29 Maio 2020

Violações sexuais, execuções extrajudiciais, detenções e prisões arbitrárias, por vezes de famílias inteiras, ou casas incendiadas são algumas das graves violações de direitos humanos cometidas pelas forças de segurança da Etiópia, em resposta a ataques de grupos armados e episódios de violência com motivações étnicas em Amhara e Oromia.

“É inaceitável que as forças de segurança sejam autorizadas a cometer com impunidade violações de direitos humanos”

Deprose Muchena, diretor para a África Oriental e Austral da Amnistia Internacional

No relatório Beyond law enforcement: human rights violations by Ethiopian security forces in Amhara and Oromia (“Além da aplicação da lei: violações de direitos humanos pelas forças de segurança etíopes em Amhara e Oromia”), esta sexta-feira, a Amnistia Internacional documenta como as forças de segurança cometeram graves violações, entre dezembro de 2018 e dezembro de 2019, apesar das reformas que levaram à libertação de milhares de detidos e ao alargamento espaço cívico e político, bem como à revogação de leis draconianas antiterrorismo, que foram usadas anteriormente para reprimir direitos humanos.

“As autoridades etíopes fizeram um progresso notável de mudança no histórico sombrio de direitos humanos do país. No entanto, é inaceitável que as forças de segurança sejam autorizadas a cometer com impunidade violações de direitos humanos”, alerta o diretor para a África Oriental e Austral da Amnistia Internacional, Deprose Muchena.

“Com as eleições no horizonte, estas violações e estes abusos podem sair do controlo, a menos que o governo tome medidas urgentes para garantir que as forças de segurança ajam dentro da lei e permaneçam imparciais no desempenho das suas funções”, explica o mesmo responsável.

Em 2018, o governo do primeiro-ministro Abiy Ahmed suspendeu a proibição que existia para os partidos da oposição, alguns dos quais foram designados organizações terroristas e os seus representantes forçados ao exílio. No entanto, pela primeira vez, foi permitido que participassem nas eleições agendadas para agosto de 2020, só que acabaram adiadas pela pandemia de COVID-19.

“O fracasso em impedir a violência sectária e o uso de força ilegal pelas forças de segurança contra o cidadão comum […] é trágico”

Deprose Muchena, diretor para a África Oriental e Austral da Amnistia Internacional

Ao tentar mobilizar apoio, os políticos têm despertado animosidades étnicas e religiosas, provocando episódios de violência entre comunidades e ataques armados. Estes casos foram registados em cinco dos nove estados regionais do país – Amhara, Benishangul-Gumuz, Harari, Oromia e Nações do Sul, Região das Nações, Nacionalidades e Povos do Sul (SNNPR na sigla inglesa) – e no estado administrativo de Dire Dawa.

Em resposta, o governo criou um comando, em 2018, para coordenar as operações das Forças de Defesa da Etiópia, da polícia federal, das unidades de polícia regular e especial (Liyu) de cada região, e dos agentes de segurança da administração local (milícia kebele).

Cumplicidade em mortes

As tensões aumentaram em Amhara, depois de o grupo minoritário Qimant ter votado a sua própria unidade administrativa autónoma, em setembro de 2017. Este facto resultou em confrontos entre as comunidades Amhara e Qimant.

O novo relatório da Amnistia Internacional revela que a polícia Liyu, a milícia da administração local e dois grupos de jovens vigilantes Amhara uniram forças para atacar membros da comunidade Qimant, em janeiro de 2019 e novamente em setembro e outubro do mesmo ano, provocando pelo menos 100 mortos e centenas de deslocados. Casas e propriedades Qimant também foram destruídas.

Nos dias 10 a 11 de janeiro de 2019, as forças de segurança e grupos de vigilantes atacaram um bairro Qimant, em Metema, com granadas e armas, tendo provocado ainda incêndios em casas. Cinquenta e oito pessoas foram mortas, em 24 horas, uma vez que os soldados de um acampamento militar próximo não responderam aos pedidos de ajuda. Desde setembro de 2018, circulavam panfletos a dizer aos funcionários públicos Qimant para deixar aquela área, mas as autoridades não tomaram medidas.

