6 Novembro 2014

Milhares de pessoas sobrevivem em condições desesperantes na terra de ninguém entre a Síria e a Turquia, obrigadas a fugir do país natal face ao avanço do grupo armado islamita Estado Islâmico. São quase todos homens. Sem água, sem pão, sem médicos, impedidos de avançar pelas autoridades turcas para maior segurança, é testemunhado neste texto de blogue do investigador da Amnistia Internacional Neil Sammonds em Kobani, na fronteira turco-síria.

Uma nuvem de pó levantada pelos ataques aéreos norte-americanos move-se ao longo da fronteira, desde Kobani, e não deixa ver os topos montanhosos turcos em diante. A maior parte dos que a olham, se não mesmo todos – curdos, sem exceção, tanto da Síria como da Turquia –, concordam que os danos causados na cidade pelos bombardeamentos aéreos é um preço que vale a pena pagar.

Muitos creem mesmo que a defesa de Kobani, liderada por combatentes sírios curdos, teria colapsado sem aqueles ataques. “A minha casa pode até ser destruída mas se isso significar que as forças Daesh [como o grupo Estado Islâmico é designado localmente] são afastadas então fico feliz”, conta um dos habitantes da cidade.

Combatentes das Unidades de Proteção Popular (YPG), ligadas ao Partido União Democrática (PYD) lideram as defesas da cidade face ao grupo armado, geralmente detestados pelos curdos.

Os residentes das várias povoações nos arredores de Kobani, e depois também a própria cidade, fugiram do rápido avanço do Estado islâmico, bem conscientes das atrocidades cometidas pelo grupo islamita sobre os curdos iraquianos na região da montanha do Sinjar e em outras zonas. Cerca de 200 mil pessoas escaparam para a Turquia, dois terços delas em apenas quatro dias de setembro passado.

Um pequeno número de civis ficou para trás nas aldeias, alguns fisicamente incapazes de partir – e outros sem o quererem. O contacto com estas pessoas perdeu-se. São-nos dados os nomes de habitantes que se crê terem sido mortos. Outras testemunhas relatam que familiares e amigos foram capturados pelo Estado Islâmico.

Ver a casa ao longe, mergulhada em combates

Na visita a um dos recém-criados campos de refugiados perto da cidade de Suruc, na Turquia, uma mulher síria curda conta que o sogro e o filho deste decidiram ficar na aldeia de Tel Hajeb “porque aquela é a casa deles”. Não chegam notícias de nenhum deles há já um mês.

No topo da colina, um homem alto e jovem recorda que no dia anterior foi observar a sua aldeia natal, Zorava, a oito quilómetros para oeste de Kobani, a distância seguira, ainda do lado turco da fronteira. Em Zorava, de onde ele e o resto da população fugira, conseguiu ver homens armados, que julga serem combatentes do Estado Islâmico, a lavarem roupas e a estenderem-nas para secar.

Cerca de duas mil pessoas acabaram por se ver encurralados numa terra de ninguém entre a Síria e a Turquia. Encontrámos mais de uma dezena de homens numa tira de terra, de uns 25 metros por 100 metros, no meio das barreiras fronteiriças a leste de Kobani (na zona entre a aldeia de Alanyurt na Turquia e a aldeia síria de Kikan), que nem se via do cimo da colina.

“Somos mais de 200 aqui. Temos as roupas que temos no corpo, os nossos carros, nos quais dormimos, e as nossas ovelhas, que estão a morrer”, descreveu um homem idoso.

Muitos relatam que foram obrigados a deixar os seus carros antes de atravessarem a fronteira para a Turquia. Ao confirmarmos esta informação com um dos guardas fronteiriços turcos, este encolhe os ombros e diz que “são essas as ordens”.

Para noroeste de Kobani, do lado turco, centenas de carros e carrinhas brilham ao sol da tarde. Os veículos foram confiscados pelas autoridades turcas e dezenas de proprietários e outros que os conduziam rondam por ali, mantendo debaixo de olho o que lhes pertence através das grades de segurança. Muitos pediram-nos que intercedêssemos em nome deles para que as autoridades turcas libertem os seus veículos.

“Que nos permitam registar os carros, levá-los ou vendê-los e partir. Sentimo-nos aqui como prisioneiros”, explicou um destes homens. O grupo mais numeroso de pessoas encurraladas na terra de ninguém está para trás do complexo onde os carros estão apreendidos. São mais de dois mil deslocados sírios que sobrevivem naquela zona em condições desesperantes.

Dormir dentro de carros com minas por todo o lado

Passamos dois postos de controlo do Exército turco para conseguir alcançá-los, mas já não o terceiro: enquanto esperamos a autorização que acabou por não nos ser dada, falamos com vários sírios aos quais foi permitido deslocarem-se para arranjarem comida e medicamentos.

“Fui à procura de laranjas e de pão para levar de volta para a minha família”, conta um homem, visivelmente exausto, que carrega dois sacos de plástico com comida. “Mas os soldados fizeram-me ficar aqui à espera umas cinco horas”. Outro homem diz que “não há água, nem pão, nem médicos”. “Dormimos dentro ou debaixo dos carros e escondemo-nos atrás quando os combates e os bombardeamentos soam próximos”.

Um outro homem relata que foi espancado, assim como dois outros, por polícias turcos que os acusaram de serem membros das Unidades de Proteção Popular – o que ele nos garante ser mentira. Identificamos várias pessoas que vestem os uniformes do Crescente Vermelho Sírio, e nos contam que tinham acabado de distribuir os cerca de mil pães e sacas de farinha que todos os dias entregam aos que se encontram na terra de ninguém.

“Um dos maiores medos é o das minas terrestres. Quatro pessoas morreram aqui por causa delas, e outras 17 ficaram feridas”, informam-nos os trabalhadores do Crescente Vermelho.

De volta ao topo da colina, os homens – e aqui só há homens – comentam o que veem e ouvem dos combates que se desenrolam em frente: “Kalashnikov”, “Doshka” (uma metralhadora pesada), “um morteiro disparo pelos Daesh contra as posições das Unidades de Proteção Popular”, “combates de rua”, “os Daesh a pegarem fogo a edifícios para se moverem a coberto do fumo”. Às vezes apontam para o céu, ao vislumbrarem aviões norte-americanos.

Conforme o sol baixa no horizonte, seguimos para norte do topo da colina ao mesmo tempo que os combates prosseguem na cidade e centenas de civis se preparam para mais uma dura noite na terra de ninguém.

 

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