23 Agosto 2018

A forma como a Florida aplica a pena de morte está a aprofundar cada vez mais o isolamento do estado norte-americano nesta matéria de direitos humanos e, recentemente, acrescentou mais uma camada extra de arbitrariedade ao seu sistema de pena capital já discriminatório e propenso ao erro, denuncia a Amnistia Internacional em novo relatório publicado esta quinta-feira, 23 de agosto.

“Apesar de vários estados norte-americanos terem abraçado o abolicionismo nos anos recentes, a Florida permanece inflexível na defesa da pena de morte e é um de já só uma mão cheia de estados que são responsáveis pela maior parte das execuções nos Estados Unidos”, frisa a diretora da Amnistia Internacional para as Américas, Erika Guevara-Rosas.

“Apesar de vários estados norte-americanos terem abraçado o abolicionismo nos anos recentes, a Florida permanece inflexível na defesa da pena de morte e é um de já só uma mão cheia de estados que são responsáveis pela maior parte das execuções nos Estados Unidos.”

Erika Guevara-Rosas, diretora da Amnistia Internacional para as Américas

A perita da organização de direitos humanos lembra que “a lei de condenação à pena capital na Florida foi declarada inconstitucional há dois anos e, mesmo assim, o estado tem o segundo maior corredor da morte em todo o país”. “A resposta que a Florida deu à declaração de inconstitucionalidade tem sido entrincheirar-se ainda mais na defesa do indefensável, incluindo a execução de pessoas com deficiências mentais e intelectuais”, denuncia.

O “estado radioso” (Sunshine State, alcunha da Florida) mostra poucos sinais de vir a juntar-se aos 19 estados norte-americanos que já aboliram a pena capital ou até mesmo àqueles que estão presentemente a repensar a sua aplicação. É o quarto estado que mais execuções levou a cabo no país desde 1976, ano em que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos aprovou nova legislação da pena capital.

Este novo relatório da Amnistia Internacional – intitulado Darkness visible in the Sunshine State: The death penalty in Florida” (Escuridão visível no ‘estado radioso’: a pena de morte na Florida) – analisa a quantas pessoas condenadas à morte tem sido negada a oportunidade de as suas sentenças serem reavaliadas a partir da reação deste estado ao caso Hurst v. Florida, de 2016, no qual o Supremo Tribunal dos EUA revogou a legislação estadual de pena capital da Florida por esta dar aos júris apenas um papel consultivo na atribuição da sentença à pena de morte.

Em vez de reagir àquela decisão com uma séria reavaliação do seu sistema de pena capital, os legisladores na Florida apressaram-se antes a alterar a lei de forma a ser possível retomar as pronúncias de pena de morte com celeridade. E, entretanto, o Supremo Tribunal da Florida fez com que a decisão tomada no caso Hurst se aplique apenas a um grupo limitado dos processos existentes, o que significa que quase metade das 400 pessoas que estavam então no corredor da morte não teriam sequer direito a novas audiências de pronúncia de sentença.

Como previu um dos juízes da Florida, quando expressou as suas objeções à decisão de ser concedida apenas uma limitada retroatividade, o destino de quem estava no corredor da morte ficaria a depender de “pouco mais do que um lançar dos dados”. Quatro pessoas que foram consideradas fora da limitação da retroatividade foram já executadas; muitas mais aguardam a execução.

O relatório Darkness visible in the Sunshine State” expõe casos que exemplificam a arbitrariedade que tem recaído sobre os corredores da morte, demonstrando como algumas pessoas estão a ser poupadas e outras não, frequentemente devido apenas a uma questão de calendário.

Matthew Marshall, por exemplo, está no corredor da morte, condenado por homicídio cometido em 1988 quando tinha 24 anos. O júri no seu julgamento votou de forma unânime pela aplicação de uma sentença de pena perpétua mas o juiz sobrepôs-se a essa decisão condenando-o à morte. Apesar de este desenlace ser agora proibido na Florida por força da decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos no caso Hurst, as autoridades da Florida consideraram que Matthew Marshall não é elegível para a atenuação retroativa da pena.

