10 Julho 2020

  • Raides aéreos matam civis, incluindo crianças
  • Repressão contra insurgentes com recurso a detenções arbitrárias e tortura
  • Residentes desprotegidos face à COVID-19 durante bloqueio da internet

A Amnistia Internacional reuniu novas provas que demonstram que ataques aéreos indiscriminados pelas Forças Armadas de Myanmar mataram civis, incluindo crianças, à medida que se agrava o conflito armado nos estados de Rakhine e Chin.

Estes ataques e outras graves violações de direitos humanos pelas Forças Armadas de Myanmar, também conhecidas como Tatmadaw, estão a acontecer em aldeias e municípios onde a internet foi cortada há mais de um ano. A população ficou sem qualquer informação sobre a covid-19 e de como recorrer à assistência humanitária. O estado de Rakhine foi amplamente poupado a um surto de COVID-19, apesar de haver crescimento dos casos em junho.

“Enquanto as autoridades de Myanmar apelavam a que as pessoas ficassem em casa para ajudar a deter a COVID-19, nos estados de Rakhine e Chin os seus militares queimavam casas e matavam civis em ataques indiscriminados que podem ser definidos como crimes de guerra”, disse Nicholas Bequelin, Diretor Regional da Amnistia Internacional para a Ásia-Pacífico.

“Apesar da crescente pressão internacional sobre as operações militares na região, incluindo do Tribunal Penal Internacional, os testemunhos chocantes que reunimos mostram o profundo nível de impunidade que continua a vigorar nas fileiras militares de Myanmar.”

“Em maio e junho de 2020, a Amnistia Internacional entrevistou à distância mais de duas dezenas de pessoas de etnia Rakhine e Chin, afetadas pelas operações militares, incluindo raides e bombardeamentos aéreos; analisou imagens de satélite recentes de povoações incendiadas; e verificou imagens de vídeo mostrando violações levadas a cabo por militares de Myanmar.

“Apesar da crescente pressão internacional sobre as operações militares na região, incluindo do Tribunal Penal Internacional, os testemunhos chocantes que reunimos mostram o profundo nível de impunidade que continua a vigorar nas fileiras militares de Myanmar.”

Nicholas Bequelin, Diretor Regional da Amnistia Internacional para a Ásia-Pacífico

O conflito agravou-se desde o ataque de 4 de janeiro de 2019 pelo Arakan Army(Exército de Arakan – AA), um grupo armado de etnia Rakhine, contra vários postos da polícia no Norte do estado de Rakhine. O incidente desencadeou uma ordem de retaliação do governo para esmagar o AA, e marcou um ponto de viragem no escalar do conflito que desde então deslocou dezenas de milhares de pessoas.

Nos últimos dias, mais 10 000 pessoas fugiram de suas casas em consequência de intensos combates e avisos de avanços de operações militares, estimou o Alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos.

A 23 de março de 2020, Myanmar declarou oficialmente o AA como uma organização criminosa. Os combates irromperam entre março e maio de 2020, quando o país se debatia com os primeiros casos de COVID-19. Segundo as Nações Unidas, mais de 30 civis foram mortos ou feridos apenas em maio, em resultado do conflito.

As vítimas são predominantemente de minorias étnicas budistas e algumas minorias étnicas cristãs nos estados de Rakhine e Chin, embora relatos dos meios de comunicação tenham também documentado violações contra civis Rohingya.

‘Toda a aldeia viu o avião’

O poder aéreo dos militares de Myanmar infligiu enormes danos e sofrimento humano. No estado de Chin, três pessoas de um conjunto de aldeias de etnia Chin, chamadas Meik Sar Wa, na município de Paletwa, descreveram os ataques aéreos que terão ocorrido a 14 e 15 de março de 2020.

“Toda a aldeia viu o avião … o som era tão alto”, disse um residente, acrescentando que o ataque ocorreu por volta das onze horas da manhã.

Após ter ouvido explosões, correu para a casa do seu pai e encontrou o irmão com um ferimento fatal no estômago, bem como o corpo do amigo do seu irmão, com dezasseis anos de idade. Disse que o seu tio, que naquele momento se encontrava noutra casa, foi igualmente morto neste raide aéreo.

