25 Novembro 2021

 

  • Seis pessoas baleadas perto do Parque Nacional de Banhine, a 3 de novembro de 2020
  • Passado mais de um ano, continuam por apurar as responsabilidades

 

As autoridades moçambicanas devem investigar, de forma aprofundada, um tiroteio por fiscais de um parque e agentes da polícia, que decorreu no ano passado, e do qual resultaram seis feridos, declarou hoje a Amnistia Internacional.

Pessoas entrevistadas pela Amnistia Internacional relataram que estes fiscais e a polícia abriram fogo contra residentes locais não armados, numa estrada próxima ao Parque Nacional de Banhine, a 3 de novembro de 2020. Os residentes estavam reunidos para protestar pacificamente contra a prisão de pelo menos 20 pessoas durante uma operação para acabar com a produção de carvão na área.

“Passado mais de um ano, ninguém foi responsabilizado e não houve uma investigação adequada a este tiroteio desprovido de qualquer sentido. As vítimas e as suas famílias continuam a aguardar uma explicação e esperam que se faça justiça,” alertou Muleya Mwananyanda, diretora regional adjunta da Amnistia Internacional para a África Austral.

“As vítimas e as suas famílias continuam a aguardar uma explicação e esperam que se faça justiça”

Muleya Mwananyanda

“A investigação a este tiroteio pelos fiscais do parque e agentes da polícia deve ser minuciosa, imparcial, transparente e eficaz. As autoridades moçambicanas devem impedir o uso ilegal da força no futuro.”

O Parque Nacional de Banhine é gerido conjuntamente pela organização conservacionista internacional Peace Parks Foundation (PPF) e pela Administração Nacional de Áreas de Conservação (ANAC) de Moçambique.

Numa declaração à Amnistia Internacional, a PPF afirmou que “todas as atividades de segurança são determinadas e executadas pelo chefe dos fiscais do Parque Nacional de Banhine (um funcionário da ANAC), em colaboração com o Diretor de Operações de Aplicação da Lei da PPF.

 

Tiroteio perto do Parque Nacional de Banhine

A 3 de novembro de 2020, fiscais do parque, com o apoio da Unidade de Intervenção Rápida da polícia, na cidade vizinha de Xai Xai, conduziram uma operação contra o que alegaram ser a produção ilegal de carvão no Parque Nacional de Banhine, ou nas suas imediações, na província de Gaza. A área da comunidade de Gerez – formada por duas aldeias, Hochane e Madliwa – fica situada perto do Parque Nacional de Banhine.

No decurso da operação, fiscais do parque e agentes da polícia queimaram fornos de carvão e prenderam mais de 20 pessoas. Em entrevistas feitas pela Amnistia Internacional foi transmitido que, quando os residentes locais ouviram falar da operação, decidiram falar imediatamente com os fiscais.

Para impedir a passagem dos veículos dos fiscais e da polícia, os residentes bloquearam a estrada mesmo à entrada do parque com troncos grandes. Oito entrevistados partilharam à Amnistia Internacional que a população não estava armada. Os residentes relataram ainda que não tinham quaisquer armas na sua posse, uma vez que se preparavam para viajar com o intuito de se reunirem com o governador sobre outro assunto não relacionado.

Os entrevistados disseram que, quando os fiscais e a polícia mandaram parar os veículos, quatro homens da comunidade dirigiram-se a eles, com as mãos claramente vazias e no ar. Contaram que os fiscais e agentes da polícia, repentinamente, começaram a disparar, atingindo seis homens.

“Ninguém transportava um machete, arma de fogo, machado, faca ou pau,” disse uma testemunha. Os representantes do grupo puseram as mãos no ar assim que viram os fiscais para mostrar que queriam uma conversa pacífica. Mas os fiscais não quiseram ouvir nada e começaram a disparar.”

Em correspondência com a Amnistia Internacional, a PPF insistiu que os fiscais “dispararam tiros de aviso para o ar, que não tinham representado um perigo para ninguém”.

“Os representantes do grupo puseram as mãos no ar assim que viram os fiscais para mostrar que queriam uma conversa pacífica. Mas os fiscais não quiseram ouvir nada e começaram a disparar”

Relato de uma testemunha

Contudo, um indivíduo da gestão do parque, que falou sob condição de anonimato, afirmou que “vários fiscais do parque dispararam para o ar a fim de dispersar as pessoas, porque havia uma multidão, mas alguns queriam disparar contra as pessoas”. Diversos entrevistados identificaram um fiscal específico como o que começou a disparar e a instigar os outros fiscais a fazerem o mesmo.

Três residentes ficaram feridos com gravidade, nomeadamente um homem ferido por um tiro no abdómen. A Amnistia Internacional verificou fotos dos ferimentos e analisou relatórios médicos da altura, que indicavam que as vítimas tinham sido baleadas.

Quando os residentes fugiram, a polícia e os fiscais retiraram os troncos e abandonaram a área. Um habitante local transportou os seis feridos no seu carro para as instalações de saúde mais próximas. Mais tarde, uma ambulância levou os três feridos mais graves para o hospital de Chokwe, a cerca de 170 km de distância.

Três entrevistados, incluindo uma das pessoas presas, disseram que todos os que foram presos na operação para acabar com a produção de carvão foram libertados sem acusação no dia seguinte.