Mesmo antes da decisão no caso Hurst, dois juízes do Supremo Tribunal dos Estados Unidos tinham já argumentado que o sistema de pena de morte no país entrara em colapso devido à arbitrariedade e propensão ao erro em que está envolta, além de que – sustentaram os mesmos juízes – não estava a ser aplicada apenas “aos piores dos piores” crimes e criminosos, como é exigido pela lei constitucional norte-americana. O que se passa na Florida espelha todas essas preocupações.

“Os Estados Unidos têm de deixar de recorrer a esta punição que é a mais cruel, desumana e degradante e juntar-se aos 142 países que hoje em dia já são abolicionistas na lei ou na prática.”

Erika Guevara-Rosas, diretora da Amnistia Internacional para as Américas

Este novo relatório centra-se em três categorias de presos no corredor da morte: pessoas com graves deficiências mentais, pessoas a quem foi diagnosticada deficiência intelectual efetiva ou limítrofe e jovens adultos com uma maturidade mental abaixo dos 18 anos e um historial de terem sofrido graves privações e abusos.

Ao serem condenados à pena capital, estes réus são classificados como “os priores dos piores” – criminosos cuja “culpabilidade extrema os torna merecedores de execução”. Mas os casos que a Amnistia Internacional analisa neste relatório põem em dúvida a suposição de que o uso da pena de morte na Florida esteja com efeito a cumprir a restrição constitucional prevista para a pena capital nos Estados Unidos.

Entre os casos avaliados pela Amnistia Internacional está o de Tony Watts, condenado à morte na Florida em 1989 e que passou quase metade dos anos desde aquela altura num hospital-prisão psiquiátrico devido à sua profunda deficiência mental. O estado da Florida continua, porém, a defender a aplicação da pena capital que lhe foi proferida em vez de a comutar.

O relatório Darkness visible in the Sunshine State” destaca ainda como a raça dos réus influencia a atribuição da pena de morte na Florida. Em 96 das execuções feitas neste estado norte-americano desde 1976, vinte dos condenados eram negros condenados por homicídio de pessoas brancas, mas nenhum réu branco foi jamais executado pelo homicídio de apenas uma pessoa negra. E, mesmo face a este desequilíbrio, continua a ser quase impossível que quem enfrenta a pena de morte possa montar uma defesa bem-sucedida com base em discriminação racial sistémica.

“Os Estados Unidos têm de deixar de recorrer a esta punição que é a mais cruel, desumana e degradante e juntar-se aos 142 países que hoje em dia já são abolicionistas na lei ou na prática”, exorta Erika Guevara-Rosas.

A diretora da Amnistia Internacional para as Américas sublinha que “um erro não justifica o outro”. “A pena de morte não é forma de prestar justiça. A Florida e todos os outros estados onde a pena capital ainda é usada têm de impor imediatamente moratórias às execuções, até acabarem com esta prática cruel de uma vez por todas”.

“Um erro não justifica o outro. A pena de morte não é forma de prestar justiça. A Florida e todos os outros estados onde a pena capital ainda é usada têm de impor imediatamente moratórias às execuções, até acabarem com esta prática cruel de uma vez por todas.”

Erika Guevara-Rosas, diretora da Amnistia Internacional para as Américas

A Amnistia Internacional opõe-se à pena de morte incondicionalmente. A organização de direitos humanos insta o governador da Florida e o seu gabinete a parar de assinar mandados de morte e a comutar as sentenças de pena capital a todos quantos se encontram nos corredores da morte – como primeiras medidas críticas rumo à abolição.

Por seu lado, os procuradores do estado da Florida devem cessar de requerer esta pena quando tratam de casos de homicídio qualificado e, no mínimo, as autoridades têm de garantir que todos os juízes e todos os júris estão profundamente conscientes das provas mitigantes relacionadas com as deficiências mentais e intelectuais, com a imaturidade emocional e psicológica e com os historiais de sofrimento de abusos e privação de todos os réus suscetíveis de serem condenados à pena capital e de todos os presos que se encontram nos corredores da morte.

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