- Nova fase catastrófica de deslocações forçadas em massa obriga centenas de milhares de palestinianos — muitos dos quais já desalojados várias vezes — a ir para enclaves superlotados no sul da Faixa de Gaza ocupada
- “Infligir deliberadamente mais uma onda devastadora de deslocações em massa no meio de todo este sofrimento não é apenas desumano, é uma violação flagrante do direito internacional” – Erika Guevara Rosas
- Hospitais e instalações de saúde na cidade de Gaza estão a entrar em colapso e as organizações humanitárias, incluindo Médicos Sem Fronteiras e o Comité Internacional da Cruz Vermelha, foram forçadas a suspender as suas operações
A intensificação da brutal ofensiva militar de Israel na cidade de Gaza desde meados de agosto desencadeou uma nova fase catastrófica de deslocações forçadas em massa, obrigando centenas de milhares de palestinianos — muitos dos quais já desalojados várias vezes — a enclaves superlotados no sul da Faixa de Gaza ocupada. Esses enclaves carecem de acesso a água potável, alimentos, cuidados médicos, abrigo e infraestruturas essenciais à vida, afirmou hoje a Amnistia Internacional.
Desde que intensificou as suas operações na cidade de Gaza, o exército israelita adotou uma série de medidas destinadas a semear o pânico entre os residentes da cidade e a deslocá-los à força, conscientemente, para áreas inseguras e mal equipadas para os receber. Essas táticas incluem a emissão de ordens ilegais e generalizadas de deslocações em massa, o início de uma campanha para destruir edifícios residenciais de vários andares, onde centenas de famílias deslocadas se abrigavam, o uso de veículos explosivos controlados remotamente para realizar demolições controladas, bem como a intensificação dos bombardeamentos aéreos em bairros e campos de refugiados já superlotados.
“À medida que Israel intensifica o seu ataque cataclísmico, parece determinado a destruir a cidade de Gaza, expulsando deliberadamente toda a sua população, arrasando grandes áreas da cidade e assumindo o controlo total. Há quase dois anos, civis palestinianos em toda a Faixa de Gaza têm sido bombardeados, submetidos à fome e a ondas sucessivas de deslocações forçadas em massa, enquanto Israel continua o seu genocídio em Gaza. Infligir deliberadamente mais uma onda devastadora de deslocações em massa no meio de todo este sofrimento não é apenas desumano, é uma violação flagrante do direito internacional”, disse Erika Guevara Rosas, diretora sénior de Pesquisa, Advocacia, Política e Campanhas da Amnistia Internacional.
“Há quase dois anos, civis palestinianos em toda a Faixa de Gaza têm sido bombardeados, submetidos à fome e a ondas sucessivas de deslocações forçadas em massa, enquanto Israel continua o seu genocídio em Gaza. Infligir deliberadamente mais uma onda devastadora de deslocações em massa no meio de todo este sofrimento não é apenas desumano, é uma violação flagrante do direito internacional”
Erika Guevara Rosas
Na manhã de 1 de outubro, as forças armadas israelitas anunciaram que o tráfego na estrada al-Rashid (costeira) de sul para norte seria bloqueado ao meio-dia, indicando que os deslocados não teriam permissão para voltar e obstruindo a circulação dos poucos veículos de transporte disponíveis para transferir as pessoas deslocadas e os seus pertences. Horas depois, o ministro da Defesa israelita, Israel Katz, emitiu a seguinte declaração no X (antigo Twitter): “Esta é a última oportunidade para os residentes de Gaza que desejam fazê-lo se deslocarem para o sul e deixarem os terroristas do Hamas isolados na própria cidade de Gaza, cara a cara com a ação das Forças de Defesa de Israel, que continua com toda a intensidade. Aqueles que permanecerem em Gaza [cidade] serão terroristas e apoiantes do terrorismo”.
