27 Fevereiro 2024

Um mês após o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) ter ordenado “medidas imediatas e eficazes” para proteger os palestinianos na Faixa de Gaza do risco de genocídio, Israel continua a não permitir a assistência humanitária necessária, ignorando a sua obrigação enquanto potência ocupante de garantir a satisfação das necessidades básicas dos palestinianos em Gaza.

A ordem para fornecer ajuda foi uma das seis medidas provisórias ordenadas pelo Tribunal a 26 de janeiro, tendo sido dado a Israel um mês para apresentar um relatório sobre o cumprimento das medidas e as autoridades israelitas não conseguiram garantir que bens e serviços suficientes para salvar vidas chegassem a uma população em risco de genocídio e à beira da fome devido aos bombardeamentos incessantes de Israel e ao reforço do seu bloqueio ilegal que dura há 16 anos. Também não levantaram as restrições à entrada de bens que salvam vidas, nem abriram pontos de acesso e passagens adicionais para a ajuda, nem criaram um sistema eficaz para proteger os corredores de ajuda humanitária de ataques.

“Israel não só não tem conseguido satisfazer as necessidades básicas dos habitantes de Gaza, como tem bloqueado e impedido a passagem de ajuda suficiente para a Faixa de Gaza, em especial para o norte, que é praticamente inacessível”

Heba Morayef

“Enquanto potência ocupante, nos termos do direito internacional, Israel tem a obrigação clara de assegurar a satisfação das necessidades básicas da população de Gaza. Israel não só não tem conseguido satisfazer as necessidades básicas dos habitantes de Gaza, como tem bloqueado e impedido a passagem de ajuda suficiente para a Faixa de Gaza, em especial para o norte, que é praticamente inacessível, numa clara demonstração de desprezo pela decisão do TIJ e numa violação flagrante da sua obrigação de evitar o genocídio”, afirmou Heba Morayef, Diretora Regional para o Médio Oriente e Norte de África da Amnistia Internacional.

A Amnistia Internacional considera que a ajuda humanitária que entrou em Gaza antes da decisão do TIJ foi uma gota de água no oceano em comparação com as necessidades dos últimos 16 anos. No entanto, nas três semanas que se seguiram à decisão do TIJ, o número de camiões que entraram em Gaza diminuiu em cerca de um terço, passando de uma média de 146 por dia nas três semanas anteriores para uma média de 105 por dia nas três semanas seguintes. Antes de 7 de outubro, em média, entravam em Gaza cerca de 500 camiões por dia, transportando ajuda e bens comerciais, incluindo alimentos, água, forragem para animais, material médico e combustível. Mesmo essa quantidade era muito insuficiente para satisfazer as necessidades da população.

No processo que apresentou ao TIJ, a África do Sul argumentou que a recusa deliberada de Israel de prestar ajuda humanitária aos palestinianos poderia constituir um dos atos proibidos pela Convenção sobre o Genocídio ao “infligir deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar a sua destruição física total ou parcial”.

 

Crianças em subnutrição

Em toda a Faixa de Gaza, a catástrofe humanitária que se está a desenhar é cada vez mais terrível. A 19 de fevereiro, as agências humanitárias informaram que a subnutrição aguda estava a aumentar em Gaza e a ameaçar a vida das crianças, com 15,6% das crianças com menos de dois anos a sofrerem de subnutrição aguda no norte de Gaza e 5% das crianças com menos de dois anos em Rafah, no sul. A velocidade e a gravidade do declínio do estado nutricional da população em apenas três meses foi “sem precedentes a nível mundial”.

Hamza, um residente do norte de Gaza, cuja mulher, Kawthar, deu à luz o seu quarto filho em 17 de fevereiro, disse à Amnistia Internacional, em 20 de fevereiro, que a sua família de seis pessoas mal conseguia assegurar meia refeição por dia, devido à grave escassez de alimentos e de água. Depois de as reservas de farinha e milho se terem esgotado, recorreram à moagem de cevada e de ração animal para fazer pão. “Agora, até a forragem [para os animais] está a escassear”, disse.

