15 Agosto 2025

 

  • Desde que os Talibãs assumiram o poder em agosto de 2021, o quadro jurídico do Afeganistão foi totalmente desmantelado e substituído por um sistema de base religiosa moldado pela interpretação estrita da lei islâmica Sharia
  • Sentenças proferidas sem julgamento justo ou revisão legal adequada resultam frequentemente em punições públicas — incluindo chicotadas e execuções — realizadas em praças e estádios desportivos
  • Talibãs devem reverter imediatamente os seus decretos draconianos, acabar com as punições corporais e respeitar os direitos humanos de todas as pessoas no país
  • Amnistia Internacional apela à comunidade internacional para que tome medidas imediatas, através de pressão diplomática e de um envolvimento baseado em princípios com as autoridades de facto dos Talibãs

 

 

As autoridades de facto do Afeganistão devem pôr imediatamente termo à administração arbitrária e injusta da justiça, restabelecendo um quadro constitucional e jurídico formal e o Estado de direito, em conformidade com as obrigações internacionais do país em matéria de direitos humanos, afirmou esta sexta-feira a Amnistia Internacional.

Desde que os Talibãs assumiram o poder em agosto de 2021, o quadro jurídico do Afeganistão foi totalmente desmantelado e substituído por um sistema de base religiosa moldado pela interpretação estrita da lei islâmica Sharia pelos Talibãs. O sistema é marcado por inconsistências, impunidade generalizada e falta de responsabilização; julgamentos arbitrários, injustos e fechados; e preconceitos pessoais na aplicação de punições, como açoites públicos e outras formas de tortura e maus-tratos.

“Após quatro anos de governo talibã, o que resta é uma ordem jurídica profundamente opaca e coerciva, que prioriza a obediência sobre os direitos e o silêncio sobre a verdade”, disse Samira Hamidi, ativista regional da Amnistia Internacional para o Sul da Ásia.

“Após quatro anos de governo talibã, o que resta é uma ordem jurídica profundamente opaca e coerciva, que prioriza a obediência sobre os direitos e o silêncio sobre a verdade”

Samira Hamidi

“O sistema judicial dos Talibãs está a causar flagrantes injustiças. O sistema judicial não só se afastou dos padrões internacionais de direitos humanos, como também reverteu quase duas décadas de progresso”, acrescentou Samira Hamidi.

 

“Não há nenhuma lei a que se referir”

Antes de agosto de 2021, as leis afegãs baseavam-se numa Constituição escrita e eram aprovadas por órgãos legislativos eleitos, após as reformas feitas em 2001 que levaram a várias melhorias no país. Os tribunais funcionavam em vários níveis (tribunais de primeira instância, de recurso e supremos) e eram apoiados por procuradores independentes e estruturas de defesa jurídica. As decisões judiciais eram geralmente documentadas, passíveis de recurso e sujeitas a supervisão pública.

Sob o regime talibã, os processos judiciais são geralmente conduzidos por um único juiz (Qazi), acompanhado por um especialista jurídico religioso (Mufti), que aconselha sobre a emissão de veredictos religiosos (Fatwas) com base na sua interpretação pessoal dos textos religiosos.

Em declarações à Amnistia Internacional, um ex-juiz no Afeganistão explicou as grandes discrepâncias nos julgamentos devido ao uso de diferentes orientações do pensamento islâmico (fiqh) e da jurisprudência: “Em alguns distritos, as decisões são baseadas no Bada’i al-Sana’i [manual clássico de jurisprudência], enquanto noutros, elas referem-se ao Fatawa-i Qazi Khan [livro de fatwas]. O mesmo crime pode resultar em dois veredictos completamente diferentes”. Para uma acusação criminal como roubo, as penas podem variar de açoites públicos a detenção de curta duração, com base em interpretações individuais.

Esta falta de uniformidade jurídica tornou o sistema incerto, imprevisível e arbitrário. Um ex-procurador disse que, em alguns tribunais rurais afegãos, os juízes foram vistos a consultar textos religiosos durante os julgamentos para encontrar referências adequadas, o que levou a longos atrasos e resultados inconsistentes. A ausência de leis nacionais codificadas privou as pessoas, incluindo cidadãos e profissionais do direito, de qualquer clareza ou certeza sobre os seus direitos e responsabilidades.

Um ex-procurador disse que, em alguns tribunais rurais afegãos, os juízes foram vistos a consultar textos religiosos durante os julgamentos para encontrar referências adequadas, o que levou a longos atrasos e resultados inconsistentes

 

Desaparecimento das mulheres no sistema judicial

Antes da tomada do poder pelos Talibãs, as mulheres exerciam ativamente funções de juízas, procuradoras e advogadas.

