18 Fevereiro 2015

Uma cultura de impunidade profundamente enraizada, falta de experiência e, em alguns casos, mesmo obstruções deliberadas estão a negar a obtenção de justiça às centenas de vítimas dos abusos da polícia que ocorreram durante os protestos EuroMaidan na Ucrânia, é sustentado em novo relatório da Amnistia Internacional a assinalar o primeiro aniversário daquelas manifestações.

Ukraine: A Year After Maydan, Justice Delayed, Justice Denied” (Ucrânia: Um ano após a Maidan, a justiça adiada, a justiça negada) detalha o falhanço consistente das autoridades do país em investigarem o recurso ilegal ao uso da força durante os protestos que encheram a Maidan (a Praça da Independência, em Kiev, capital ucraniana) e as consequentes falhas em fazer cumprir justiça para as vítimas.

“A deplorável falta de progresso em fazer-se justiça por aqueles que morreram, que foram feridos e torturados expõe uma vez mais as falhas profundas que persistem no sistema de justiça penal ucraniano”, avalia o diretor da Amnistia Internacional para a região da Europa e Ásia Central, John Dalhuisen. “Esta falha em tratar os abusos generalizados que ocorreram durante os protestos da EuroMaidan [movimento de manifestações pró-integração europeia na Ucrânia] arrisca entrincheirar ainda mais profundamente a cultura de impunidade de já longa data dos agentes da polícia no país. É imperioso que se faça justiça, não apenas por aqueles que foram mortos, mas também pelos muitos mais que foram alvo de maus-tratos e abusos”, prossegue.

Aquilo que começara em novembro de 2013 como um protesto pacífico contra a recusa do Governo em assinar um acordo de associação com a União Europeia (passo de antecâmara para uma eventual adesão) acabou por transformar-se em manifestações maciças contra o próprio executivo então no poder marcadas por violentos confrontos entre manifestantes e as forças de segurança.

De acordo com o Ministério da Saúde, morreram 105 pessoas nestes tumultos, incluindo pelo menos 13 polícias.

A investigação conduzida pela Amnistia Internacional documenta numerosos casos de recurso ilegal à força, incluindo mortes e tortura, durante os protestos. A organização de direitos humanos apresentou às autoridades ucranianas repetidas vezes detalhes de casos em que se confirma ter sido usado excesso de força e de forma arbitrária contra os manifestantes – mas até agora não se assistiu a nenhum progresso em nenhum dos casos documentados.

Até à data, apenas dois polícias de baixas patentes foram condenados, tendo ambos sido filmados a forçarem um homem a permanecer nu sob temperaturas negativas e em público. Os dois agentes receberam penas suspensas de três e de dois anos de prisão, tendo sido dados como culpados de “exceder a autoridades dos poderes oficiais”. Muitos outros polícias envolvidos em maus-tratos ficaram totalmente impunes sem sequer lhes serem deduzidas acusações.

Mortes e tortura

A primeira morte durante a EuroMaidan foi a de Serhi Nihoian, de 21 anos, alvejado quatro vezes, incluindo tiros na cabeça e no pescoço, a 22 de janeiro de 2014. A identidade de quem o matou permanece desconhecida.

Muitos manifestantes foram torturados ou alvos de maus-tratos. Um homem de 23 anos foi espancado e arrastado até um carro da polícia e foi-lhe pulverizado gás lacrimogéneo nos órgãos genitais, até que perdeu a consciência devido à intensidade da dor sofrida.

Uma mulher de 51 anos foi agredida na cara à bastonada por um polícia quando se encontrava nas ruas a assistir aos protestos. Ficou com o crânio fraturado e perdeu a visão de um dos olhos.

Quase todas as vítimas que a Amnistia Internacional entrevistou dizem não ter sido ouvidas pelas autoridades como vítimas de um crime, apesar de muitas terem sido inicialmente interrogadas como suspeitas de terem cometido crimes. Nenhuma foi informada dos progressos das investigações nos seus casos muitos meses passados desde que apresentaram as suas queixas.

Investigações adiadas e bloqueadas

Na esteira da deposição do então Presidente Victor Ianukovitch, em fevereiro de 2014, o novo governo de transição apressou-se a apontá-lo e aos seus aliados – que também abandonaram o país – como os principais culpados das violações cometidas durante os protestos da EuroMaidan.

As novas autoridades ucranianas fizeram muitas promessas de que investigariam de forma eficiente todos os abusos de direitos humanos e julgariam os responsáveis.

“Os esforços feitos pelos investigadores até agora têm estado centrados nas mortes e na alegada responsabilidade de figuras de topo do anterior Governo, e até nestes inquéritos têm havido mais declarações de progressos do que sinais reais de progressos feitos. Para aqueles que foram feridos e alvo de abusos durante os protestos, as investigações ainda mal começaram”, frisa John Dalhuisen.

A Amnistia Internacional entrevistou também procuradores, os quais revelaram que se verificou um elevado grau de destruição de provas por parte das forças de segurança imediatamente após os protestos e que os agentes mostram uma forte relutância em cooperar nas investigações – o que traz obstáculos de monta aos processos. A falta de recursos e a sobreposição de competências de várias entidades de investigação foram também citadas como estando a dificultar o avanço dos inquéritos.

“O elevado número de incidentes e o grau de complexidade de alguns dos casos têm de ser reconhecidos pelas autoridades. Porém, a verdade maior que daqui sai é que sem reformas significativas das instituições responsáveis pela investigação aos abusos cometidos pelas forças de segurança continuar-se-á a assistir à falta de justiça para as vítimas dos abusos relacionados com os protestos da EuroMaidan. E com isso o ciclo vicioso de impunidade que para eles contribui perdurará”, remata o diretor da Amnistia Internacional para a região da Europa e Ásia Central.

 

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