28 Maio 2020

A Nigéria corre o risco de perder uma geração devido ao fracasso em proteger e fornecer educação às crianças que vivem no nordeste do país, alerta o novo relatório da Amnistia Internacional. A região tem sido devastada não só pelas atrocidades do Boko Haram, como também pelas graves violações cometidas pelo exército do país.

“As autoridades nigerianas correm o risco de criar uma geração perdida, a não ser que, urgententemente, abordem a forma como a guerra afetou e traumatizou milhares de crianças”

Joanne Mariner, diretora interina da equipa de resposta a crises da Amnistia Internacional

Nas 91 páginas do relatório ‘We dried our tears’: Addressing the toll on children of Northeast Nigeria’s conflict (“Limpámos as nossas lágrimas: O preço para as crianças no conflito do nordeste da Nigéria”), é analisada a forma como as detenções ilegais e atos de tortura generalizados levados a cabo pelos militares agravaram o sofrimento das crianças, nos estados de Borno e Adamawa, onde foram registados crimes de guerra e crimes contra a humanidade perpetrados pelo Boko Haram. O documento revela ainda como os doadores internacionais financiaram um programa com falhas, que alega reintegrar antigos combatentes, mas que equivale à detenção ilegal de crianças e adultos.

“A última década de conflito entre as forças armadas da Nigéria e o Boko Haram foi um ataque à própria infância no nordeste da Nigéria. As autoridades nigerianas correm o risco de criar uma geração perdida, a não ser que, urgententemente, abordem a forma como a guerra afetou e traumatizou milhares de crianças”, afirma a diretora interina da equipa de resposta a crises da Amnistia Internacional, Joanne Mariner.

Se, por um lado, “o Boko Haram atacou várias escolas e raptou um grande número de crianças para fazer delas soldados ou ‘esposas’, entre outras atrocidades”, por outro, “o tratamento do exército nigeriano a quem escapou a essa brutalidade também foi assustador”. Joanne Mariner nomeia detenções ilegais e em massa, sob condições desumanas, até espancamentos, tortura e a permissão de abusos sexuais por parte dos reclusos adultos”.

Entre novembro de 2019 e abril de 2020, a Amnistia Internacional entrevistou mais de 230 pessoas afetadas pelo conflito, incluindo 119 que foram vítimas de graves crimes cometidos pelo Boko Haram, pelo exército ou por ambos, quando ainda eram crianças. Neste número incluem-se 48 crianças mantidas em detenção militar durante meses ou anos, assim como 22 adultos que foram detidos com crianças.

A brutalidade do Boko Haram

As crianças estão entre os grupos mais afetados pelas de atrocidades do Boko Haram, que abrangem ataques a escolas, raptos, recrutamento e uso de crianças-soldado, e casamentos forçados de meninas e jovens mulheres – crimes de acordo com o direito internacional.

Este padrão é bem conhecido devido a casos como maior visibilidade, como o rapto de centenas de alunas de uma escola secundária de Chibok, em 2014. A escala deste tipo crime tem sido frequentemente subestimada e deve chegar a milhares de crianças.

O Boko Haram continua a forçar pais a entregarem meninos e meninas, sob ameaças de morte, e a obrigar meninas e jovens mulheres a casamentos forçados. Quem tenta escapar, acaba por ser morto. As crianças que vivem em áreas sob o controlo do grupo têm sido submetidas a tortura e forçadas a assistir a execuções públicas e outras punições brutais.

“Foi uma experiência terrível e eu testemunhei vários castigos, que iam de tiros ao apedrejamento ou uso do chicote”

Relato de uma jovem de 17 anos

Uma jovem de 17 anos que escapou ao Boko Haram, depois de ter sido raptada e mantida em cativeiro durante quatro anos, descreveu que o “marido” batia-lhe. Na floresta de Sambisa, onde viveu, tinha como tarefas diárias rezar, cozinhar –  se houvesse comida – e assistir a aulas do alcorão. “Nenhum movimento foi permitido e nenhum amigo me podia visitar. Foi uma experiência terrível e eu testemunhei vários castigos, que iam de tiros ao apedrejamento ou uso do chicote.”

