10 Maio 2019

Tratamentos hormonais inseguros, adquiridos no mercado negro, ou cirurgias realizadas em casa. A fórmula tem tudo para ser perigosa, mas não demove quem procura afirmar a sua identidade, na China. O risco é corrido dada a dificuldade de acesso a cuidados de saúde especializados, em tempo útil.

“A China falha às pessoas transgénero. Leis e políticas discriminatórias deixaram muitas pessoas com a sensação de que não têm escolha, a não ser arriscar as suas vidas”

Doriane Lau, investigadora para a China da Amnistia Internacional

No relatório I need my parents’ consent to be myself – Barriers to gender-affirming treatments for transgender people in China (“Preciso do consentimento dos meus pais para ser eu mesmo – Barreiras nos tratamentos para a afirmação de género para transgéneros na China), divulgado hoje pela Amnistia Internacional, salta à vista a discriminação e o estigma prevalecentes, os requisitos restritivos de elegibilidade para os tratamentos e a falta de informação.

“A China falha às pessoas transgénero. Leis e políticas discriminatórias deixaram muitas pessoas com a sensação de que não têm escolha, a não ser arriscar as suas vidas com cirurgias extremamente perigosas, feitas por si próprias, e procurar medicamentos hormonais inseguros no mercado negro”, explica a investigadora para a China da Amnistia Internacional, Doriane Lau.

“As autoridades e a classe médica devem parar de classificar as pessoas transgénero como doentes mentais. É preciso mudar os requisitos altamente restritivos para o acesso a cirurgias de afirmação de género e a falta de informação para que as pessoas possam aceder aos cuidados de que necessitam”, acrescenta.

A comunidade transgénero na China é, em grande parte, invisível. A discriminação está enraizada em casa, na escola, no trabalho e no sistema de saúde.

“É preciso mudar os requisitos altamente restritivos para o acesso a cirurgias de afirmação de género”

Doriane Lau, investigadora para a China da Amnistia Internacional

Apesar de o silêncio dominante, 15 pessoas partilharam as suas experiências com a Amnistia Internacional. De quase todos chegaram-nos relatos de sofrimento emocional.

Zijia (nome fictício), de 21 anos, contou a razão de ter realizado um tratamento hormonal: “Estava ansiosa por mudar o meu corpo. Sentia-me incomodada com as minhas características sexuais masculinas. A medicação trouxe mudanças graduais, mas comecei a estar bem melhor imediatamente. Finalmente, poderia começar a ser eu mesma”.

“A medicação trouxe mudanças graduais, mas comecei a estar bem melhor imediatamente. Finalmente, poderia começar a ser eu mesma”

Zijia, 21 anos

Durante as entrevistas realizadas, a Amnistia Internacional deparou-se com uma alarmante falta de informação sobre o acesso a cuidados de saúde no sistema público. A par disto, os requisitos de elegibilidade são rigorosos e discriminatórios, o que significa que falta apoio para quem precisa de recorrer a estes serviços.

Mas os problemas não ficam por aqui. Quando há a necessidade de realizar cirurgias, é indispensável obter o consentimento das famílias. Por temerem a rejeição, há quem prefira o silêncio.

Outros critérios avaliados antes das cirurgias passam pelo estado civil ou o cumprimento das leis da China. Só está elegível quem nunca casou ou tem o cadastro limpo.

Riscos descontrolados

Sem as respostas necessárias do sistema de saúde, muitas pessoas transgénero não têm alternativa senão avançar para cirurgias, feitas por si próprias, sem qualquer tipo de acompanhamento. Dois relatos feitos à Amnistia Internacional dão conta de experiências traumáticas.

Huiming (nome fictício), de 30 anos, diz ter ficado desesperada, durante a puberdade. Na altura, estava num dilema: aliar as suas caraterísticas sexuais masculinas com a identidade feminina. Já na universidade, começou a automedicar-se, depois de ter adquirido tratamentos hormonais na internet. Devido a mudanças extremas de humor e outros impactos na sua saúde mental, decidiu colocar um ponto final a tudo isto um mês depois.

“Achava que era uma pessoa anormal. Como poderia explicar isso à minha família?”

Huiming, 30 anos

Procurar ajuda num hospital nunca foi opção para Huiming, pois temia a reprovação da família, quando pedisse o consentimento necessário. Em 2016, tomou a decisão de fazer uma cirurgia, em si própria.

“Achava que era uma pessoa anormal. Como poderia explicar isso à minha família? Ao mesmo tempo, estava feliz e assustada. Tive medo porque estava a sangrar tanto que podia morrer ali. Temia que morresse ainda homem, já que só fiz parte da operação”, explica.

Tudo acabou nas urgências. Huiming pediu ao médico para mentir à família e dizer que tinha sofrido um acidente. Os pais nunca souberam deste ato desesperado em que tentou remover os seus órgãos sexuais masculinos.

Em 2017, Huiming viajou até à Tailândia para fazer uma cirurgia de afirmação de género. Antes, partilhou a história que sempre escondeu à mãe. Final feliz? Sim, porque foi aceite tal como é.

Alto preço a pagar

Os tratamentos ilegais podem ser encontrados em redes sociais, lojas on-line ou no exterior, geralmente a preços inflacionados, em comparação com o mercado legal. Nenhum dos entrevistados da Amnistia Internacional procurou conselhos de profissionais de saúde quando começou a tomar medicação.

Fora do sistema de regulação e supervisão, estes procedimentos acarretam vários riscos: efeitos secundários, dosagens perigosas, problemas de humor, depressão, entre outros.

Shanshan (nome fictício), de 21 anos de idade, odiava as suas caraterísticas sexuais masculinas. “A maior ansiedade que tinha era ser homem. Às vezes, sentia-me tão mal que queria o suícidio”, confessa à Amnistia Internacional.

“Às vezes, sentia-me tão mal que queria o suícidio”

Shanshan, 21 anos

Em agonia, Shanshan optou pelo caminho de outros: comprar medicamentos hormonais no mercado negro.

Estes relatos mostram o medo, mas também a ausência de respostas à altura. De facto, a China dispõe apenas de uma clínica multidisciplinar especializada em tratamentos para a afirmação de género. A inauguração teve lugar em setembro de 2018, em Pequim.

“O governo chinês pode mostrar que é sério ao abordar a discriminação contra a comunidade LGBTI, removendo os obstáculos que as pessoas transgénero enfrentam”

Doriane Lau, investigadora para a China da Amnistia Internacional

O país apresenta ainda limitações nas diretrizes seguidas pelos profissionais de saúde. Com a falta de informação que impera, as pessoas transgénero enfrentam inúmeros obstáculos e desafios.

Em março de 2019, o governo chinês aceitou as recomendações do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas para legislar sobre a proibição de discriminação contra as pessoas LGBTI.

“O governo chinês pode mostrar que é sério ao abordar a discriminação contra a comunidade LGBTI, removendo os obstáculos que as pessoas transgénero enfrentam quando tentam aceder a tratamentos seguros de afirmação de género”, nota Doriane Lau.

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