Duas pessoas de outra família no mesmo conjunto de povoações, disseram à Amnistia Internacional que um ataque aéreo matou nove pessoas na sua comunidade, incluindo um rapaz com sete anos. “A nossa família está destruída”, disse o pai do rapaz.

Um agricultor de etnia Rakhine de Lel Hla, conjunto de aldeias no município de Paletwa, no estado de Chin, disse que os combates aconteceram a 7 de abril 2020 numa povoação próxima chamada Hnan Chaung Wa. Relatou que os raides aéreos mataram sete pessoas e feriram oito, corroborando os relatos destes incidentes nos meios de comunicação. Depois de ter ajudado a remover os cadáveres e as pessoas feridas, mais tarde viu dois aviões a jato lançarem uma nova ronda de ataques mais perto da sua aldeia e viu duas colunas de fumo em propriedades incendiadas.

Fugiu para o município de Paletwa no dia seguinte, mas os raides aéreos também se deslocaram para lá.

“A nossa família está destruída”

Pai de um rapaz de sete anos de idade morto pelo ataque aéreo

À luz da legislação humanitária internacional, um ataque indiscriminado é considerado um crime de guerra se levar à morte de civis.

Detenção, tortura e outras violações 

Relatos de testemunhas oculares também mostram que os soldados de Myanmar detiveram civis de forma arbitrária no estado de Rakhine, por alegadas ligações ao AA, recorrendo por vezes a tortura e outras formas de maus-tratos.

Duas ex-residentes do município de Mrauk U, no estado de Rakhine, disseram à Amnistia Internacional que um membro da sua família foi detido e torturado após os soldados birmaneses terem efetuado disparos a 29 de fevereiro de 2020.

Um delas, a mulher do detido, contou que, quando visitou o marido na prisão, este lhe disse que tinha sido amarrado e espancado ao longo de quatro noite e cinco dias. Em resultado dos espancamentos, agora tem dificuldades respiratórias.

“Não lhe deram água nem comida…Pontapearam-no e agrediram-no nas costas com espingardas e também o pontapearam no tórax”, disse ela. “Antes disto, ele era alto e forte, mas quando eu o vi… estava visivelmente magro.”

“Não lhe deram água nem comida…Pontapearam-no e agrediram-no nas costas com espingardas e também o pontapearam no tórax.”

Testemunho da mulher de um dos detidos

Os soldados encostaram-lhe uma faca à garganta e obtiveram uma “confissão” forçada sobre a sua suposta ligação ao AA. Foi acusado ao abrigo da Lei Antiterrorismo, que nos últimos meses tem sido usada de forma crescente contra os jornalistas que cobrem o conflito e contra pessoas suspeitas de ligação ao AA.

O espancamento de detidos/as parece ser generalizado. Em maio, depois de um vídeo de um incidente perturbador se ter tornado viral, os militares admitiram que as suas forças espancavam e pontapeavam detidos vendados.

Registaram-se detenções arbitrária em vários municípios. Uma mulher do município de Kyauktaw, estado de Rakhine, testemunhou a detenção de dez pessoas, incluindo o seu marido, por soldados de Myanmar a 16 de março de 2020. Ela disse à Amnistia Internacional que os soldados espancaram, pontapearam e atingiram com armas os detidos que resistiam. Estas tropas foram descritas como sendo da 55ª Divisão de Infantaria Ligeira, documentada anteriormente pela Amnistia como sendo responsáveis por violações no estado de Rakhine.

“Até agora não tenho notícias do meu marido e sinto-me devastada”, disse.

Os soldados de Myanmar também serão responsáveis por confiscar ou destruir propriedades de civis e apropriar-se de mosteiros transformando-os em bases provisórias para as suas operações. Em 2019, a Amnistia Internacional também documentou o uso e confisco de propriedade civil por parte de soldados no estado de Rakhine e no Norte do estado de Shan.

