28 Abril 2015

Ali tem 15 anos e partiu da Somália há três meses. Atravessou as areias do deserto do Sara e o mar alto do Mediterrâneo. Esteve nas mãos de traficantes armados e contou com a generosidade de outros que arriscam a perigosa viagem, como ele, para alcançar a Europa. Sobreviveu. Chegou a Lampedusa. E aí contou a sua história à equipa da Amnistia Internacional, que é a história de milhares.

Uma equipa de investigadores da Amnistia Internacional acabou de regressar de uma missão na ilha italiana de Lampedusa e em outros locais da Sicília, onde recolheu testemunhos de migrantes, refugiados e requerentes de asilo que foram salvos no alto mar na zona central do Mediterrâneo.

Estima-se que só nas últimas duas semanas centenas de pessoas perderam a vida no mar, e mais de 10.000 foram resgatadas das águas. Muitos dos sobreviventes contam histórias atrozes. Esta é uma delas, a de um rapaz somali de 15 anos que perdeu um amigo com quem fazia a perigosa viagem que durou mais de três meses. A Amnistia Internacional conversou com ele num centro de acolhimento em Lampedusa, menos de uma semana após ter sido salvo a 17 de abril. Chamamos-lhe aqui Ali, nome fictício, a seu pedido.

 

“O meu nome é Ali e venho da Somália. Tenho 15 anos.

Quando eu tinha nove anos, fui separado da minha família e mudei-me para a capital, Mogadíscio, onde vivi com amigos na zona de Yaaqshiid. Aí, aprendi inglês e trabalhei a limpar sapatos aos soldados.

Há três meses, parti da Somália. Há lá muitos problemas: combates, a seca, fome. Estou à procura de uma vida melhor. Gostava de ir para a Noruega.

Eu viajava com um amigo. O pai dele pagou-nos a viagem através do deserto, da Somália para a Líbia. Foi longa e muito difícil, atravessámos muitos países numa daquelas camionetas de caixa aberta: Etiópia, Sudão, Líbia. O meu amigo não conseguiu [chegar à Líbia]. Ele caiu da traseira da camioneta, pois os traficantes conduziam a alta velocidade na travessia do deserto do Sara.

Os traficantes pararam o veículo quando ele caiu e fomos ver se o meu amigo estava bem. Não estava. Enterrámo-lo no deserto. Tinha 19 anos. Mais tarde telefonei ao pai dele para lhe contar que o filho tinha morrido; foi uma conversa muito difícil.

Uns três meses depois de termos partido da Somália, chegámos a Trípoli, onde ficámos durante mais ou menos uma semana, numa casa grande com muitas outras pessoas. Os traficantes põem os somalis e os eritreus em casas diferentes. Os nossos captores eram gente muito má, eles bateram em amigos meus. E também tinham armas: armas grandes e pistolas.

O homem que tinha o barco exigiu-me dinheiro para fazer a viagem para a Europa: pediu-me 1.900 dólares. Mas eu não tinha dinheiro nenhum, nem familiares que o pudessem pagar. Por isso, outras pessoas que também estavam naquela casa ajudaram-me a juntar o dinheiro para eu poder fazer a viagem.

O homem mentiu-nos: disse-nos que íamos fazer a travessia num barco de fibra de vidro, mas afinal era um bote insuflável.

Mesmo antes de partirmos, houve um acidente no local onde estávamos em Trípoli. Alguns dos viajantes estavam a cozinhar num pequeno fogão a gás e havia pessoas a fumar por perto. Uma das botijas de gás inflamou-se e explodiu. Morreram dez pessoas. Enterrámo-los em Trípoli.

Outras 22 pessoas, todas vindas da Eritreia, tiveram ferimentos graves, ficaram todas queimadas pelas chamas da explosão. Mas os traficantes forçaram-nos a deixar a casa e a entrarem no bote na mesma.

Embarcámos ao fim do dia de 16 de abril e deixámos Trípoli por volta da meia-noite. Éramos mais de 70 pessoas no bote, incluindo os feridos graves. No total a bordo éramos uns 45 somalis, 24 eritreus, duas pessoas do Bangladesh e outras duas do Gana.

Por volta das 9h ou 9h30 do dia seguinte, o bote começou a perder ar. As pessoas chegaram-se à parte da frente, para tentar pôr pressão no buraco. Usámos o telefone satélite a pedir ajuda. Passaram-se umas seis horas até aparecer o barco de resgate.

Essas seis horas foram as piores da minha vida. Pensei que já não ia viver mais. As pessoas rezavam alto, pedindo perdão a Deus.

Eram já 15 horas quando o barco de resgate se aproximou do nosso bote. Era um barco enorme da Guarda Fiscal italiana.

Senti que estava a nascer de novo.

Os meus amigos que fizeram a viagem comigo no bote estão todos bem, mas aqueles que tinham embarcado feridos encontravam-se em estado ainda mais grave depois da viagem. Uma mulher da Eritreia morreu devido às queimaduras. Outra mulher tinha um filho, de dois anos, que foi cuidado por outros a bordo do bote, uma vez que ela estava muito gravemente ferida. Por isso separaram-nos, à mãe e ao filho, à chegada à Lampedusa*.

Agora temos abrigo, temos comida, e agradecemos a Deus por nos ter salvado. E agradecemos à Itália.

Há muitas pessoas a morrer. Gente que parte da Somália continua a fazer esta viagem. No meu país não há paz, não há trabalho.

Aqui, em Lampedusa, vi um poster de que gostei. Diz que os governos devem salvar vidas, não as fronteiras. Eu gostava de dizer isso mesmo aos governos.”

*A Amnistia Internacional apurou junto de responsáveis do centro de acolhimento e com o diretor do hospital local que a mulher eritreia que Ali menciona na sua história se reuniu ao filho mais tarde, na Sicília.

 

A organização de direitos humanos tem em curso, desde 20 de março de 2014, a campanha “SOS Europa, as pessoas acima das fronteiras“, iniciativa de pressão global para que a União Europeia mude as políticas de migração e asilo, no sentido de minorar os riscos de vida que migrantes, refugiados e candidatos a asilo correm para chegar à Europa, e garantir que estas pessoas são tratadas com dignidade à chegada às fronteiras europeias. A esta campanha está aliada uma petição que conta já com quase 7.700 assinaturas em Portugal. E esta terça-feira, 28 de abril, a Amnistia Internacional Portugal, num gesto de solidariedade para com todos quantos fazem a travessia do Mediterrâneo, leva à baixa de Lisboa uma marcha lenta que converge para o Cais das Colunas, onde são lançadas flores às águas.

 

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