31 Agosto 2022

As forças de segurança iranianas e turcas têm submetido cidadãos afegãos a retornos forçados, enquanto estes tentam atravessar as fronteiras dos seus países em busca por segurança. Em muitos casos, as autoridades disparam armas de fogo sobre estas pessoas, mesmo contra crianças.

Num novo relatório “They don’t treat us like humans” (em português: Eles não nos tratam como seres humanos), a Amnistia Internacional documentou numerosos casos – em especial na fronteira iraniana – em que as forças de segurança dispararam sobre pessoas que estavam a trepar muros ou a rastejar por baixo de cercas. Os cidadãos afegãos que conseguem entrar nestes dois países, enfrentam detenções arbitrárias, estando sujeito a tortura e outros maus-tratos, antes de serem obrigados a regressar ao Afeganistão à força e de forma ilegal.

A equipa de investigação da Amnistia Internacional visitou o Afeganistão em março de 2022, tendo realizado entrevistas nas cidades de Herat e Qala. Das 74 pessoas afegãs entrevistadas pela Amnistia Internacional para este relatório, e que tinham sido vítimas de retornos forçados pelo Irão ou Turquia, 48 afirmaram que as autoridades destes países dispararam sobre si enquanto tentavam atravessar a fronteira. Destas 74 pessoas, nenhuma pôde efetuar um pedido de asilo em ambos os países. Em vez disso, foram obrigadas a regressar ao Afeganistão, em situação de incumprimento absoluto do Direito Internacional.

“Um ano após o fim das operações aéreas de retirada do Afeganistão, muitos dos que ficaram para trás arriscam agora a vida na sua tentativa de fuga do país. Na procura por segurança, os afegãos que viajaram para as fronteiras iranianas e turcas durante o ano passado, foram sujeitos a retornos forçados e alvos de disparos com armas de fogo. Documentámos a forma como como as forças de segurança iranianas mataram e feriram, de forma ilegal, dezenas de afegãos desde agosto de 2021.

Os guardas de fronteira turcos utilizaram ainda ilegalmente armas de fogo contra afegãos, disparando para o ar para repelir pessoas, mas em alguns casos, também contra si”, revela Marie Forestier, investigadora sobre os Direitos dos Refugiados e dos Migrantes da Amnistia Internacional.

“Os perigos não terminam nas fronteiras. Muitos afegãos entrevistados permaneceram em detenção arbitrária, quer na Turquia quer no Irão, onde foram sujeitos a tortura e outros maus-tratos, antes de serem impelidos a retornos forçados e ilegais. Apelamos às autoridades turcas e iranianas que terminem imediatamente com todos os pushbacks e deportações de afegãos, com a tortura e outros maus-tratos que lhes são dirigidos, e que garantam a passagem segura e o acesso aos procedimentos de asilo para todos os que procuram proteção. As autoridades devem abandonar a utilização ilegal de armas de fogo contra afegãos nas fronteiras e os autores de violações de direitos humanos (como assassínios e tortura) sejam responsabilizados”.

“Os perigos não terminam nas fronteiras. Muitos afegãos entrevistados permaneceram em detenção arbitrária, quer na Turquia quer no Irão, onde foram sujeitos a tortura e outros maus-tratos, antes de serem impelidos a retornos forçados e ilegais”

Marie Foster

O apelo da Amnistia Internacional estende-se igualmente à comunidade internacional, para que preste apoio financeiro e material aos países que acolhem um grande número de afegãos, incluindo o Irão e a Turquia. Estes devem assegurar que este financiamento não contribua para as violações de direitos humanos – isto é fundamental, uma vez que a União Europeia já forneceu fundos para o novo muro fronteiriço da Turquia e para a construção de vários “centros de saída”, nos quais a Amnistia Internacional documentou a detenção de afegãos. Outros países devem também aumentar as oportunidades de acolhimento e estabelecimento de afegãos que necessitam de proteção internacional.

 

Uma longa e arriscada viagem

Centenas de milhares de afegãos fugiram do seu país desde o regresso dos talibãs ao poder em agosto de 2021. Os Estados fronteiriços do Afeganistão fecharam as suas fronteiras aos afegãos sem documentos de viagem, deixando muitas pessoas sem outra alternativa que não fossem as travessias irregulares. Este tipo de travessias envolve passagens para o Irão através de passagens informais da fronteira – como rastejar debaixo de uma cerca perto de uma passagem oficial na província de Herat no Afeganistão, ou escalar um muro com dois metros na província de Nimroz.

