24 Agosto 2020

Imagens chocantes de mulheres, homens e crianças rohingya a serem resgatados de barcos frágeis, após viagens marítimas perigosas, continuam a ser transmitidas em todo o mundo. Os relatos apontam para mais embarcações no mar, com centenas de pessoas a bordo, que precisam urgentemente de salvamento. Alegando restrições impostas devido à COVID-19, há países a ignorar as suas obrigações internacionais e a impedir os desembarques em segurança.

Estas políticas aumentam o risco de se repetirem os erros de 2015, quando o colapso das redes de tráfico deixou milhares de rohingya presos nas águas do sudeste asiático. É provável que centenas de pessoas tenham morrido.

A Amnistia Internacional explica-lhe por que razão os rohingya continuam a arriscar tudo para fugir dos campos de refugiados sobrelotados no Bangladesh e das condições de apartheid no Myanmar. Além disso, expomos como os países da região podem ajudá-los e damos os motivos pelos quais não devem ser enviados de volta ao país de origem.

 

Quem são?

Os rohingya são uma minoria étnica predominantemente muçulmana do Myanmar. Até há pouco tempo, mais de um milhão vivia principalmente no estado de Rakhine, no oeste do país, perto da fronteira com o Bangladesh.

O Myanmar insiste que não existe tal grupo no país, alegando que são “imigrantes ilegais” do Bangladesh. A recusa em reconhecê-los como cidadãos torna a maioria apátrida.

A falta de cidadania tem várias consequências profundamente negativas e permitiu que as autoridades do Myanmar restringissem severamente a sua liberdade de movimento, segregando-os do resto da sociedade. Como resultado, lutam para ter acesso a cuidados de saúde, educação e emprego. Esta discriminação sistemática equivale a apartheid, um crime contra a humanidade segundo o direito internacional.

 

Como é que acabaram no Bangladesh como refugiados?

Desde agosto de 2017, mais de 740 mil rohingya fugiram das suas casas, no estado de Rakhine, depois de os militares terem desencadeado uma campanha brutal de violência contra este grupo.

Durante esta ação, lançada em resposta a ataques coordenados a postos de segurança do grupo armado Exército de Salvação Rohingya de Arracão (ARSA na sigla inglesa) ocorridos a 25 de agosto de 2017, as forças de segurança mataram milhares de pessoas rohingya, violaram mulheres e meninas, transportaram homens e meninos para locais de detenção onde foram torturados, e incendiaram centenas de casas e aldeias. Claramente, tratam-se de crimes contra a humanidade e uma missão de investigação da ONU concluiu que também podem constituir genocídio.

Após esta campanha, os rohingya continuaram a fugir pela fronteira em menor número, deixando para trás a perseguição e o aumento do conflito armado no estado de Rakhine. Em outubro de 2018, um representante da missão de investigação da ONU alertou para o “genocídio contínuo” no Myanmar.

Apesar de a crise de agosto de 2017, no estado de Rakhine, não ter precedentes na escala dos deslocamentos, não é a primeira vez que os rohingya são expulsos com violência de suas casas e do seu país pelas mãos do Estado. No final da década de 1970 e novamente no início da década de 1990, centenas de milhares de pessoas foram forçadas a fugir para o Bangladesh, devido à repressão militar que foi acompanhada por amplas violações dos direitos humanos.

Em 2016, no que muitos viram como um prelúdio para a violência de 2017, quase 90 mil rohingya foram obrigados a fugir para Bangladesh depois de as forças de segurança do Myanmar responderem a ataques a postos da polícia pelo ARSA. A campanha de violência teve como alvo a comunidade como um todo. Na época, a Amnistia Internacional concluiu que essas ações podiam constituir crimes contra a humanidade.

Hoje, estima-se que o número de refugiados rohingya no Bangladesh seja de quase um milhão.

 

Qual é a razão para continuarem a fugir por mar?

Ao viverem em condições de apartheid no Myanmar e limitados pela falta de oportunidades de subsistência nos campos de refugiados no Bangladesh, os rohingya tentam chegar a países como Malásia, Tailândia e Indonésia. Sem vistos e documentos de viagem, estão também sujeitos a rígidas restrições de movimento que tornam as ligações por terra quase impossíveis. Os barcos costumam ser a única opção para abandonar o país.

Ainda que o governo do Bangladesh tenha recebido generosamente milhares de rohingya, não concedeu à grande maioria o estatuto de refugiado. O país não é um Estado-parte da Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 ou do Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados de 1967.

No Bangladesh, os rohingya vivem em abrigos sem condições, a maioria feitos de lonas frágeis e bambu. Durante a época de monções, muitos podem ser seriamente danificados. Cox’s Bazar, onde a maioria dos refugiados rohingya está localizada, é propenso a deslizamentos de terras e inundações repentinas. Um ciclone durante este período tornaria a situação ainda pior. Os acampamentos estão extremamente lotados, com uma densidade de 40 mil pessoas por quilómetro quadrado. A área onde grande parte dos refugiados se encontra é grande o suficiente para ser considerada a quarta maior cidade do Bangladesh, com quase um milhão de habitantes, incluindo a comunidade anfitriã local.