«Tal é o nível de impunidade concedido aos líderes israelitas que o ministro da Defesa do país pode, sem vergonha, emitir uma declaração pública que efetivamente anula um dos princípios fundamentais do direito internacional humanitário: a obrigação de distinguir, em todos os momentos, entre civis e alvos militares. Ao ameaçar que as centenas de milhares de pessoas que permanecem na cidade de Gaza serão tratadas como ‘terroristas’ e ‘apoiantes do terrorismo’, o ministro da Defesa de Israel está efetivamente a dar luz verde a crimes de guerra, incluindo ataques a civis e a imposição de punições coletivas”, disse Erika Guevara Rosas.
Os hospitais e as instalações de saúde na cidade de Gaza estão a entrar em colapso e as organizações humanitárias, incluindo Médicos Sem Fronteiras e o Comité Internacional da Cruz Vermelha, foram forçadas a suspender as suas operações na cidade como resultado da última escalada.
Os hospitais e as instalações de saúde na cidade de Gaza estão a entrar em colapso e as organizações humanitárias, incluindo Médicos Sem Fronteiras e o Comité Internacional da Cruz Vermelha, foram forçadas a suspender as suas operações na cidade como resultado da última escalada.
Embora não existam números precisos sobre o número de pessoas que foram deslocadas à força da cidade de Gaza desde meados de agosto, o Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) informou que o grupo de gestão local registou mais de 400.000 movimentos do norte para o sul de Gaza, principalmente para Deir al-Balah e Khan Younis. As ondas de deslocações intensificaram-se particularmente desde 5 de setembro, quando as forças armadas israelitas anunciaram e iniciaram uma operação coordenada, visando edifícios altos, seguida por uma ordem de deslocação em massa para toda a cidade de Gaza, a 9 de setembro.
No entanto, centenas de milhares de civis continuam presos sob bombardeamentos implacáveis na cidade de Gaza e no norte da Faixa de Gaza. Muitos não conseguem fugir porque não têm condições financeiras para arcar com os custos de transporte ou porque a pequena área designada por Israel para evacuação está superlotada e imprópria para habitação humana. Para pessoas com deficiência, idosos e outras que há muito esgotaram as suas redes de apoio, não há efetivamente outra escolha a não ser permanecer onde estão.
“Quer as pessoas permaneçam na cidade de Gaza porque não têm para onde ir, porque não têm meios para fugir devido à grave escassez de combustível e abrigo resultante do bloqueio ilegal de Israel, ou porque não suportam mais uma deslocação humilhante e as suas consequências, Israel não pode negar aos civis da cidade de Gaza a proteção a que têm direito. Devem ter acesso sem restrições aos serviços e suprimentos indispensáveis à sua sobrevivência e devem ser protegidos contra ataques ilegais”, afirmou Erika Guevara Rosas.
A Amnistia Internacional entrevistou 16 pessoas deslocadas que foram forçadas a sair da cidade de Gaza entre 6 e 17 de setembro. Estavam alojadas em quatro áreas diferentes da província de Deir al-Balah, onde não têm acesso a serviços básicos. Para fazer as suas necessidades, têm de cavar um pequeno buraco no chão atrás da sua tenda e cobri-lo com uma espessa cobertura de nylon. As crianças mais novas, com menos de 10 anos, têm a tarefa de transportar um galão de água para a sua tenda. Sete das 16 pessoas deslocadas entrevistadas tiveram de fazer a exaustiva viagem de cerca de 20 quilómetros a pé, da cidade de Gaza até Deir al-Balah.
“Deixar a minha filha doente para trás é o meu pior pesadelo”
A 5 de setembro, as forças armadas israelitas anunciaram o início de uma campanha para demolir edifícios residenciais altos, muitos deles já danificados por meses de bombardeamentos implacáveis. Esses edifícios, e os aglomerados de tendas nas suas imediações, serviam de abrigo a milhares de pessoas, na sua maioria famílias deslocadas. Os edifícios estavam frequentemente rodeados por tendas em acampamentos improvisados, miseráveis e sobrelotados, que albergavam pessoas principalmente do norte de Gaza e da cidade de Gaza Oriental. A maioria dos deslocados já foi deslocada à força várias vezes e não tem para onde ir em segurança ou não pode sair porque está desnutrida, doente, ferida ou tem deficiências. As demolições, portanto, desalojaram milhares de pessoas, agravando uma crise de deslocação em espiral criada e orquestrada por Israel.
