5 Dezembro 2023

  • Fragmentos de bombas JDAM de fabrico americano encontrados nos escombros de casas destruídas por ataques aéreos israelitas
  • Ataques devem ser investigados como crimes de guerra
  • As armas fabricadas pelos EUA facilitaram os assassínios em massa de famílias numerosas” – Agnès Callamard

A Amnistia Internacional revelou esta terça-feira que as forças israelitas usaram munições fabricadas nos EUA (JDAM) em dois ataques aéreos a habitações na Faixa de Gaza onde se encontravam duas famílias, provocando 43 mortos, entre eles 19 crianças, 14 mulheres e 10 homens.

Com base numa nova investigação, elementos da Amnistia Internacional encontraram   fragmentos característicos das munições fabricadas nos EUA nos escombros das casas destruídas, concluindo que estes ataques aéreos foram executados diretamente contra civis e a infraestruturas civis de forma indiscriminada, e apelando a que sejam investigados como crimes de guerra.

A 10 de outubro, um ataque aéreo à casa da família al-Najjar, em Deir al-Balah, matou 24 pessoas, enquanto a 22 de outubro, um ataque aéreo à casa da família Abu Mu’eileq, também em Gaza, matou 19 pessoas.

Ambas as casas situavam-se a sul de Wadi Gaza, na zona para onde, a 13 de outubro, os militares israelitas tinham ordenado a deslocação dos residentes do norte de Gaza.

“O facto de as munições fabricadas nos EUA estarem a ser utilizadas pelos militares israelitas em ataques ilegais com consequências mortais para os civis deveria ser um alerta urgente para a administração Biden. As armas fabricadas nos EUA provocaram os assassínios em massa de famílias numerosas”, afirmou Agnès Callamard, Secretária-Geral da Amnistia Internacional.

“Duas famílias foram dizimadas nestes ataques, o que constitui mais uma prova de que os militares israelitas são responsáveis por matar e ferir ilegalmente civis nos seus bombardeamentos a Gaza”

Agnès Callamard

Agnès Callamard considera que “os EUA e outros governos têm de parar imediatamente de transferir armas para Israel que, muito provavelmente, serão utilizadas para cometer ou aumentar os riscos de violações do direito internacional”. “Ajudar conscientemente a cometer violações é contrário à obrigação de garantir o respeito pelo direito internacional humanitário. Um Estado que continua a fornecer armas que são utilizadas para cometer violações pode partilhar a responsabilidade por essas violações”, disse.

À luz das provas de crimes de guerra e de outras violações, os EUA devem seguir as suas próprias leis e políticas em matéria de transferência e venda de armas, incluindo a sua Política de Transferência de Armas Convencionais e a Orientação de Resposta a Incidentes de Danos Civis, que, em conjunto, se destinam a impedir as transferências de armas que possam facilitar ou contribuir de outra forma para danos a civis e para violações dos direitos humanos ou do direito internacional humanitário.

A Amnistia Internacional não encontrou qualquer indicação de que existissem alvos militares nos locais dos dois ataques ou de que as pessoas que se encontravam nos edifícios fossem alvos militares legítimos, o que suscita preocupações de que estes ataques tenham sido direcionados a civis. Além disso, mesmo que os ataques se destinassem a atingir objetivos militares, a utilização de armas explosivas de alcance alargado em zonas tão densamente povoadas poderia tornar estes ataques indiscriminados. Como tal, estes ataques devem ser investigados como crimes de guerra.

Os peritos em armamento e um analista de teledeteção da Amnistia Internacional examinaram imagens de satélite, bem como fotografias tiradas pelos trabalhadores da organização no terreno, da destruição dos locais visados e de fragmentos de munições recuperados dos escombros. Com base nos danos significativos causados ao alvo e aos edifícios circundantes, a bomba que atingiu a casa da família al-Najjar pesava provavelmente uma tonelada. A bomba que atingiu a família Abu Mu’eileq destruiu a sua casa e pesava provavelmente pelo menos uma tonelada.