“A apenas 100 metros da minha casa, os jovens vigilantes queimaram Endihnew Nega, a sua mãe, irmã e o seu bebé, por volta das 22h”

Relato de uma testemunha

Outro ataque, registado a 29 de setembro de 2019, deixou mais 43 mortos e 12 feridos entre a comunidade Qimant. Uma testemunha relatou à Amnistia Internacional que pelo menos uma família foi queimada viva. “A apenas 100 metros da minha casa, os jovens vigilantes queimaram Endihnew Nega, a sua mãe, irmã e o seu bebé, por volta das 22h”, afirmou Tsedal Abate.

“O fracasso em impedir a violência sectária e o uso de força ilegal pelas forças de segurança contra o cidadão comum […] é trágico. As medidas legais e de ordem nunca devem prejudicar as pessoas ou privá-las dos seus meios de subsistência, levando-as à pobreza. As autoridades devem garantir que todas as famílias despejadas e realocadas podem retornar imediata e seguramente às suas casas e quintas”, lembra o diretor para a África Oriental e Austral da Amnistia Internacional, Deprose Muchena.

Execuções extrajudiciais

A Amnistia Internacional documentou a execução extrajudicial de pelo menos 39 pessoas, em Oromia, incluindo um jovem de 17 anos, Seid Sheriff, que foi baleado na cabeça junto a um café em Harqelo, Goro Dola, por supostamente alertar um motorista de moto de que a sua detenção seria iminente. Outro caso relatado aconteceu em Finchawa, Dugda Dawa, quando dois veículos com soldados chegaram à cidade, no dia 28 de dezembro de 2018, e começaram a disparar indiscriminadamente contra pessoas durante uma hora, provocando 13 vítimas mortais. Testemunhas disseram à Amnistia Internacional que o ataque foi uma retaliação ao apedrejamento até a morte de um militar, três semanas antes.

“As autoridades devem parar imediatamente com estes assassinatos terríveis. Além disso, devem garantir que os responsáveis ​​por estes atos insensíveis e brutais enfrentem a justiça”, aponta Deprose Muchena.

Feridas abertas

Durante 2019, pelo menos dez mil pessoas, incluindo famílias inteiras, foram arbitrariamente detidas ou presas, como parte da repressão do governo a ataques armados e à violência sectária na região de Oromia. Apesar de terem sido acusadas de apoiar, partilhar informações e dar comida a membros de um grupo armado (autoproclamado Exército de Libertação de Oromo), nunca foram condenadas.

Muitas pessoas foram presas diversas vezes e algumas delas estiveram privadas de liberdade até cinco meses, tendo sido submetidas a doutrinação política para obrigá-las a apoiar o partido no poder. A maioria foi submetida a agressões brutais.

“Disseram que não se importam se estava grávida ou não. Até referiram que me podiam matar”

Relato de uma mulher grávida de quatro meses

“Fui espancada no dia em que fui presa e no dia seguinte. Disse-lhes que estava grávida [quatro meses], quando me estavam a bater. Mas eles disseram que não se importam se estava grávida ou não. Até referiram que me podiam matar”, contou Momina Roba, que acabou por ter um aborto espontâneo.

Para Deprose Muchena, “as autoridades devem garantir que os agentes responsáveis ​​por estes crimes sejam levados à justiça, enquanto todas as forças de segurança do país recebem formação sobre a aplicação da lei centrada em direitos humanos”.

Desalojamentos forçados

Desde março de 2019, pelo menos 60 famílias das zonas leste e oeste de Oji Guji foram afetadas por desalojamentos forçados, levados a cabo por agentes de segurança, que queimaram casas, muitas vezes com pessoas ainda lá dentro, deixando-as sem teto. A Amnistia Internacional confirmou ainda que outras 300 famílias foram retiradas à força das suas casas em zonas rurais para áreas periférico-urbanas, deixando tudo para trás, como itens domésticos e colheitas.

“Não podemos voltar, embora seja a estação de colheita do café. Enviámos anciãos para pedir às autoridades locais que nos permitam regressar. Eles disseram que não podemos fazer isso porque o apoiamos [o autoproclamado Exército de Libertação de Oromo]”, relatou Faysal Udo.

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