Os que não são imediatamente detidos pelos guardas de fronteira iranianos viajam para várias cidades no Irão, ou para a fronteira turca a quase 2000 km de distância. Tanto na fronteira afegã-iraniana como turco-iraniana, os afegãos são sujeitos a pushbacks violentos e ilegais – do Irão para o Afeganistão, ou da Turquia para o Irão.

Os investigadores da Amnistia Internacional viajaram quer para o Afeganistão, quer para a Turquia em março e maio de 2022. Entrevistaram médicos, funcionários de diversas ONG e trabalhadores afegãos, bem como 74 cidadãos afegãos que tinham tentado atravessar previamente a fronteira afegã-iraniana e/ou turco-iraniana. Algumas pessoas tinham feito múltiplas tentativas. Outras optavam por viajar em grupos. Fundamentando-se nos seus relatos, a Amnistia Internacional registou um total de 255 casos de retornos ilegais entre março de 2021 e maio de 2022.

 

Mortes nas tentativas de entrada no Irão

A Amnistia Internacional entrevistou os familiares de seis homens e um rapaz de 16 anos que foram mortos pelas forças de segurança iranianas enquanto tentavam atravessar a fronteira para o Irão entre abril de 2021 e janeiro de 2022. No total, a organização documentou 11 assassinatos pelas forças de segurança iranianas, embora se estime um número real de mortes significativamente mais elevado. A falta de procedimentos de informação detalhados significa que existem poucas estatísticas disponíveis publicamente, mas os trabalhadores humanitários e médicos afegãos referiram à organização que registaram pelo menos 59 mortes e 31 feridos, no período entre agosto e dezembro de 2021.

Ghulam* descreveu como o seu sobrinho de 19 anos foi baleado e morto em agosto de 2021: “Quando chegou ao muro na fronteira, subiu-o e ergueu a cabeça por cima. Foi atingido com um tiro na cabeça e caiu ao chão no lado [afegão] da fronteira”.

Alguns dos tiroteios documentados tiveram lugar dentro do território iraniano. Sakeena, de 35 anos, contou à Amnistia Internacional como o seu filho de 16 anos foi morto a tiro quando se afastava da fronteira iraniana: “Ouvi o meu filho gritar por mim, tinha sido atingido por duas balas nas costelas. Não sei o que aconteceu depois de ter desmaiado […] Quando recuperei a consciência, estava no Afeganistão. Foi quando vi que o meu filho estava morto. Eu estava ao lado do seu corpo num táxi”.

“Quando recuperei a consciência, estava no Afeganistão. Foi quando vi que o meu filho estava morto. Eu estava ao lado do seu corpo num táxi”

Relato de uma vítima

 

Tiroteios pelas forças de segurança turcas

A Amnistia Internacional entrevistou 35 pessoas que tinham tentado atravessar a fronteira turca, das quais 23 relataram ter estado numa área na qual ocorreram diversos disparos sobre si. Os investigadores da organização entrevistaram um homem afegão que afirmou ter assistido à morte de três rapazes adolescentes pelas forças de segurança turcas. Outras testemunhas descreveram os ferimentos que os guardas turcos tinham infligido a seis homens e três rapazes. A Amnistia Internacional entrevistou ainda dois homens que apresentavam ferimentos de bala, feitos também na fronteira turca.

Aref, um antigo oficial dos serviços secretos afegãos que fugiu após receber ameaças de morte por parte dos Talibãs, revelou ter testemunhado ataques diretos a crianças pequenas perpetrados também pelas autoridades turcas:

“Dispararam diretamente contra nós, não para o ar (…). Vi uma mulher e duas crianças serem feridas, uma criança de dois anos ser baleada no rim e outra de seis anos na sua mão. Estava muito assustado”.

Nenhum dos mortos ou feridos parece ter representado qualquer ameaça iminente para as forças de segurança – muito menos uma ameaça de morte ou de ferimentos graves – o que significa que o uso de armas de fogo teria sido ilegal e arbitrário.

Em algumas situações, as forças de segurança iranianas alegadamente recorreram a armas de fogo com a clara intenção de matar – por exemplo, ao dispararem diretamente contra pessoas a curta distância.