Elas representavam entre 8% e 10% do poder judiciário, e quase 1.500 mulheres estavam registadas como advogadas e defensoras legais na Ordem dos Advogados Independentes do Afeganistão (AIBA), compreendendo cerca de um quarto do total de seus membros. Hoje, a maioria foi forçada a esconder-se ou a exilar-se após serem demitidas dos seus cargos depois da tomada do poder pelos Talibãs.

Instituições que antes serviam para proteger os direitos das mulheres, como tribunais de família, unidades de justiça juvenil e unidades de violência contra as mulheres, foram desmanteladas, deixando as mulheres quase sem acesso à justiça e a recursos eficazes. Como disse uma ex-juíza: “Nos tribunais talibãs, a voz da mulher não é ouvida, não porque ela não tenha nada a dizer, mas porque não há mais ninguém para ouvi-la”.

“Nos tribunais talibãs, a voz da mulher não é ouvida, não porque ela não tenha nada a dizer, mas porque não há mais ninguém para ouvi-la”

Ex-juíza

 

Esta fotografia tirada a 10 de dezembro de 2024 mostra uma parteira afegã a preparar um relatório na secção de pediatria de um hospital privado em Cabul. O líder supremo dos Talibãs está alegadamente por trás da proibição das mulheres estudarem obstetrícia e enfermagem em institutos de formação em todo o país, que já se encontra entre os piores do mundo em termos de mortalidade materna. Desde que o governo talibã proibiu as mulheres de frequentarem as universidades há dois anos, Shefajo tem ministrado formação médica no local de trabalho, incluindo obstetrícia e enfermagem. Foto de WAKIL KOHSAR/AFP via Getty Images.
Esta fotografia tirada a 10 de dezembro de 2024 mostra uma parteira afegã na secção de pediatria de um hospital privado em Cabul. O governo talibã proibiu as mulheres de frequentarem as universidades desde há mais de dois anos. Foto de WAKIL KOHSAR/AFP via Getty Images.

 

“Vivemos todos com medo”

Uma ex-juíza, que atuou num tribunal de família em Cabul e agora está no exílio, disse: “Não há independência judicial, não há procedimentos judiciais justos e não há acesso a advogados de defesa. Tínhamos construído um sistema jurídico com regras e, da noite para o dia, [os Talibãs] transformaram-no em algo assustador e imprevisível”.

Sob o regime talibã, os processos judiciais são frequentemente realizados em segredo. Não existe um sistema de supervisão pública e as decisões judiciais não são documentadas nem explicadas. As pessoas são detidas sem mandado, presas sem julgamento e, em alguns casos, simplesmente desaparecem à força. Um ex-procurador disse: “Antes de agosto de 2021, tínhamos de justificar todas as detenções com documentação e investigação, mas agora alguém pode ser detido pelas suas roupas ou por se manifestar, e ninguém pergunta porquê”.

As sentenças proferidas sem julgamento justo ou revisão legal adequada resultam frequentemente em punições públicas — incluindo chicotadas e execuções — realizadas em praças e estádios desportivos. Estes atos violam o direito à dignidade e à proteção contra a tortura e as execuções extrajudiciais. Várias testemunhas recordaram ter visto jovens chicoteados em público por ouvirem música ou mulheres detidas por não estarem totalmente cobertas. Estes espetáculos não são apenas punições; são instrumentos de medo e controlo. O ex-procurador acrescentou: “Todos vivemos com medo de nos tornarmos o próximo exemplo”.

“O sistema judicial dos Talibãs mina os princípios básicos de justiça, transparência, responsabilidade e dignidade. Não é construído com base na proteção dos direitos humanos, mas no medo e no controlo. Para muitos afegãos, especialmente mulheres, a justiça já não é algo que possam procurar. É algo sem o qual precisam sobreviver”, disse Samira Hamidi.

“Para muitos afegãos, especialmente mulheres, a justiça já não é algo que possam procurar. É algo sem o qual precisam sobreviver”

Samira Hamidi

Os Talibãs devem reverter imediatamente os seus decretos draconianos, acabar com as punições corporais e respeitar os direitos humanos de todas as pessoas no país. E os Talibãs também devem respeitar, proteger e defender ativamente, e de forma eficaz, a independência judicial e o Estado de direito, incluindo através da reforma do sistema judicial e da garantia de que juízes, advogados, procuradores e outros especialistas jurídicos possam prestar serviços à população afegã, em conformidade com as obrigações internacionais do país em matéria de direitos humanos.

A Amnistia Internacional apela à comunidade internacional para que tome medidas imediatas, através de pressão diplomática e de um envolvimento baseado em princípios com as autoridades de facto dos Talibãs, para exigir o restabelecimento de um sistema jurídico formal, a proteção dos direitos humanos e o Estado de direito no Afeganistão.

 

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