Estas jovens recebem pouca ou nenhuma assistência para regressar à escola, ter uma forma de criar meios de subsistência ou aceder a apoio psicossocial.

Detenção militar

As crianças que escapam dos territórios controlados pelo Boko Haram enfrentam uma série de violações pelas autoridades nigerianas, incluindo também crimes à luz do direito internacional. Na melhor das hipóteses, podem acabar como deslocados, lutando pela sobrevivência e com pouco ou nenhum acesso à educação. Na pior das hipóteses, são detidos arbitrariamente em instalações militares, durante anos e sob condições que equivalem a tortura ou outros maus-tratos.

A ONU disse à Amnistia Internacional que, desde 2015, registou a libertação de 2879 crianças. Os números reais dos menores detidos são desconhecidos, pois a organização refere que o acesso às informações é restrito.

A maioria das detenções é ilegal, já que as crianças nunca são acusadas ou condenadas por qualquer crime. Além disso, não podem exercer o direito de ter um advogado, comparecer perante um juiz ou comunicar com as suas famílias. As detenções generalizadas e ilegais podem representar um crime contra a humanidade.

Quase todas as pessoas que fogem dos territórios do Boko Haram, inclusivamente crianças, são “rastreadas” pelo exército e pela Civilian Joint Task Force (Força Civil Conjunta). Este processo envolve, muitas vezes, tortura até que seja “confessada” a afiliação ao grupo armado.

Em diversos casos, os alegados membros e apoiantes do Boko Haram acabam transferidos e mantidos em centros de detenção, durante meses ou anos, sem as devidas condições. Entre as instalações estão as Giwa Barracks, em Maiduguri, e a base militar de Kainji, no estado do Níger.

Todos os ex-detidos entrevistados pela Amnistia Internacional descreveram as condições de forma consistente e muito específica: sobrelotação extrema; falta de ventilação em ambientes com muito calor; parasitas em todos os locais; urina e fezes no chão devido à falta de casas de banho. Embora tenham sido verificadas algumas melhorias nos últimos anos, muitas pessoas, incluindo crianças, não tinham também acesso adequado a água, alimentos e cuidados médicos.

Dezenas de milhares de detidos foram mantidos nessas condições, que são tão extremas que constituem o crime de guerra de tortura. Muitas crianças continuam a ser mantidas desta forma, mesmo após libertações em massa, registadas no final de 2019 e no início de 2020. A Amnistia Internacional estima que, pelo menos, dez mil pessoas, incluindo muitas crianças, morreram em centros de detenção, desde o início do conflito.

“Operação Corredor Seguro”

A Amnistia Internacional também documentou violações no programa “Operação Corredor Seguro”, financiado por milhões de dólares em apoios da União Europeia, do Reino Unido, dos Estados Unidos da América e de outros parceiros. O centro de detenção que foi criado no âmbito deste projeto, em 2016, é comandado por militares, nos arredores de Gombe, e tem como objetivo reabilitar alegados combatentes ou apoiantes do Boko Haram. Cerca de 270 pessoas receberam formação e foram libertadas.

As condições são melhores do que noutros locais de detenção militar e ex-detidos falaram, de forma positiva, sobre o apoio psicossocial e os planos de educação para adultos. No entanto, a maioria dos homens e das crianças não foi informada sobre a base legal para a sua detenção e não tem acesso a advogados ou tribunais para contestar essa situação. A estadia prometida de seis meses, em alguns casos, estendeu-se até 19 meses, período durante o qual os detidos são privados de liberdade e estão sob constante vigilância armada.

A Amnistia Internacional foi informada sobre a falta de assistência médica. Sete pessoas morreram no centro e é provável que não tenham recebido os devidos cuidados. As autoridades nigerianas não notificaram as suas famílias, que acabaram por conhecer o desfecho através de ex-detidos.

Há ainda relatos de trabalhos forçados, já que a maioria das pessoas encaminhadas para o centro, se não todas, nunca foi condenada e faz de tudo, desde sapatos a sabão e móveis, sem receber qualquer remuneração. O programa também sujeita alguns detidos a condições inseguras de trabalho.

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