3 Dezembro 2019

  • Amnistia Internacional divulga primeiro relatório sobre o impacto da guerra entre esta faixa da população
  • Apoios escasseiam para, pelo menos, 4,5 milhões iemenitas
  • Resposta da comunidade internacional está muito aquém

Há um outro lado ainda mais esquecido na crise humanitária do Iémen. Milhões de pessoas com deficiência têm suportado não só os anos de conflito armado, como também uma situação extrema de exclusão.

Hoje, Dia Internacional das Pessoas com Deficiência (3 de Dezembro), a Amnistia Internacional divulga o relatório Excluded: Living with disabilities in Yemen’s armed conflict (“Excluídos: Viver com deficiência no conflito armado do Iémen”). É o seguimento de seis meses de investigação, que incluíram visitas a três províncias sul-iemenitas e entrevistas com quase 100 pessoas para documentar a experiência de 53 mulheres, homens e crianças com um amplo diagnóstico de deficiências.

“A Guerra do Iémen tem-se caraterizado por bombardeamentos ilícitos, deslocação e uma penúria de serviços básicos, deixando muitas pessoas a lutar pela sobrevivência. A resposta humanitária está sobrecarregada, mas as pessoas com incapacidades – que já estão entre aquelas em maior risco num conflito armado – não deveriam enfrentar desafios ainda maiores no acesso a ajuda essencial”, afirma Rawya Rageh, especialista em resposta a crises da Amnistia Internacional.

“Os doadores internacionais, as Nações Unidas e as organizações humanitárias que trabalham em conjunto com as autoridades iemenitas têm de fazer mais para ultrapassar as barreiras que impedem as pessoas com deficiências de satisfazerem as necessidades mais básicas”, alerta.

Violência e deslocamentos forçados

As pessoas com incapacidades experienciam dificuldades acrescidas para escapar à violência. Muitas disseram à Amnistia Internacional terem empreendido viagens de deslocação extenuantes, sem cadeiras de rodas, muletas ou outros dispositivos auxiliares. Quase todas dependiam das famílias ou dos amigos. “A viagem foi tortuosa… Fui transferido de autocarro para autocarro – quatro autocarros, no total. O meu vizinho transportou-me”, contou Migdad Ali Abdullah, um jovem de 18 anos com mobilidade reduzida e dificuldades de comunicação, descrevendo a viagem de 18 horas que levou a cabo com a família no início de 2018, de Hodeida até um campo de pessoas deslocadas em Lahj.

Há quem não tenha tido a mesma sorte. Os relatos apontam que muitos ficaram para trás, enquanto as famílias fugiam. A separação foi provocada pelo caos do momento ou porque a viagem era demasiado difícil para ser feita por uma pessoa com deficiência.

Frequentemente, as longas jornadas de sobrevivência destes iemenitas acabaram por piorar as suas condições de saúde. Uma mulher com 92 anos de idade, que já tinha mobilidade reduzida, garantiu que uma queda lhe provocou múltiplas fraturas, quando tentava fugir de combates na sua aldeia, em Ta’iz.

Nos campos para os deslocados, a Amnistia Internacional observou falhas de design que afetam as pessoas com deficiências. Isto inclui a disposição das casas de banho, bem como a localização dos pontos de distribuição de ajuda – ambos negam a independência e dignidade às pessoas com deficiência, que são forçadas a pedir apoio às famílias ou a terceiros. Um homem de 75 anos de idade com mobilidade reduzida disse que precisa que os filhos o levem à sanita: “Eles arrastam-me. Não conseguem carregar-me”.

Necessidades chocantes por satisfazer

O Iémen é um Estado Parte da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e tem leis desenhadas para proteger os direitos dos, pelo menos, 4,5 milhões de pessoas (15 por cento da população) que têm deficiências, de acordo com estimativas da Organização Mundial de Saúde. Os dados fiáveis escasseiam e, dado o impacto do conflito em curso, alguns peritos acreditam que o número atual é superior.

Os cuidados de saúde e a assistência social foram duramente atingidos pela guerra e pelo colapso económico do país, resultando numa falha sistemática em garantir os direitos destas pessoas. Muitas dependem de esmolas ou estão entregues ao seu destino, estando sujeitas à pobreza para poderem pagar bens básicos como medicamentos ou fraldas.

Familiares disseram ter vendido pertences ou atrasado rendas e outros pagamentos cruciais para darem prioridade a custos associados com o apoio a um ente querido com uma deficiência. A mãe de uma rapariga de três anos com epilepsia e atrofia muscular espinal relatou que vendou a mobília da casa para fazer face às despesas. “Levei-a até Sana para conseguir tratamento á. Quatro meses depois, não se movia, nem ria, nem brincava. Entretanto, voltei lá. Um dia destes até disse ao meu amigo para vender o meu rim. Venderia o meu rim para comprar a medicação suficiente para um ano, os sapatos de que ela precisa e tudo o resto”.

Os dispositivos auxiliares, como material ortopédico, também escasseiam, existindo uma crise de fornecimento. Quem os tem queixa-se de que não estão adequados às necessidades, como é o exemplo de cadeiras de rodas impossibilitadas de circular no terreno acidentado dos campos de deslocados. No sul do Iémen, há apenas um centro protésico, que tem de enviar para o estrangeiro algumas das próteses que necessitam de reparação.

Os repetidos conflitos no país provocaram ainda uma crise de saúde mental, com uma proporção significativa da população, incluindo muitas crianças, severamente traumatizadas. Um iemenita com cerca de 25 anos de idade já terá vivido 14 guerras. Ainda assim, não existe praticamente apoio psicossocial e só se contam 40 psiquiatras, sediados, sobretudo, em cidades.

Mais e melhor inclusão

A Amnistia Internacional reconhece que as organizações humanitárias estão a enfrentar enormes desafios no terreno. Mas estas podem desenvolver algumas ações simples para melhorarem a atuação. Por exemplo, devem recolher e analisar melhor os dados desagregados sobre o número de pessoas com deficiência que se encontram a seu cuidado. Além disso, devem de incluí-los, diretamente, no desenho e na distribuição da assistência, assegurando deste modo o direito a participarem nas decisões que afetam as suas vidas.

“Em todo o mundo, as pessoas com deficiências exigem justamente que nenhumas decisões sejam tomadas ‘sobre nós, sem nós’ – e o Iémen não é exceção. Os doadores internacionais têm de avançar com o financiamento dos compromissos humanitários e fazer um melhor trabalho para garantir que ninguém fique para trás”, nota Rasha Mohamed, investigadora sobre o Iémen da Amnistia Internacional.

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