A sua mulher deu à luz no hospital Kamal Adwan, em Beit Lahia, que já não estava a funcionar. Não teve leite materno após o parto e teve dificuldade em alimentar o recém-nascido.

“Depois de uma busca ansiosa pelo hospital, uma mulher deu-nos uma pequena quantidade de leite e alimentámos o bebé com uma seringa. A minha tia conseguiu arranjar-nos leite hoje, não sei como, e não disse quanto lhe custou. Não há arroz, não há carne. Ontem fui ao mercado à procura de comida e voltei para casa de mãos vazias: nem carne, nem grão-de-bico, nada”.

A ameaça iminente de um ataque terrestre em grande escala a Rafah, no sul de Gaza, onde mais de 1,2 milhões de civis estão atualmente abrigados, teria consequências ainda mais devastadoras para a situação humanitária.

Os limitados abastecimentos que chegam a Gaza estão a entrar através de dois pontos de passagem ao longo do perímetro com Israel e na fronteira com o Egipto. Os dois pontos de passagem operacionais – Rafah, na fronteira com o Egipto, e Karem Abu Salem, no perímetro com Israel – situam-se ambos no sul de Gaza. Uma operação terrestre na zona próxima dos postos de Rafah e Karem Abu Salem, que permitem a entrada de camiões no sul de Gaza, corre o risco de cortar totalmente o fluxo de ajuda e destruir os últimos vestígios do sistema de ajuda.

 

“As pessoas estão destroçadas”

A Amnistia Internacional falou com dez trabalhadores de cinco agências ou organizações humanitárias, em meados e final de fevereiro, que descreveram as condições horríveis em Gaza, bem como as restrições de acesso permanentes e severas. Todos afirmaram que a sua capacidade de fazer chegar a ajuda a Gaza e aos seus arredores se manteve ou piorou desde o acórdão do TIJ.

Os humanitários sublinharam o facto de Israel não ter tomado medidas óbvias, como a abertura de todos os pontos de acesso e passagens disponíveis, que lhes permitissem transferir a ajuda mais rapidamente e em maior escala para as zonas necessitadas, ou garantir que as operações humanitárias não fossem alvo de ataques militares.

Uma resolução do Conselho de Segurança da ONU aprovada em dezembro de 2023 exigia que as partes “permitissem e facilitassem a utilização de todas as rotas disponíveis para e em toda a Faixa de Gaza, incluindo os postos fronteiriços”, a fim de garantir que a assistência vital chegasse aos civis “através das rotas mais diretas”. Apesar desta resolução juridicamente vinculativa, Israel tem-se recusado a abrir mais postos de passagem para facilitar o acesso humanitário.

Fathia, uma profissional de apoio à saúde mental, contou à Amnistia Internacional os desafios que enfrenta com a sua família e o seu trabalho. Descreveu a dificuldade de tentar fazer com que a sua mãe de 78 anos, que desenvolveu uma forma de demência desde que foram deslocados, compreenda porque é que não têm comida suficiente.

“Os meus filhos quase não ganham dinheiro e não conseguimos encontrar nem comprar os alimentos básicos. Não há nada e o pouco que há é incomportável. A minha mãe não consegue compreender isto; pensa que a estamos a negligenciar. Cheguei ao ponto de desejar que a minha própria mãe morresse em vez de a ver sofrer por pensar que a estamos a negligenciar. À minha volta, as pessoas estão destroçadas porque não conseguem alimentar os seus filhos, as suas famílias, e eu não sou capaz de lhes dar qualquer conselho ou apoio útil, porque eu própria estou destroçada”, afirmou.

Manifestantes israelitas que exigem que o governo deixe de autorizar a entrada de ajuda em Gaza enquanto os reféns não forem libertados bloquearam repetidamente o acesso ao posto de passagem de Karem Abu Salem, obrigando-o a encerrar várias vezes, por vezes durante vários dias. Estas perturbações não isentam as autoridades israelitas da sua obrigação de tomar as medidas necessárias para manter o fluxo de ajuda sem entraves.

