8 Maio 2024

 

  • Foram contabilizadas 14 crianças mortas e 17 civis feridos em ataques que decorreram em março
  • Famílias das vítimas devem receber as devidas reparações
  • Ataques indiscriminados podem constituir crimes de guerra

 

A Amnistia Internacional afirmou, hoje, que os dois ataques que mataram 23 civis – durante operações militares na Somália apoiadas por drones turcos – devem ser investigados como crimes de guerra. Entre os civis mortos nos ataques de 18 de março de 2024 encontram-se 14 crianças, cinco mulheres e quatro homens. Outros 17 civis ficaram feridos nos ataques: 11 crianças, duas mulheres e quatro homens. Todas as vítimas são do clã marginalizado Gorgaarte.

Os ataques atingiram a quinta de Jaffey, a cerca de três quilómetros a oeste da aldeia de Bagdad, na região de Lower Shabelle, entre as 20h e as 20h30m. As vítimas e outros residentes partilharam à Amnistia Internacional que os ataques de drones se seguiram aos violentos combates terrestres que ocorreram nesse dia entre o grupo armado Al-Shabaab e as forças de segurança somalis, perto das aldeias de Jambaluul e Bagdad.

Tigere Chagutah, diretor regional da Amnistia Internacional para a África Oriental e Austral, alerta que “os governos da Somália e da Turquia têm de investigar estes ataques mortais como um crime de guerra e pôr fim às agressões imprudentes contra civis”.

“Na Somália, os civis têm suportado com demasiada frequência o sofrimento da guerra. Estas mortes não podem ser ignoradas. Os sobreviventes e as suas famílias merecem verdade, justiça e reparação”, acrescenta.

“Os sobreviventes e as suas famílias merecem verdade, justiça e reparação”

Tigere Chagutah

A Amnistia Internacional entrevistou 12 pessoas de forma remota: quatro vítimas, quatro testemunhas oculares e quatro familiares de vítimas. Os investigadores também analisaram imagens de satélite e relatórios médicos, examinaram fotografias de vítimas e fragmentos de armas, e geolocalizaram vídeos do local dos ataques e das operações dos drones turcos no Aeroporto Internacional de Mogadíscio.

Com base nas fotografias dos fragmentos de munições, o investigador de armas da Amnistia Internacional conseguiu confirmar que o ataque foi realizado com bombas planadoras MAM-L, lançadas a partir de drones TB-2. Ambas são fabricadas pela Turquia. A Amnistia Internacional relembra que os ataques que não têm em conta a distinção entre objetivos militares e objetos civis são indiscriminados e podem constituir crimes de guerra.

 

Ataques mortais

De acordo com uma testemunha ocular entrevistada pela Amnistia Internacional, os combatentes do Al-Shabaab estavam em Bagdad durante os confrontos de 18 de março. Um primeiro ataque de drone atingiu uma mesquita na zona oriental de Bagdad pelas 19h30, destruindo o edifício e danificando as casas vizinhas. A Amnistia Internacional não conseguiu verificar de forma independente quem era o alvo na mesquita, nem determinar se houve vítimas.

Na sequência desse ataque, as testemunhas oculares afirmaram que muitos civis fugiram para a quinta de Jaffey em busca de refúgio. Por essa razão, o primeiro ataque à quinta matou e feriu vários civis. Um segundo ataque, cerca de 30 minutos depois, matou e feriu mais civis que tinham chegado das aldeias vizinhas de Alifow e Gaalgube para socorrer os sobreviventes do primeiro ataque.

O primeiro ataque à quinta matou e feriu vários civis. O segundo ataque matou e feriu mais civis que tinham chegado para socorrer os sobreviventes do primeiro

A 19 de março, o Ministério da Informação da Somália emitiu um comunicado em que declarava ter morto mais de 30 militantes do Al-Shabaab nas aldeias de Bagdad e Baldooska, em coordenação com “parceiros internacionais”. O comunicado acrescentava: “A operação foi lançada em resposta a informações dos serviços secretos que indicavam que os combatentes do Al-Shabaab se estavam a reunir nestas áreas e a planear um ataque contra o povo somali… 15 membros do Al-Shabaab foram mortos num ataque aéreo em Bagdad”.

Não é claro se as forças turcas ou somalis estavam ao comando do drone TB-2 no momento dos ataques à quinta de Jaffey. Uma fonte do governo somali disse à Amnistia Internacional que os membros da Agência Nacional de Inteligência e Segurança pilotam os TB-2 durante as operações de combate contra o Al-Shabaab. No entanto, em 2022, o Painel de Peritos da ONU para a Somália informou que, de acordo com o governo turco, a Turquia não transferiu os drones para a Somália em violação do embargo de armas da ONU, mas que opera os próprios drones “na luta contra o terrorismo”. Também em 2022, Ahmed Malim Fiqi – na altura, ministro do Interior da Somália e, atualmente, ministro dos Negócios Estrangeiros – terá afirmado que, enquanto as forças turcas operam os drones, os comandantes somalis fornecem os alvos.