As autoridades do Bangladesh também impuseram bloqueios da internet nos campos de refugiados, deixando a comunidade cada vez mais isolada e incapaz de aceder a informações cruciais sobre formas de proteção da COVID-19. Devido à sobrelotação dos espaços, a pandemia é uma ameaça real.

 

Como podem ser ajudados?

Os governos do Sul e do Sudeste Asiático devem lançar imediatamente operações de busca e salvamento para os rohingya que estão no mar, levando alimentos, medicamentos e permitindo o desembarque em segurança. As autoridades não devem afastar os barcos à força e a COVID-19 não deve ser uma desculpa para impedir que as embarcações aportem e as pessoas solicitem asilo.

As autoridades devem garantir que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados tenha acesso total e desimpedido a quem chegue de barco. Nenhum rohingya deveria passar por mais sofrimento do que aquele que já passou, com exceção do tempo necessário para quarentena e tratamento médico administrado pelas agências humanitárias.

Os governos do Bangladesh e do Myanmar também devem manter o compromisso de que os refugiados rohingya só regressarão com segurança, voluntariamente e com dignidade. Ambos devem garantir que os refugiados sejam capazes de fazer escolhas livres e informadas sobre o regresso ao Myanmar, com base no acesso a informações completas e imparciais sobre as condições no estado de Rakhine, e no apoio para permanecerem no Bangladesh, se assim decidirem.

As autoridades do Bangladesh e do Myanmar também devem assegurar que os rohingya sejam consultados e incluídos em todas as decisões que afetem o seu futuro.

Paralelamente, devem permitir o livre fluxo de informações entre os campos sobrelotados do Bangladesh e em partes dos estados de Rakhine e Chin, onde a internet está atualmente bloqueada, para que os rohingya estejam plenamente cientes das medidas para responder à pandemia.

Medidas específicas para a proteção de refugiados idosos também têm de ser tomadas, já que muitos não têm acesso a smartphones. Além disso, há uma necessidade urgente de acesso a água potável, produtos de higiene e apoio para que para todos os refugiados tenham acesso pleno ao direito à saúde durante a pandemia.

A comunidade internacional também deve fazer muito mais para apoiar o Bangladesh e partilhar a responsabilidade e o ónus financeiro de receber quase um milhão de refugiados num momento em que a economia já está sob pressão devido à desaceleração global relacionada com a COVID-19. Por último, os refugiados rohingya têm o direito de continuar a solicitar asilo e os Estados devem manter as fronteiras abertas a quem continua a fugir – agora ou no futuro.

 

O regresso ao Myanmar pode ser feito em segurança?

O povo rohingya corre o risco de sofrer graves violações de direitos humanos no Myanmar. O direito internacional – em particular o princípio de non-refoulement – proíbe os Estados de devolverem pessoas a locais onde as suas vidas ou liberdades estejam em sério risco.

A ONU afirmou repetidamente que as condições no Myanmar não são propícias ao retorno e que se deterioraram ainda mais, desde janeiro de 2019, após os combates entre o Exército Arakan – um grupo armado que reivindica mais autonomia para os budistas étnicos de Rakhine – e o exército do país.

Os rohingya têm o direito humano inalienável de regressar e viver no Myanmar – é a sua casa e, se quiserem, devem ter permissão para retornar. Mas os governos não devem organizar os regressos a menos que sejam seguros, voluntários, sustentáveis ​​e dignos.

Parte desse processo, o sistema enraizado de discriminação e segregação que fez os rohingya fugirem deve ser desmantelado. Um retorno seguro e digno significa garantir que podem gozar de direitos e cidadania iguais e que as violações generalizadas e sistemáticas de direitos humanos – incluindo crimes ao abrigo do direito internacional – cessarão.

Os responsáveis ​​pelos abusos contra os rohingya também têm de ser responsabilizados. Atualmente, quase todos permanecem em liberdade e continuam a não responder perante a justiça, mantendo posições de poder que lhes permitem cometer mais violações. Os rohingya não podem viver com medo de uma nova onda de violência, que os leve a fugir outra vez.

Em janeiro de 2020, o Tribunal Internacional de Justiça ordenou que o Myanmar tomasse “medidas provisórias” para evitar atos genocidas contra a comunidade rohingya. Até agora, as autoridades fizeram muito pouco para cumprir essa ordem.

O Tribunal Internacional de Justiça não tem jurisdição para julgar indivíduos acusados ​​de abusos contra os rohingya e contra outras minorias nos estados de Rakhine, Kachin e Shan. Por isso, o Conselho de Segurança da ONU deve encaminhar a situação no Myanmar para o Tribunal Penal Internacional.

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