24 Novembro 2018

A maior parte dos países europeus ainda não reconhecem na lei que o sexo sem consentimento é violação, frisa a Amnistia Internacional em vésperas do Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres (25 de novembro). A organização de direitos humanos sustenta que legislações com falhas e uma perigosa cultura de culpabilização das vítimas de violação estão a perpetuar impunidade em toda a Europa.

Num relatório publicado este sábado, 24 de novembro, a Amnistia Internacional analisa as legislações sobre violação existentes em 31 países e conclui que apenas oito têm definições legais de violação baseadas no consentimento. A vasta maioria apenas reconhece como violação quando se verifica violência física, ameaça ou coerção.

“Apesar de movimentos como o #MeToo terem inspirado muitas mulheres a contarem as suas histórias, o triste facto é que os casos de violação continuam a ser largamente pouco reportados na Europa. O medo que as mulheres sentem de não acreditarem nelas é confirmado uma e outra e outra vez ainda, conforme vemos sobreviventes corajosas que tentam obter justiça a ficarem frequentemente desprotegidas por definições legais de violação ultrapassadas e danosas, e a serem tratadas de forma chocante por responsáveis judiciais”, sublinha a investigadora da Amnistia Internacional Anna Błuś, perita em Europa Ocidental e Direitos das Mulheres.

“Apesar de movimentos como o #MeToo terem inspirado muitas mulheres a contarem as suas histórias, o triste facto é que os casos de violação continuam a ser largamente sub-reportados na Europa.”

Anna Błuś, investigadora da Amnistia Internacional perita em Europa Ocidental e Direitos das Mulheres

“As leis têm o poder de permitir que seja feita justiça e de influenciar comportamentos. Repetidamente, estudos mostram que muitas pessoas ainda acreditam que não se está perante uma violação quando a vítima se encontrava embriagada ou se vestia roupas reveladoras ou até se não se debateu fisicamente contra o ataque. Há que entender de uma vez por todas: sexo sem consentimento é violação. E até que os governos ponham as suas legislações em concordância com este facto tão simples, quem comete violação continuará a ficar impune dos crimes cometidos”, prossegue a especialista da organização de direitos humanos.

O mais recente estudo feito pela Agência da União Europeia para os Direitos Fundamentais indica que uma em cada 20 mulheres com mais de 15 anos foi violada – são nove milhões de mulheres na UE. Apesar destas estatísticas chocantes, poucos países europeus tratam este crime com a seriedade devida na lei.

Dos 31 países analisados no relatório da Amnistia Internacional – intitulado “Right to be free from rape: Overview of legislation and state of play in Europe and international human rights standards” (Direito a viver livre de violação: análise das legislações e contextos na Europa e padrões internacionais de direitos humanos) – apenas a Irlanda, o Reino Unido, a Bélgica, o Chipre, a Alemanha, a Islândia, o Luxemburgo e a Suécia definem a violação como sexo sem consentimento. A Suécia alterou a sua definição legal apenas nestes últimos meses, e em resposta a anos de campanha feita pela Amnistia Internacional e outras organizações.

“As leis têm o poder de permitir que seja feita justiça e de influenciar comportamentos. Há que entender de uma vez por todas: sexo sem consentimento é violação.”

Anna Błuś, investigadora da Amnistia Internacional perita em Europa Ocidental e Direitos das Mulheres

Os outros países em foco no relatório desta investigação são: Áustria, Bulgária, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Itália, Letónia, Lituânia, Malta, Noruega, Polónia, Portugal, República Checa, Roménia e Suíça.

Todos estes possuem definições legais da violação baseadas na força, na ameaça de força ou coerção ou na incapacidade da vítima em defender-se. De forma preocupante, alguns países categorizam o sexo sem consentimento como um crime separado e menor, fazendo passar a mensagem às pessoas de que a “verdadeira violação” só acontece quando é usada violência física. Por exemplo, na Croácia, “relações sexuais sem consentimento” estão previstas penalmente com um máximo de cinco anos de prisão, enquanto para violação são dez anos.