Mirvat, uma mulher de 46 anos, mãe de quatro filhos, tem dormido numa ilha de trânsito ao longo da rua Salaheddine, em Deir al-Balah, após a sua sétima deslocação. Devido a dores crónicas nas pernas, a viagem da cidade de Gaza até à zona central, a pé, demorou dois dias.
Mirvat disse à Amnistia Internacional: “A minha filha, de 25 anos, tem cancro, mas tive de a deixar para trás na cidade de Gaza porque ela não consegue fazer a viagem a pé e porque, enquanto não encontrarmos um abrigo adequado aqui, é impossível deslocar-se. Precisa de ir ao hospital todos os meses para receber tratamento, o que não consegue fazer desde o final de agosto, porque a estrada entre o local onde está alojada, em Tal al-Hawa, e a rua al-Nasr é demasiado perigosa. Deixar a minha filha doente para trás é o meu pior pesadelo”.
“A minha filha, de 25 anos, tem cancro, mas tive de a deixar para trás na cidade de Gaza porque ela não consegue fazer a viagem a pé e porque, enquanto não encontrarmos um abrigo adequado aqui, é impossível deslocar-se. Precisa de ir ao hospital todos os meses para receber tratamento, o que não consegue fazer desde o final de agosto.”
Mirvat
Weam, mãe de três filhos, também foi forçada a deixar dois dos seus filhos, de sete e cinco anos, com a avó na cidade de Gaza até encontrar um abrigo em Deir al-Balah. “Posso dormir na rua, mas os meus filhos são muito novos. Consegue imaginar a escolha que temos: na cidade de Gaza, os meus filhos estão numa casa danificada, mas os bombardeamentos não param; aqui, é mais tranquilo, mas não temos um teto sobre a cabeça”, reportou.
“O medo destes robôs explosivos foi o que nos obrigou a partir”
As forças israelitas continuam a utilizar veículos telecomandados carregados com explosivos, apelidados “robôs” pelos residentes, para realizar detonações controladas em toda a cidade de Gaza.
Sete pessoas entrevistadas pela Amnistia Internacional disseram que o avanço destes veículos para os seus bairros deixou as famílias sem outra opção a não ser abandonar as suas casas, temendo pelas suas vidas. Firyal, mãe de seis filhos, que foi deslocada de Shuja’iya a 3 de abril de 2025, procurou refúgio na escola secundária para raparigas al-Jalil, transformada num campo improvisado para pessoas deslocadas, em Tal al-Hawa, um bairro da cidade de Gaza.
Relatou que há mais de 10 dias que procura um lugar para ficar, sem sucesso, constatando que as escolas transformadas em abrigos já excederam sua capacidade e que alugar terrenos privados tornou-se proibitivamente caro.
Disse ainda à Amnistia Internacional que, durante toda a noite, ouviram sons aterrorizantes de escavadoras: “O medo destes robôs explosivos foi o que nos obrigou a partir; montámos a nossa tenda perto da praia, mas depois lançaram panfletos a ordenar-nos que partíssemos novamente, por isso fomos deslocados no sábado, 17 de setembro. Não tínhamos dinheiro para pagar transporte… já tínhamos gasto tudo o que tínhamos para comprar comida enlatada, por isso mudámo-nos da cidade de Gaza para Deir al-Balah a pé, partindo de manhã e chegando à noite. Não conseguimos encontrar nenhum lugar para ficar, então, como pode ver, estamos literalmente a dormir na rua, nesta ilha de trânsito na rua Salaheddine. Usamos algumas roupas das crianças como cobertores. A tenda que tínhamos foi destruída depois de os israelitas bombardearem um prédio próximo do nosso. Estamos constantemente em risco de ser atropelados pelos camiões que passam por aqui. Não há nada para nos proteger”.