Os códigos gravados nas chapas de ambos os conjuntos de fragmentos recuperados, 70P862352, estão associados às JDAM e à Boeing, o fabricante das munições. (Créditos: Amnesty International)

 

Em ambos os ataques, as bombas utilizaram kits JDAM fabricados nos EUA. As fotografias dos fragmentos metálicos das armas mostram claramente os rebites e o sistema de arnês característicos que indicam que serviam como parte da estrutura que envolve o corpo da bomba de uma JDAM. Para além disso, os códigos gravados nas chapas de ambos os conjuntos de fragmentos recuperados, 70P862352, estão associados às JDAM e à Boeing, o fabricante das munições. Códigos adicionais estampados nas placas indicam que a JDAM que matou os membros da família al-Najjar foi fabricada em 2017, enquanto a JDAM que matou os membros da família Abu Mu’eileq foi fabricada em 2018.

A Amnistia Internacional entrevistou seis sobreviventes e familiares das vítimas dos ataques e também analisou imagens de satélite, que mostraram a destruição nos locais relevantes durante um período que era consistente com os relatos das testemunhas. A Amnistia Internacional enviou perguntas sobre os dois ataques à unidade de porta-vozes do exército israelita a 21 de novembro. Até à data da publicação desta notícia, não tinha sido recebida qualquer resposta.

A Amnistia Internacional há muito que apela ao Conselho de Segurança das Nações Unidas para que imponha um embargo de armas abrangente a todas as partes envolvidas no conflito em Gaza e em Israel. Insta também o procurador do Tribunal Penal Internacional a acelerar a investigação aberta em 2021 sobre crimes de guerra e outros crimes de direito internacional cometidos por todas as partes.

 

Ataque a Al-Najjar: “A nossa família foi destruída”

No dia 10 de outubro, por volta das 20h30, um ataque aéreo israelita matou 21 membros da família al-Najjar quando a casa da família em Deir al-Balah foi bombardeada. Três vizinhos também foram mortos.

Suleiman Salman al-Najjar (48 anos), proprietário de uma loja de venda e reparação de automóveis, disse à Amnistia Internacional que a sua mulher Susanne Subhi Asalam Najjar (40 anos) foi morta juntamente com quatro dos seus filhos: as filhas Safa (17 meses) e Farah (23 anos) e os filhos Yazan (14 anos) e Nadim (20 anos).

“Estava a sentir-me mal e fui ao hospital dos Mártires de al-Aqsa, que fica a cerca de dois quilómetros. Sofro de problemas renais e, como as dores estavam a piorar, decidi ir ao hospital para levar uma injeção antes que se tornasse demasiado tarde”, conta. “Tomei a injeção no hospital e, quando saí e regressava a casa no meu carro, vi um amigo meu e parei o carro para o cumprimentar. Quando estávamos a conversar, ouvimos uma grande explosão. Eu não sabia onde era esse bombardeamento e não pensei que fosse a minha casa… enquanto continuava a falar com o meu amigo, alguém me disse que era a minha casa que tinha acabado de ser bombardeada… fiquei chocado. Fui a correr para casa e vi um cenário de destruição total. Não podia acreditar no que estava a ver. Toda a gente estava debaixo dos escombros. A casa estava completamente pulverizada. Os corpos estavam reduzidos a pedaços”.

Imagens de satélite de 31 de maio de 2023 (à esquerda) mostram a área antes da destruição. A 13 de outubro de 2023 (à direita), as imagens de satélite mostram a zona de destruição. As imagens de satélite de menor resolução (não apresentadas) confirmam que a destruição ocorreu entre as manhãs de 10 de outubro e 13 de outubro de 2023. (Créditos: Amnesty International)

 

“Apenas o corpo do meu filho Nadim foi recuperado inteiro. A minha menina, Safa, só encontrámos a mão… Agora, eu e os meus dois filhos sobreviventes vivemos numa tenda junto às ruínas da nossa casa. As nossas vidas foram destruídas num instante. A nossa família foi destruída. Algo que era impensável é agora a nossa realidade”.

Os vizinhos de al-Najjar – Yousef Baker Abu Traya (29 anos), bem como Layla Said Ahmad al-A’awar (42 anos) e a sua filha de sete anos Jana Hani al-A’awar – também foram mortos no ataque.

A análise das imagens de satélite do local confirma a destruição entre as manhãs de 10 e 13 de outubro de 2023.

 

Ataque a Abu Mu’eileq: “Porquê tanta injustiça?”

No dia 22 de outubro, por volta das 1h00, três casas pertencentes a três irmãos de Abu Mu’eileq e respectivas famílias foram atingidas por um ataque aéreo israelita a norte de Deir al-Balah. No total, 18 membros da família Mu’eileq foram mortos – 12 crianças e seis mulheres – bem como o seu vizinho Rajab Ghazi Mezyed.