Em alguns países, as leis sobre violação e violência sexual continuam enquadradas em termos de crimes relacionados com a “honra” ou a “moral”, dando flanco à ideia de que a sociedade tem o direito de controlar os corpos das mulheres. Por exemplo, em Malta, os crimes sexuais integram o capítulo de “crimes que afetam a boa ordem familiar”.

A definição de violação baseada no conceito de consentimento e as reformas legislativas não são soluções definitivas para resolver e prevenir este crime sempre presente, mas são significativos pontos de partida.

Todas as pessoas, independentemente do seu género, podem ser vítimas de violação. Porém, este é um crime que afeta de forma muito desproporcional as mulheres e as raparigas.

Este relatório demonstra ainda que as tentativas das mulheres em obter justiça pelo crime de violação não são apenas travadas pelas legislações ultrapassadas. Estas mulheres são frequentemente confrontadas com preconceitos, culpabilização da vítima, estereótipos negativos e mitos danosos, muitas vezes por parte dos próprios responsáveis que têm o dever de lhes prestar apoio, de investigar e de julgar os crimes de violência sexual.

Uma vaga de mudança

No Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, a Amnistia Internacional destaca e honra a determinação, a força e a coragem de ativistas em toda a Europa, que se batem contra a impunidade na violação e pressionam para que sejam feitas mudanças nas leis dos seus países. Ao longo do último ano, mulheres em muitos países têm vindo a juntar-se para expressar indignação sobre casos de violação com elevado impacto público e exigir melhor proteção por parte dos seus governos.

“A violação é uma grave violação de direitos humanos que tem sempre de ser reconhecida como um crime sério.”

Anna Błuś, investigadora da Amnistia Internacional perita em Europa Ocidental e Direitos das Mulheres

Em abril passado, eclodiram protestos em Espanha depois de cinco homens acusados de violação coletiva de uma mulher terem sido dados como culpados do crime, de menor gravidade, de abuso sexual devido à legislação ultrapassada. E apesar de o tribunal ter concluído com clareza que a mulher não consentira o ato sexual.

Nos últimos dias, as mulheres na Irlanda têm vindo a publicar nas redes sociais fotografias de peças de roupa interior e a tweetar #ThisIsNotConsent, em solidariedade com uma adolescente de 17 anos cujo fio dental foi apresentado em tribunal pela defesa do arguido, na tentativa chocante de minar a sua queixa de que fora violada.

E já este domingo, as mulheres na Dinamarca vão sair às ruas em protesto em pelo menos quatro cidades para exortar a mudanças na legislação do país de forma a garantir que o sexo sem consentimento é definido como violação.

“Ao mudar as legislações e ao garantir o fim da culpabilização da vítima e dos estereótipos de género nos procedimentos legais, os Governos da Europa podem assegurar que a próxima geração de mulheres não se questionará se a violação foi sua culpa.”

Anna Błuś, investigadora da Amnistia Internacional perita em Europa Ocidental e Direitos das Mulheres

Espanha, Portugal e a Dinamarca podem mesmo ser os próximos países a alterarem as suas leis, tendo responsáveis governamentais declarado publicamente que estão recetivos a debater reformas à definição legal de violação.

“A violação é uma grave violação de direitos humanos que tem sempre de ser reconhecida como um crime sério”, insta Anna Błuś.

Esta investigadora da Amnistia Internacional nota ainda que “ao mudar as legislações e ao garantir o fim da culpabilização da vítima e dos estereótipos de género nos procedimentos legais, os Governos da Europa podem assegurar que a próxima geração de mulheres não se questionará se a violação foi sua culpa nem duvidará se quem as atacou será punido”. “Em última análise, que ficarão mais bem protegidas de serem violadas”, remata.

Recursos

  • 23 países

    23 países europeus exigem a esterilização de transexuais antes do seu género ser legalmente reconhecido.
  • 47 mil

    47 mil mulheres morrem anualmente devido a complicações causadas por abortos.
  • 76 países

    76 países criminalizam atos sexuais entre adultos do mesmo sexo.
  • 14 M+

    Mais de 14 milhões de adolescentes dão à luz todos os anos, principalmente em resultado de violação e gravidez indesejada.

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