27 Outubro 2017

Os presos na Rússia são sujeitos a condições desumanas, frequentemente durante longas semanas, ao serem transferidos, em viagens de milhares de quilómetros, atulhados em carruagens de comboio sem janelas, para colónias penais em zonas distantes do país, é revelado em novo relatório da Amnistia Internacional, publicado esta quarta-feira, 25 de outubro.

Prisoner transportation in Russia: Travelling into the unknown (Transporte de presos na Rússia: rumo ao desconhecido) documenta as condições cruéis e degradantes que presos do sexo masculino e feminino continuam a enfrentar na Rússia devido a práticas herdadas do passado soviético.

“As pessoas condenadas na Rússia são enfiadas em comboios, em espaços extremamente confinados e sem ventilação, sem luz natural, pouquíssima água e reduzido acesso a instalações sanitárias. E no final dessas viagens, que podem demorar um mês, acabam por chegar ao seu destino a milhares de quilómetros de distância das suas famílias”, descreve o vice-diretor da Amnistia Internacional para a Europa e Ásia Central, Denis Krivosheev.

O perito insta que “é mais do que chegada a hora para as autoridades russas se livrarem de uma vez por todas deste legado dos gulag [em referência ao sistema de campos de trabalhos forçados na União Soviética]”. “Têm de pôr fim a estas práticas e garantir que os presos são transportados em condições que cumprem os padrões e as leis internacionais”, prossegue.

Os presos são habitualmente transportados em carruagens prisionais especiais, chamadas “stolipins”, muitas das quais datam da era soviética. Grupos de 12 ou mais presos, mais os seus pertences, são colocados em cada compartimento, sem janelas e com o espaço equivalente ao que, num comboio normal de passageiros, viajam apenas até quatro pessoas.

Um preso testemunhou que na sua transferência de estabelecimento prisional partilhou o compartimento com mais de 12 outros presos durante quatro dias ao longo da viagem de cinco semanas e meia até à colónia penal do seu destino. “Foram quatro dias até Samara, sem ter onde dormir, apenas com as roupas no corpo, sem mais nada. Nem sequer nos permitiam lavar os dentes. Estavam 40º [na carruagem], não havia água no recipiente nem nos sanitários”.

Durante estas transferências, só é autorizado aos presos usarem os sanitários a cada cinco ou seis horas. E nas longas esperas que ocorrem junto às linhas férreas não podem aceder de todo a casas-de-banho. Presos que já passaram antes pela experiência de serem transportados nos comboios contam que não comem nem bebem nada na noite antes da transferência que os espera e que levam com eles tantas garrafas de plástico quantas conseguem.

Um outro preso explicou aos investigadores da Amnistia Internacional: “Se eu soubesse isso no dia anterior, tinha parado de beber e controlado a quantidade de água que iria ingerir. Mais vale passar sede do que sofrer no comboio”.

Uma geografia moldada pelo passado soviético

Apesar da existência de legislação que consagra que os presos devem cumprir as suas sentenças perto da morada de residência, para facilitar a reabilitação, a maior parte dos presos na Rússia, e, em especial, as mulheres, acabam por passar as suas penas de prisão a milhares de quilómetros de distância de onde viviam e das suas famílias.

O Serviço Prisional Federal Russo (FSIN) herdou uma rede de colónias penais do sistema dos gulag soviéticos, muitas das quais estão localizadas onde antes existiam os antigos campos de trabalhos forçados em zonas do país muito remotas e esparsamente povoadas. Isto significa que os presos são transportados ao longo de vastas distâncias, frequentemente superiores a 5 000 quilómetros, tornando extremamente difíceis as visitas de familiares.

E, como apenas 46 das 760 instituições penais russas têm mulheres na população prisional, estas estão muito mais sujeitas a ter de passar por estes sistemas de transferências do que os homens. É comum que as viagens para estes destinos durem um mês ou mais.

“A distância: é uma das formas usadas para debilitar psicologicamente os presos. Ficam longe de qualquer rede de apoio, de qualquer ajuda”, frisou o ativista Aleksei Sokolov, do Grupo de Direitos Humanos dos Urais.

Incomunicáveis e para lá da proteção da lei

O FSIN trata toda a informação pertinente às transferências de presos com o maior secretismo. Nem os presos, nem os seus familiares, nem os seus advogados são informados sobre o destino final antes de começar a viagem. E, durante o transporte, além de privados de ventilação e de luz natural nos comboios, é proibido também aos prisioneiros terem relógios – o que agrava ainda mais a desorientação.

“Nestas longas viagens, não é possível aos presos contactar com o mundo exterior e as autoridades recusam-se a prestar informações sobre onde se encontram. Estas pessoas ficam efetivamente ‘desaparecidas’ durante semanas e mesmo meses consecutivos, deixando as famílias sem notícias e sendo forçadas a estar para lá da proteção da lei e sujeitas a ainda mais abusos. Em termos legais, isto configura de facto desaparecimento forçado”, explica o vice-diretor da Amnistia Internacional para a Europa e Ásia Central.

O caso de Ildar Dadin é um exemplo paradigmático e recente destes desaparecimentos forçados. Prisioneiro de consciência, encarcerado por ter participado em protestos pacíficos contra o Governo, Ildar Dadin despareceu em dezembro de 2016 durante mais de um mês, após ter denunciado que fora submetido a tortura. Reapareceu semanas mais tarde, a 8 de janeiro deste ano, numa colónia penal a 3 000 quilómetros de distância da instituição prisional onde antes se encontrava. As autoridades argumentaram que o tinham transferido pela “sua própria segurança”.

“Os presos, confinados em compartimentos de comboio sobrelotados, passam dias e semanas sem nenhum contacto com o exterior. Assim que estão em trânsito, estas pessoas tornam-se invisíveis, o seu sofrimento é absoluto e ninguém o testemunha. Isto é tratamento cruel, desumano e degradante, pura e simplesmente, e é mais do que a altura para acabar”, avançou a presidente do Grupo de Helsínquia de Moscovo, Liudmilla Alexeieva.

A investigação feita pela Amnistia Internacional é corroborada também por aquilo que foi apurado por outras organizações.

“Os abusos cometidos contra os presos em trânsito constituem um problema grave que também registámos em algum do trabalhado que desenvolvemos na Rússia”, confirmou a investigadora da Human Rights Watch Tania Lokshina. “Ainda recentemente, vimos como o realizador ucraniano Oleg Sentsov foi transportado de Iakutia, na região do Extremo Oriental para a república de Iamalo Nenets, no Norte – foi uma viagem que levou mais de um mês”, prosseguiu.

A Amnistia Internacional, juntamente com a Human Rights Watch e defensores de direitos humanos russos, instam o Governo da Rússia a fazer reformas ao sistema prisional e, especificamente, ao sistema de transporte dos presos, e a acabar com estes abusos. Particularmente com:

  • a definição de um limite na duração do tempo da transferência dos presos
  • o encerramento das colónias penas localizadas a maior distância dos centros populacionais
  • o fim da sobrelotação nas carruagens de comboio e furgões de transporte de presos
  • a garantia de que os equipamentos de transporte são sujeitos a escrutínio público e que as famílias e representantes legais são mantidos informados com regularidade sobre o paradeiro dos presos
  • o fim das transferências de presos para regiões que não aquelas em que residem, em consonância com a legislação em vigor.
  • 10 milhões

    Existem cerca de 10 milhões de pessoas presas no mundo inteiro, em qualquer momento.
  • 3,2 milhões

    Estima-se que 3,2 milhões de pessoas que se encontram na prisão ainda aguardem julgamento.

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