve, 2% da Madeira e 2% dos Açores. Todos os resultados obtidos foram depois ponderados de acordo com a distribuição da população por sexo, escalões etários e região com base nos dados do INE. A taxa de resposta foi de 31%. A margem de erro máximo associado a uma amostra aleatória de 1001 inquiridos é de 3,1%, com um nível de confiança de 95%.

Em fevereiro de 2024, na sequência de uma visita a Portugal e a outros países, o Relator Especial das Nações Unidas (ONU) para os Defensores do Ambiente ao abrigo da Convenção de Aarhus divulgou um conjunto de recomendações.

Entre elas, "que quaisquer restrições impostas aos manifestantes sejam reduzidas ao mínimo, sejam estritamente controladas e estejam em conformidade com as normas internacionais em matéria de direitos humanos.

Isto inclui a prevenção e a revogação de medidas e práticas que possam ter um efeito inibidor sobre o ativismo e os protestos ambientais, tais como controlos de identidade indiscriminados ou abusivos e a prisão, detenção e acusação de manifestantes pacíficos e jornalistas".

Na mesma publicação, o relator especial da ONU insta os Estados a garantirem que "a abordagem dos tribunais aos protestos disruptivos, incluindo quaisquer sentenças impostas, não contribua para a restrição do espaço cívico".

1 Segundo o Regulamento de Acesso, Circulação e Permanência nas Instalações da Assembleia da República, quem perturbar o funcionamento da sessão plenária incorre no crime previsto no art. º334 do Código Penal, punível com pena de prisão até 3 anos.

2 Em Portugal, o direito à liberdade de reunião pacífica está consagrado na Constituição e as reuniões públicas não precisam de ser autorizadas pelas autoridades. No entanto, nos termos do decreto-lei 406 de 1974, os organizadores de uma manifestação devem notificar as autoridades.

3 A Amnistia Internacional - Portugal pediu esclarecimentos sobre este acidente à IGAI, à Direção Nacional da PSP, ao Comando Metropolitano de Lisboa e ao comandante da esquadra da Penha-de-França, mas ninguém quis comentar o caso.

4 Relatório do Comité para a Prevenção da Tortura do Conselho da Europa sobre Portugal (2023)

Recomendações

Numa altura em que a Amnistia Internacional está a desenvolver uma campanha global para reforçar a proteção do direito de manifestação, os resultados do inquérito da Amnistia Portugal e da Universidade Católica Portuguesa e os casos que a seção portuguesa investigou e acompanhou referentes aos últimos anos são evidência das medidas que o país e as autoridades nacionais devem implementar com urgência:

01

Rever o decreto-lei 406/74, que regula o direito de reunião/manifestação, com vista a garantir a sua conformidade com a Constituição da República Portuguesa e com as leis e normas internacionais vinculativas para Portugal.

Garantir que os requisitos para a notificação de reuniões/manifestações sejam tratados apenas como um aviso sobre a intenção de realizar um protesto e não como um pedido de autorização para que as pessoas possam exercer o seu direito à liberdade de reunião pacífica. A falta de notificação oficial não deve ser usada como fundamento para determinar que uma manifestação é ilegal ou para permitir a sua dispersão. Os requisitos de notificação nunca devem ser aplicados como um fim em si mesmo.

02

03

As autoridades devem garantir, nos termos do direito e das obrigações internacionais, que o processo de notificação seja transparente, gratuito, coerente, não burocrático e não discriminatório.

Assegurar que todos os municípios e outras autoridades competentes forneçam informações claras e completas sobre o direito à liberdade de reunião pacífica e sobre os procedimentos de notificação de protestos, divulgando essas informações em plataformas online e em locais visíveis e acessíveis. As autoridades devem assegurar, em conformidade com o direito internacional, que a liberdade de reunião pacífica e os procedimentos de notificação das manifestações sejam respeitados.

04

05

Todos os municípios, juntamente com outras autoridades competentes, devem publicar dados sobre o número (e os tipos) de manifestações notificadas a cada autoridade competente; o número de manifestações notificadas às quais foram impostas restrições (e os tipos de restrições impostas); o número de manifestações não notificadas alvo de registo de ocorrência (por tipo, local e, mais uma vez, se foram impostas quaisquer restrições).

Rever a formação e os protocolos das forças policiais para garantir que estão em conformidade com a legislação e as normas internacionais relativas ao policiamento de manifestações, incluindo os princípios fundamentais sobre prevenção e dissuasão, e não-discriminação. O policiamento de protestos deve respeitar as obrigações do Estado de tolerar protestos pacíficos ainda que disruptivos; de proteger os manifestantes pacíficos de contra-manifestantes; e de não dispersar manifestantes pacíficos, a menos que a perturbação causada seja grave e duradoura.

06

07

O policiamento de reuniões/manifestações públicas deve garantir a proteção de jornalistas e de observadores de manifestações a trabalhar nestes contextos, nomeadamente no que se refere ao seu direito de denunciar e monitorizar qualquer eventual abuso ou violação dos direitos humanos.

Assegurar que qualquer restrição a ações de desobediência civil seja considerada e avaliada no âmbito da legislação nacional, em conformidade com o direito internacional e as normas relativas aos direitos de liberdade de consciência, de expressão e de reunião pacífica.

08

09

Qualquer uso da força por parte das forças policiais deve respeitar os princípios da legalidade, necessidade e proporcionalidade e, sempre que recorra à força, a polícia deve respeitar a legislação internacional em matéria de direitos humanos, incluindo o direito à vida e a proibição da tortura e de outros maus-tratos, e tomar sempre as medidas adequadas no sentido de minimizar o risco de ferimentos e de morte.

O Estado deve aplicar todas as recomendações pertinentes dos mecanismos internacionais de direitos humanos, incluindo o Comité do Conselho da Europa para a Prevenção da Tortura, e assegurar que todas as alegações de maus tratos e de uso desnecessário ou excessivo da força por parte da polícia no contexto do policiamento de manifestações públicas sejam investigadas de forma independente, rápida, imparcial e eficaz e que os responsáveis sejam levados a tribunal, e que o direito à liberdade de reunião pacífica seja plenamente protegido.

10

Já está nas bancas a 5ª edição da revista Humanista

Esta nova edição fala sobre a liberdade de expressão e manifestação, num período emblemático para Portugal, que comemora os 50 anos do 25 de Abril. A Amnistia Internacional – Portugal apresenta os primeiros resultados de uma investigação e de um inquérito sobre a liberdade de manifestação, este último feito em parceria com a Universidade Católica Portuguesa, numa edição que conta com uma ilustrações de Hugo Van Der Ding, os testemunhos de Sérgio Godinho, Miguel Esteves Cardoso, Ai Weiwei, Maria Teresa Horta, Simone de Oliveira e Edson Athayde, e um portefólio do fotógrafo Marques Valentim, dedicado ao 25 de Abril.