Existem outros pontos de acesso e passagens. Alguns foram encerrados por Israel depois de 7 de outubro. Outros foram mantidos fechados durante anos por Israel. Israel controla rigorosamente o que entra e sai de Gaza, incluindo pessoas e bens, como parte do seu bloqueio ilegal, que se tornou significativamente mais sufocante nos últimos meses.

 

Bloqueio mantém-se

Israel continua a restringir fortemente a importação de bens essenciais para Gaza. Todas as importações para Gaza têm de ser previamente aprovadas pelas autoridades israelitas. Em fevereiro, os humanitários continuaram a descrever rejeições e limitações frequentes, imprevisíveis e “arbitrárias”.

Para além dos bens, Gaza precisa desesperadamente de combustível para permitir que as pessoas purifiquem a água, processem os alimentos e façam funcionar o equipamento médico, como as incubadoras. Desde 11 de outubro, Gaza está sob um apagão elétrico devido ao corte do fornecimento de eletricidade por Israel. Israel também bloqueou completamente a importação de combustível desde o início de outubro até 18 de novembro de 2023. Embora tenha agora permitido a entrada de algum combustível em Gaza, as quantidades continuam a ser assustadoramente insuficientes. Desde o final de fevereiro, as autoridades israelitas continuam a rejeitar regularmente os pedidos humanitários para trazer outras fontes de energia, como painéis solares, geradores e baterias.

A Amnistia Internacional apela aos Estados para que garantam que a UNRWA recebe o financiamento adequado para continuar as suas operações, depois de vários Estados terem suspendido o financiamento à organização com base em alegações de que alguns dos seus membros participaram no ataque de 7 de outubro. Há muito que a UNRWA é a única tábua de salvação para os refugiados palestinianos em Gaza e noutros locais do Médio Oriente, oferecendo ajuda humanitária indispensável, abrigo e educação.

Todos os Estados devem cumprir a sua obrigação de prevenir o genocídio, tomando medidas urgentes para garantir que Israel cumpra as medidas provisórias do TIJ, nomeadamente pressionando Israel a abrir rapidamente o acesso a Gaza e a pôr termo ao seu brutal bloqueio de uma vez por todas. Todos os Estados devem também pôr imediatamente termo à transferência de armas para Israel, como recentemente solicitado por 24 peritos da ONU.

 

Contexto

A atual catástrofe humanitária na Faixa de Gaza é o resultado do bloqueio imposto por Israel ao longo de 16 anos, da sua intensificação e das operações militares devastadoras recorrentes. Desde 2007, Israel tem mantido o controlo do espaço aéreo, das fronteiras terrestres e das águas territoriais de Gaza, restringindo fortemente a circulação de bens essenciais e de pessoas para dentro e para fora da Faixa, alimentando uma catástrofe humanitária. Israel tem forçado a população de Gaza a viver em condições cada vez mais difíceis, que, desde outubro de 2023, se têm deteriorado com tal rapidez e gravidade que toda a população enfrenta agora uma fome artificial.

O bloqueio de Israel é uma forma de punição coletiva e constitui um crime de guerra. É uma das principais formas pelas quais Israel mantém o seu sistema de apartheid contra os palestinianos, o que constitui um crime contra a humanidade.

Em 7 de outubro de 2023, o Hamas e outros grupos armados lançaram foguetes indiscriminados, enviaram combatentes para o sul de Israel e cometeram crimes de guerra. De acordo com as autoridades israelitas, pelo menos 1 139 pessoas foram mortas e mais de 200 pessoas, na sua maioria civis, incluindo 33 crianças, foram feitas reféns pelo Hamas e outros grupos armados em Gaza. Em 1 de dezembro, 113 reféns detidos pelo Hamas e outros grupos armados em Gaza tinham sido libertados.

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