“Não há para onde ir”
Ao longo do último mês, centenas de milhares de residentes da cidade de Gaza foram deslocados para a província de Deir al-Balah ou para al-Mawasi e Khan Younis. Muitos dos que ficaram não puderam sair porque não tinham dinheiro para pagar o transporte, devido à extrema escassez de combustível. Pagar o transporte, comprar uma tenda, alugar um pequeno apartamento ou um terreno onde pudessem montar a tenda está para além dos recursos da maioria.
Raeda, que foi deslocada quatro vezes desde abril de 2025, primeiro de Shuja’iya para al-Nafaq, depois para Tal al-Hawa na cidade de Gaza e agora em Al-Zawayda, perto de Deir al-Balah, testemunhou: “Tenho dormido nas ruas, sem sequer uma tenda, nos últimos 10 dias. Somos uma família de sete pessoas, todos dormimos ao ar livre, não conseguimos descansar, não temos qualquer privacidade, não há vida aqui. Não tomamos banho há dias”.
“Tenho dormido nas ruas, sem sequer uma tenda, nos últimos 10 dias. Somos uma família de sete pessoas, todos dormimos ao ar livre, não conseguimos descansar, não temos qualquer privacidade, não há vida aqui. Não tomamos banho há dias”
Raeda
Outra mulher deslocada, Shireen, e a sua família permaneceram no campo de refugiados de al-Shati, apesar dos panfletos que os informavam sobre as ordens de deslocação, pois não tinham para onde ir e todos os locais que tentaram no sul estavam sobrelotados. A 15 de setembro de 2025, receberam um telefonema do exército israelita ordenando-lhes que partissem, mencionando os seus nomes.
Shireen disse: “Ficámos apesar do bombardeamento intenso; perdemos a conta ao número de vezes que escapámos à morte; todas as noites eram piores do que as anteriores; um edifício perto de nós foi bombardeado e completamente destruído, mas partimos depois de o exército israelita nos ter ligado e ordenado que partíssemos. Dissemos ao homem ao telefone que não tínhamos para onde ir. Por isso, viemos para Al-Zawayda e, desde a nossa deslocação, temos dormido ao ar livre”.
“Ficámos apesar do bombardeamento intenso, perdemos a conta ao número de vezes que escapámos à morte, todas as noites eram piores do que as anteriores.”
Shireen
Esta foi a oitava vez que foram deslocados desde o início da guerra, mas foi a mais difícil porque, como afirmou: “Pelo menos, antes podíamos levar uma tenda; tínhamos o nosso painel solar; tínhamos algum dinheiro; agora não temos nada; pagámos tudo o que tínhamos para garantir as despesas de transporte”.
“Com pessoas e famílias a sofrerem além de todos os limites, uma catástrofe humanitária aprofunda-se cada vez mais em toda a sua crueldade, dia após dia. Deslocações forçadas repetidos em condições desumanas, a destruição sistemática de infraestruturas essenciais à vida e o bloqueio sufocante fazem parte da política deliberada de Israel, calculada para provocar a destruição física dos palestinianos em Gaza”, afirmou Erika Guevara Rosas.
“Os palestinianos em Gaza há muito que ultrapassaram o ponto de não retorno, cada dia custa vidas e esmaga a humanidade. Os Estados devem cumprir as suas obrigações ao abrigo do direito internacional para pôr fim ao genocídio de Israel contra os palestinianos. Atos simbólicos, como reconhecer o Estado da Palestina enquanto se continua a fornecer armas a Israel e não se combate a impunidade por crimes atrozes, não são eficazes. Os Estados devem usar a sua influência para garantir um cessar-fogo imediato e forçar Israel a parar o seu genocídio em Gaza. A ocupação ilegal de todo o Território Palestiniano Ocupado deve terminar, e o sistema de apartheid de Israel deve ser desmantelado sem demora”.
Nota: Para a segurança dos entrevistados, a organização omitiu os apelidos.
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