Samaher Abu Mu’eileq, que sobreviveu ao ataque, relatou o que aconteceu à Amnistia Internacional. “Tinha acabado de sair de casa, onde estavam as minhas cunhadas e os meus sobrinhos e sobrinhas, um minuto antes de a casa ser bombardeada. Desci as escadas e, quando estava a abrir a porta da frente, a casa do meu irmão que ficava ao lado foi bombardeada. Fui atirado contra a porta pela força da explosão e fiquei ferido na cara e no pescoço. Não consigo perceber porque é que a casa foi bombardeada. As minhas cunhadas e os seus filhos e a minha madrasta foram mortos, todos eles mulheres e crianças… outros ficaram feridos. Qual é a razão de tal crime contra civis?”.

O irmão de Samaher, Bakir Abu Mu’eileq, perdeu a mulher Islam Majid Abu Mu’eileq (34) e quatro dos seus filhos – as filhas Do’a (16) e Lama (11) e os filhos Ghanem (14) e Mohamed (12) – no ataque.

Imagens de satélite a cores falsas, no infravermelho próximo, de 22 de outubro de 2023, mostram a área antes (esquerda) e depois (direita) desse dia. A vegetação aparece em tons avermelhados, enquanto o ambiente surge em tons de cinzento e amarelo. A área danificada aparece num tom cinzento mais escuro do que antes do evento. (Créditos: Amnesty International)

 

Bakir Abu Mu’eileq é otorrinolaringologista e estava a trabalhar no hospital perto da casa da família quando ocorreu o ataque. “Somos três irmãos casados com três irmãs, vivendo entre nós, concentrados nas nossas famílias e no trabalho e longe da política. Somos médicos e cientistas e o nosso objetivo é viver uma boa vida e construir um bom futuro para os nossos filhos. Não conseguimos perceber porque é que as nossas casas foram bombardeadas. Nunca tivemos qualquer problema anteriormente. O mesmo se passa com os nossos vizinhos. Não há ninguém armado ou político aqui. As nossas vidas, as nossas famílias, foram completamente destruídas, obliteradas. Porquê?”

“Os corpos foram reduzidos a pedaços. Só conseguimos encontrar pedaços… Apenas cinco dos corpos foram recuperados mais ou menos inteiros porque foram atirados para mais longe do local da explosão. Estamos em estado de choque. Que futuro têm agora as minhas filhas que sobreviveram? Porquê tanta injustiça? Porquê?”.

A análise das imagens de satélite de 22 de outubro de 2023 mostra os danos causados às estruturas nesse dia e nesse local.

 

A obrigação da distinção entre objetivos militares e os civis

As partes num conflito armado devem sempre distinguir entre civis e objetivos militares. Os ataques diretos contra civis e infraestruturas civis são proibidos, assim como os ataques indiscriminados.

Quando atacam um objetivo militar, os militares israelitas são obrigados a tomar todas as precauções possíveis para evitar e, em qualquer caso, minimizar a morte e os ferimentos de civis e os danos causados a infraestruturas civis. Essas precauções incluem fazer tudo o que for possível para verificar se um alvo é um objetivo militar; escolher meios e métodos de ataque que minimizem os danos a civis; avaliar se um ataque seria desproporcionado; avisar com antecedência os civis, sempre que possível; e cancelar um ataque caso se torne evidente que seria ilegal.

A Amnistia Internacional não encontrou qualquer indicação de que existissem objetivos militares no local dos dois ataques ou de que as pessoas que se encontravam nos edifícios fossem alvos militares, e não recebeu provas do contrário por parte de Israel, o que suscita preocupações de que estes ataques tenham sido ataques direcionados a civis. A Amnistia Internacional pesquisou artigos nos meios de comunicação social para obter informações sobre estes ataques e não encontrou qualquer declaração relevante das autoridades israelitas ou outra afirmação de que havia objetivos militares presentes. Mesmo que houvesse um objetivo militar legítimo nas imediações de qualquer dos edifícios atingidos, estes ataques não distinguiram entre objetivos militares e infraestruturas civis.