Os residentes estão frustrados porque a investigação oficial ao incidente não progrediu para além da fase preliminar, apesar de se terem reunido com o Serviço Nacional de Investigação Criminal e a Procuradoria-Geral em pelo menos quatro ocasiões, desde 30 de novembro de 2020.

A Amnistia Internacional considera que, visto que os residentes não representavam uma ameaça iminente de morte ou ferimentos graves aos ocupantes dos veículos, o uso da força pelos fiscais e a polícia não foi necessário nem proporcional e, portanto, ilegal, nos termos do direito internacional em matéria de direitos humanos.

 

Resposta da Peace Parks Foundation

Em correspondência com a Amnistia Internacional, a PPF descreveu o incidente como “lamentável” e manteve que os carros foram alvo de uma “emboscada” por um grupo grande de pessoas, “armadas com paus, pedras e machetes”. A PPF confirmou a presença do seu diretor de Operações de Aplicação da Lei no local do incidente, dizendo que ele permaneceu no carro quando membros da comunidade começaram a atirar pedras.

A PPF declarou que “tanto quanto nos foi dado conhecer, nenhum dos fiscais do Banhine usou qualquer força desnecessária. Fomos informados de que três fiscais do BNP, em veículos de apoio situados a alguma distância do veículo da polícia de intervenção, dispararam tiros de aviso para o ar, que, de forma alguma, constituíram perigo para quaisquer pessoas e foram considerados proporcionais à ameaça encontrada”.

A PPF afirmou também que “investigou imediatamente o evento, utilizando informação fornecida pelo pessoal sénior do parque e o assessor técnico da Peace Parks Foundation e que, através deste processo, foi informada de que o mesmo ocorreu fora da área de conservação e da área de apoio da Peace Parks Foundation … esta questão seria investigada e acompanhada pelas respetivas estruturas governamentais”.

Desde pelo menos 2018, a empresa militar privada sul-africana Dyck Advisory Group (DAG) tem proporcionado formação de fiscais, para combater a caça furtiva, e outro apoio de segurança especializado à PPF, nomeadamente com o nome Environmental Management and Conservation Trust (EMCT).

Num projeto de relatório de 2020 ao qual a Amnistia Internacional teve acesso, a PPF observou que “o Environmental Management and Conservation Trust (antes conhecido como Dyck Advisory Group) e a Peace Parks Foundation estão a intensificar esforços no sentido de controlar a escalada no destrutivo crime contra a vida selvagem nas áreas protegidas chave de Moçambique e em redor, incluindo o Parque Nacional de Banhine. Numa declaração, a PPF afirmava que a DAG/EMCT não tinha qualquer envolvimento em Banhine antes ou à altura do incidente e que a sua relação com esta empresa tinha terminado em maio de 2021.

 

Confusão causada por alterações no perímetro do parque

Em 2013, o governo moçambicano alterou o perímetro do Parque Nacional de Banhine, aumentando a sua área de 5600 para 7250 quilómetros quadrados. Esta expansão absorveu a área em redor da aldeia de Hochane e estabeleceu uma zona tampão de cinco quilómetros em volta dos novos limites do parque. Baseando-se na análise de imagens de satélite, a Amnistia Internacional estima que as alterações na delimitação do parque de 2013 e a zona tampão reduziram a área da comunidade de Hochane em mais de 50%.

Mapa que ilustra o aumento de perímetro do Parque Nacional de Banhine

 

A Amnistia Internacional descobriu que a nova delimitação do parque incluía uma área que as comunidades locais utilizavam há décadas para produzir carvão. Os entrevistados contaram à Amnistia Internacional que as autoridades não os tinham informado nem consultado sobre as alterações no perímetro do parque.

A Amnistia Internacional considera que alguns membros das comunidades locais mantinham expetativas legítimas de poderem produzir carvão na área. Vários membros da comunidade impedidos de utilizarem as áreas de produção de carvão encontravam-se dentro do parque. Membros da comunidade local partilharam com a Amnistia Internacional licenças recentes para a produção de carvão na área, incluindo uma em Hochane que estava válida na altura do tiroteio.

“Os residentes das aldeias têm motivos de descontentamento que devem ser resolvidos através de consulta e negociação, não de balas” comentou Richard Pearshouse, Chefe da Área de Crise e Ambiente, da Amnistia Internacional.

“Os residentes das aldeias têm motivos de descontentamento que devem ser resolvidos através de consulta e negociação, não de balas”

Richard Pearshouse

“A Peace Parks Foundation deve assegurar que as suas operações respeitam os direitos das comunidades locais e cumprem as normas internacionais.”

 

Metodologia

A Amnistia Internacional entrevistou 26 pessoas, incluindo vítimas e testemunhas do tiroteio, funcionários comunitários e governamentais e indivíduos envolvidos na gestão do parque. Analisou também documentos oficiais, publicados pelo governo de Moçambique e outras organizações, um hospital local e relatórios dos media e ainda publicações académicas.

Em outubro e novembro de 2021, a Amnistia Internacional escreveu à PPF, ANAC, comando policial da província de Gaza e DAG/EMCT, a pedir mais informação. As respostas da PPF estão disponíveis em aqui e aqui. Nenhuma das outras entidades tinha respondido à data de publicação.

 

 

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