“Quaisquer mortes resultantes do uso deliberado e ilegal de armas de fogo por agentes do Estado devem ser investigadas como potenciais execuções extrajudiciais”, alerta Marie Forestier.

No Irão prevalece uma crise de impunidade sistémica para padrões generalizados de tortura e execuções extrajudiciais. A Amnistia Internacional reitera o seu apelo ao Conselho dos Direitos Humanos da ONU para que estabeleça um mecanismo independente de investigação e responsabilização para recolher e analisar provas de crimes mais graves à luz do direito internacional cometidos no Irão, incluindo contra afegãos no contexto de pushbacks, a fim de permitir futuros processos judiciais.

 

Detido e torturado

Quase todos os entrevistados que foram interceptados no Irão ou Turquia – e não foram sujeitos a retornos forçados e imediatos – permaneceram arbitrariamente detidos. O período de detenção variou de um ou dois dias até dois meses e meio. Vinte e três pessoas descreveram tratamentos equivalentes a tortura e outros maus-tratos durante a detenção no Irão, assim como o fizeram 21 pessoas detidas na Turquia.

Hamid descreveu como as forças de segurança turcas o espancaram a si e a um amigo: “Um dos polícias espancou o meu amigo com a arma, e depois sentou-se em cima dele como se ele estivesse numa cadeira, acendendo um cigarro. Depois disso, bateu-me também nas pernas com a sua arma”.

“Um dos polícias espancou o meu amigo com a arma, e depois sentou-se em cima dele como se ele estivesse numa cadeira, acendendo um cigarro”

Relato de uma vítima

Várias pessoas entrevistadas pela Amnistia Internacional foram detidas no Irão após terem sofrido ferimentos de bala. Amir ficou ferido quando uma bala disparada pelas forças de segurança turcas lhe raspou a cabeça. Após ter sido obrigado a regressar ao Irão, Amir foi detido pelas autoridades iranianas que o espancaram na cabeça:

“Batiam-me diretamente na ferida, que começava a sangrar novamente. Quando uma vez pedi ‘por favor não me batam na cabeça’, o guarda [no centro de detenção] perguntou ‘Onde?’. Quando lhe mostrei, ele atingiu-me precisamente nesse sítio, onde estava a ferida”, referiu Amir.

Onze afegãos expulsos de forma ilegal pelas autoridades turcas tinham sido detidos num dos seis “centros de saída” na Turquia, cuja construção foi parcialmente financiada pela UE.

“A Comissão Europeia deve assegurar que o financiamento relacionado com a migração e asilo na Turquia não contribua para violações de direitos humanos. Se a UE continuar a financiar centros de detenção onde os afegãos são detidos antes de serem sujeitos a retornos forçados e ilegais, arrisca-se a ser cúmplice destas terríveis violações”, concluiu Marie Forestier.

“Se a UE continuar a financiar centros de detenção onde os afegãos são detidos antes de serem sujeitos a retornos forçados e ilegais, arrisca-se a ser cúmplice destas terríveis violações”

Marie Foster

 

Proteção internacional recusada

Nenhum dos afegãos entrevistados pela Amnistia Internacional conseguiu registar um pedido de proteção internacional, quer no Irão, quer na Turquia. As vítimas afirmaram ter tentado com que as autoridades percebessem que estariam em sério risco de violação de direitos humanos se regressassem ao Afeganistão. No entanto, os seus receios não foram ouvidos.

As forças de segurança turcas transferiram os afegãos de volta para o Irão em travessias irregulares. Por sua vez, as forças iranianas encaminharam os afegãos detidos de autocarro para a fronteira afegã. Dez pessoas sujeitas a este tipo de retornos na Turquia foram reenviadas diretamente para o Afeganistão por avião. A Turquia retomou os voos para o Afeganistão em finais de janeiro de 2022. No final de abril, a autoridade turca de migração anunciou no seu website que este tipo de voos já tinha transportado 6.805 cidadãos afegãos de volta ao Afeganistão.

Todos os entrevistados que foram vítimas de retornos forçados referiram que as autoridades turcas e iranianas os tinham coagido a partir. A Amnistia Internacional soube, através de relatos, como estas pessoas detidas soluçaram e desmaiaram quando souberam que estavam a ser devolvidas ao Afeganistão, e como um homem tentou o suicídio ao saltar de uma janela.

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