Residentes disseram que os soldados levaram arroz, lenha, cobertores e roupas, telemóveis e documentos pessoais, pulseiras e colares de ouro. O gado foi abatido ou levado. Os soldados também arrombaram portas, partiram janelas e danificaram pequenos altares budistas existentes nas casas.

A Amnistia Internacional também documentou incidentes em que foram incendiadas ou destruídas aldeias em diferentes municípios nos estados de Rakhine e Chin.

Imagens de satélite de várias povoações afetadas pelo conflito mostram a ocorrência de incêndios em larga escala, consistentes com as táticas militares de Myanmar. Tanto os militares como o AA se acusam mutuamente por estes incêndios.

Num conjunto de aldeias no município de Minbya, uma pessoa deslocada disse que, a 29 de março, soldados de Myanmar incendiaram cerca de 10 casas e o edifício de uma escola pública, acrescentando que durante o incidente morreram dois habitantes.

No estado de Chin, um homem com 41 anos de idade, da etnia Rakhine, que a 24 de maio tentou regressar à sua antiga aldeia, Sein Nyin Wa, no município de Paletwa, após ter estado deslocado durante quase dois meses, relatou que, a partir de um ponto de observação mais elevado, via apenas cinzas.

Durante o período a que se refere o relatório, a Amnistia Internacional não pôde documentar operações e abusos cometidos pelo Exército de Arakan, devido às restrições de viagem impostas pela COVID-19, ao acesso limitado às áreas afetadas pelo conflito e às testemunhas. Contudo, relatos sugerem que o AA continuou o seu padrão de abusos anteriormente documentados pela Amnistia Internacional. Estes incluem colocar em risco as vidas de civis durante ataques, a intimidação de comunidades locais e a privação arbitrária de liberdade.

“Estamos a tornar-nos surdos e cegos”: o bloqueio da internet durante uma pandemia

Em junho de 2019, as autoridades de Myanmar desligaram a internet em nove municípios afetados por conflitos nos estados de Rakhine e Chin: Buthidaung, Kyauktaw, Maungdaw, Minbya, Mrauk-U, Myebon, Ponnagyun e Rathedaun, no estado de Rakhine, bem como Paletwa, no estado de Chin.

O bloqueio foi levantado em cinco municípios no final de agosto de 2019, mas reintroduzido em fevereiro de 2020. No momento de escrita deste comunicado apenas Maungdaw tinha recuperado acesso móvel à internet.

O governo disse que o bloqueio da internet é necessário porque o Exército de Arakan usa a internet móvel para coordenar ataques contra os militares, para colocar minas antipessoais e para incitar o ódio contra as autoridades. Porém, o bloqueio limitou o acesso a informação sobre a COVID-19.

“Nos campos, existem apenas algumas pessoas conscientes da COVID-19,” disse à Amnistia Internacional um trabalhador humanitário, estimando em cerca de cinco por cento quem entende a ameaça.

“O recurso a raides aéreos e bloqueios de internet pode ser novo, mas o desprezo sem remorso pela vida de civis é uma constante.”

Nicholas Bequelin

Um residente deslocado do município de Minbya disse que as pessoas tiveram de aprender sobre a COVID-19 pela televisão, imprimindo jornais e através de ligações por antenas de satélite ilegais.

“Estou preocupado, porque da guerra podemos esconder-nos no mato ou perto, mas não conseguimos esconder-nos do vírus”, disse. “É como se nos estivéssemos a tornar surdos e cegos, e não há ninguém para relatar o que está a suceder em Minbya.”

À medida que continuam as graves violações pelo exército de Myanmar, a Amnistia Internacional reitera o seu apelo ao Conselho de Segurança das Nações Unidas para remeter a situação no país ao Tribunal Penal Internacional(TPI).

“O recurso a raides aéreos e bloqueios de internet pode ser novo, mas o desprezo sem remorso pela vida de civis é uma constante,” disse Nicholas Bequelin.

“As atrocidades não pararam – na realidade, a crueldade dos militares de Myanmar está apenas a tornar-se mais sofisticada. Este infindável padrão de violações é claramente um assunto para o TPI. O Conselho de Segurança tem de agir.”

 

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