Nos últimos anos, a Turquia providenciou equipamento e apoio militar à Somália. Imagens de satélite e vídeos geolocalizados pelo Crisis Evidence Lab da Amnistia Internacional mostram drones TB-2 turcos na pista do Aeroporto Internacional de Mogadíscio já a 12 de setembro de 2022. Após anos de treino da unidade “Gorgor” das forças armadas somalis no Camp Turksom da Turquia, situado em Mogadíscio, os dois países assinaram um “Acordo-Quadro de Defesa e Cooperação Económica” em fevereiro de 2024.

A 5 de abril, a Amnistia Internacional enviou cartas aos governos da Somália e da Turquia, pedindo pormenores sobre a operação de 18 de março, incluindo quais as forças militares que controlavam o drone no momento dos ataques. Até à data da publicação deste comunicado, nenhum dos governos tinha respondido.

 

Gritos, sangue e corpos espalhados

A Amnistia Internacional apurou que um total de cinco famílias pertencentes ao clã Gorgaarte foram afetadas pelos dois ataques na quinta de Jaffey. Maalim Adan Hussein Hassan Adow, um agricultor de 49 anos, perdeu a mulher de 40 anos, Asli Buule Hassan; o filho de 14 anos, Dahir Maalim Adan; as duas filhas de seis e sete anos respetivamente, Asma Maalim Adan e Ishwaq Maalim Adan; os dois sobrinhos de sete e nove anos, Abdi Ibrahim Duqow e Salah Ibrahim Duqow; e ainda a sua irmã de 30 anos, Fadumo Hussein Hassan Adow, que sofreu um ferimento na cabeça e morreu mais tarde no Hospital Digfeer, em Mogadíscio.

Maalim  partilhou à Amnistia Internacional que não conseguia entender porque é que a sua família era o alvo: “A minha mulher, os meus três filhos e dois sobrinhos foram todos mortos no primeiro ataque na quinta. Na altura, eu estava em Afgoye. Recebi imediatamente uma chamada telefónica dos meus familiares. Por razões de segurança, não era possível viajar durante a noite. Viajei para Bagdad na manhã do dia seguinte. Identifiquei os corpos da minha mulher e dos meus filhos no local. A minha mulher e os meus filhos foram enterrados numa vala comum na aldeia de Gaalgube, enquanto os meus sobrinhos foram enterrados na aldeia de Alifow. Não sei porque é que a minha família foi escolhida como alvo durante o mês sagrado do Ramadão. Estou de coração partido”.

“Não sei porque é que a minha família foi escolhida como alvo durante o mês sagrado do Ramadão. Estou de coração partido”

Maalim Adan Hussein Hassan Adow

Ismail Ali Deerey, um agricultor de 37 anos, e o seu filho de nove anos, Sadam Ismail Ali Deerey, também foram mortos. A sua mulher, as suas duas filhas, os seus dois filhos e o seu sobrinho ficaram feridos e receberam cuidados médicos em Mogadíscio. Mohamed Ali Deerey, o irmão mais velho de Ismail, revelou à Amnistia Internacional: “Eu estava na aldeia de Alifow. Ouvimos uma explosão ensurdecedora. Pouco depois, recebi a notícia de que o meu irmão Ismail tinha sido atingido por um ataque de drones. O meu filho e eu corremos para a quinta. Quando lá chegámos, deu-se outra explosão, cobrindo a área com uma nuvem de poeira. O cenário era caótico. Havia gritos, sangue e corpos espalhados pelo chão. Felizmente, sobrevivi, mas o meu filho de 22 anos, Ali Mohamed Ali Deerey, que estava comigo, ficou gravemente ferido nas costas… O meu irmão Ismail e o seu filho foram brutalmente assassinados”.

Um familiar de outra família que perdeu seis pessoas, das quais três crianças, referiu: “Estou aterrorizado com o que aconteceu aos meus familiares. Isto é desumano. Isto é um massacre”.

O governo da Somália tem um longo historial de falta de reparação das vítimas civis de ações militares, ou de procura de reparação junto de atores estrangeiros quando estes estão envolvidos em ataques ilegais. Tem também um historial de ignorar as violações contra comunidades marginalizadas, como o clã Gorgaarte. Um ancião deste clã sublinhou à Amnistia Internacional: “Sentimo-nos negligenciados e que não somos ouvidos, sem ter ninguém a defender-nos ou a dialogar connosco. Não foi dada qualquer explicação para as ações contra o meu povo, não foi dado seguimento às investigações e não foi oferecida qualquer solidariedade. A nossa prioridade é obter informações sobre os motivos que levaram a este trágico acontecimento. Precisamos também de uma indemnização pelas perdas que sofremos”.

“Não foi dada qualquer explicação para as ações contra o meu povo, não foi dado seguimento às investigações e não foi oferecida qualquer solidariedade”

Ancião do clã Gorgaarte

 

Contexto

O conflito armado entre o governo da Somália e o Al-Shabaab continua a ter um impacto devastador na população civil do país, com todas as partes envolvidas no conflito a cometerem graves violações do direito internacional humanitário.

A Amnistia Internacional documentou múltiplos ataques aéreos do Comando Africano dos Estados Unidos (AFRICOM) que mataram e feriram civis somalis, muitos dos quais em resultado de aparentes violações do direito internacional humanitário. A 5 de abril, a Amnistia Internacional escreveu ao AFRICOM, perguntando se as forças norte-americanas estiveram envolvidas na operação de 18 de março contra o Al-Shabaab, mas não teve resposta até à data desta publicação.

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