A área destruída de uma das casas (Créditos: Amnesty International)

 

Os ataques indiscriminados que matam ou ferem civis constituem crimes de guerra. Um padrão de longa data de ataques imprudentes que atingem civis, que a Amnistia Internacional tem documentado ao longo dos ataques em curso de Israel, bem como durante os conflitos de 2008-9, 2014 e 2021, pode equivaler a ataques diretos contra civis, que são também crimes de guerra.

A densidade populacional extremamente elevada na Faixa de Gaza implica desafios adicionais para todas as partes envolvidas no conflito. O Hamas e outros grupos armados são obrigados pelo direito internacional humanitário a tomar todas as precauções possíveis para proteger os civis sob o seu controlo contra os efeitos dos ataques. Isto inclui, na medida do possível, evitar a localização de objetivos militares dentro ou perto de áreas densamente povoadas. Nos ataques aqui investigados, a Amnistia Internacional não encontrou qualquer indicação de proteção humana por parte do Hamas, nem sequer da presença de combatentes no local onde os ataques ocorreram.

No entanto, mesmo que os grupos armados não cumpram as suas obrigações, Israel continua vinculado ao direito internacional humanitário, nomeadamente às proibições de ataques indiscriminados e desproporcionados.

Todos os Estados têm a obrigação de assegurar o respeito pelas regras do direito internacional humanitário, incluindo por parte de outros Estados. O Comentário do CICV (2020) ao artigo 1.º comum das Convenções de Genebra explica “o apoio financeiro, material ou outro, com conhecimento de que esse apoio será utilizado para cometer violações do direito humanitário, constituiria, por conseguinte, uma violação do artigo 1. As transferências de armas dos EUA para Israel, nas atuais circunstâncias, violam as suas obrigações ao abrigo das Convenções de Genebra.

Além disso, os EUA podem partilhar a responsabilidade por violações graves do direito internacional humanitário cometidas por Israel com armas fornecidas pelos EUA, uma vez que todos os Estados têm o dever de não contribuir conscientemente para atos internacionalmente ilícitos de outros Estados. As regras relativas à responsabilidade dos Estados são regras de direito internacional consuetudinário. Estão refletidas nos artigos da Comissão de Direito Internacional (CDI) sobre a responsabilidade dos Estados por atos internacionalmente ilícitos (artigos sobre a responsabilidade dos Estados). De acordo com o artigo 16.º dos Artigos sobre a Responsabilidade dos Estados, um Estado pode ser considerado responsável por auxiliar ou ser cúmplice de uma violação do direito internacional humanitário: ao prestar assistência, o Estado auxiliador “fá-lo com conhecimento das circunstâncias do ato internacionalmente ilícito”; e o ato é tal que teria sido ilícito se tivesse sido cometido pelo próprio Estado auxiliador.

 

Contexto

A 7 de outubro de 2023, o Hamas e outros grupos armados lançaram rockets indiscriminados e enviaram combatentes para o sul de Israel, tendo cometido crimes de guerra, como o assassínio deliberado em massa de civis e a tomada de reféns. De acordo com as autoridades israelitas, pelo menos 239 pessoas, na sua maioria civis, incluindo 33 crianças, foram feitas reféns pelo Hamas e outros grupos armados em Gaza. A 1 de dezembro, 113 reféns detidos pelo Hamas e por outros grupos armados em Gaza tinham sido libertados e 240 palestinianos detidos e presos nas prisões israelitas tinham sido libertados no âmbito de um acordo celebrado durante uma “pausa humanitária” que teve início em 24 de novembro e terminou em 1 de dezembro.

A Amnistia Internacional documentou provas irrefutáveis de crimes de guerra cometidos pelas forças israelitas nos seus intensos bombardeamentos a Gaza, incluindo ataques diretos ou indiscriminados, bem como outros ataques ilegais e punição coletiva da população civil. De acordo com o Ministério da Saúde palestiniano em Gaza, os ataques mataram mais de 15.000 pessoas, na sua maioria civis, incluindo 5.500 crianças.

A Amnistia Internacional apela a um cessar-fogo imediato e sustentado, à libertação de todos os restantes reféns civis e a que Israel ponha termo ao seu cerco ilegal e desumano a Gaza. A Amnistia Internacional apela também a um embargo global de armas imposto pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas a Israel, ao Hamas e a outros grupos armados, que abranja o fornecimento, a venda ou a transferência, diretos ou indiretos, de armas e material militar, incluindo tecnologias, peças e componentes conexos, assistência técnica, formação, assistência financeira ou outra.

 

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