O acórdão do Tribunal da Relação do Porto recentemente difundido pelos órgãos de comunicação social relançou, na semana passada, a discussão pública generalizada sobre a violência de género em Portugal, em particular sobre a violência sexual, e o acesso à justiça. A discussão tem envolvido especialistas em direitos das mulheres, representantes políticos, advogados e advogadas, juízes e juízas, e mobilizou centenas de pessoas em três manifestações contra aquela decisão, no Porto, em Coimbra e em Lisboa.
O Tribunal da Relação do Porto foi chamado a apreciar, em sede de recurso, um acórdão do Juízo Central Criminal de Vila Nova de Gaia que suspendeu a execução da pena de quatro anos e meio de prisão em que condenou dois arguidos, homens, pela prática, por modificação da qualificação jurídica, de um crime de abuso sexual de uma mulher quando esta se encontrava inconsciente num estabelecimento comercial no qual aqueles trabalhavam.
Do referido acórdão do Tribunal da Relação do Porto consta que, para a determinação da medida da pena, o Juízo Central Criminal de Vila Nova de Gaia terá considerado, em face da factualidade dada como provada, existir um grau de ilicitude “elevado” e estar-se na “presença de personalidades mal formadas que se manifestam não apenas nos modos de atuação mas também na negação absoluta dos factos cruciais à imputação”, entendendo o Tribunal que os arguidos “não interiorizaram o desvalor das suas condutas”. No que às exigências de prevenção especial diz respeito, considerou o Tribunal de primeira instância serem “medianamente acentuadas, não obstante os arguidos não tenham revelado arrependimento“.
No acórdão do Tribunal da Relação do Porto é citado o juízo de prognose formulado pelo Tribunal de primeira instância para efeitos de suspensão da pena de prisão. Nesta análise, refere este Tribunal que, entre outros, os arguidos “revelaram noção da gravidade dos factos por eles cometidos” e que, “apesar da censurabilidade das suas condutas, os danos físicos provocados não assumem especial gravidade considerando o período de cura das lesões provocadas essencialmente com as palmadas (equimoses e hematomas), a que acresce o diminuto receio de cometimento de novos e idênticos factos atento o facto de não haver notícia de posteriores deslocações da ofendida ao ‘F…’ ou de qualquer tipo de contacto entre ela e os arguidos, com núcleos de vida familiar e profissional perfeitamente afastados”.
Em sede de recurso, chamado a pronunciar-se sobre a suspensão da pena de prisão, o Tribunal da Relação do Porto concluiu mantê-la com base, entre outros, no juízo de que “a culpa dos arguidos [embora nesta sede a culpa já não seja chamada ao caso] situa-se na mediania, ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica, ambiente de sedução mútua, ocasionalidade (não premeditação), na prática dos factos”. Mais considera que “a ilicitude não é elevada”, entendo não haver “danos físicos [ou são diminutos] nem violência [o abuso da inconsciência faz parte do tipo]”.
“Destas decisões emergem evidentes estereótipos de género, a culpabilização da vítima de violação, a depreciação dos danos e da humanidade da vítima.”
Amnistia Internacional Portugal
Destas decisões emergem evidentes estereótipos de género, a culpabilização da vítima de violação, a depreciação dos danos e da humanidade da vítima. Assoma ainda que, como móbil para o receio de cometimento de novos e idênticos factos por parte dos perpetradores, é considerado, entre outros, o afastamento ou não da vítima do local do crime e dos perpetradores – que, refere-se, não revelaram arrependimento.
Os argumentos utilizados no referido acórdão suscitam enorme preocupação, transmitindo uma mensagem prejudicial às vitimas de violência sexual e de género em Portugal sobre o acesso à justiça, colocando o seu comportamento no banco dos réus, em vez das ações dos perpetradores. Consequentemente, não é menos relevante a mensagem que, a contrario, é transmitida aos responsáveis por atos de violência e o perigo para a prevenção e combate da violência sexual de género em Portugal.
As interpretações legais e decisões judiciais devem ser sensíveis ao género. Estas, particularmente no que respeita à violência sexual contra as mulheres, não devem ser influenciados por estereótipos de género e mitos sobre a sexualidade masculina e feminina. De acordo com os padrões internacionais de direitos humanos, os Estados devem tomar medidas para que os profissionais relevantes que lidam com as vítimas ou com os responsáveis por todos os atos de violência, incluindo os juízes, atuem livres de preconceitos, de culpabilização da vítima, de estereótipos e de mitos.
“Os argumentos utilizados no referido acórdão suscitam enorme preocupação, transmitindo uma mensagem prejudicial às vitimas de violência sexual e de género em Portugal sobre o acesso à justiça, colocando o seu comportamento no banco dos réus, em vez das ações dos perpetradores.”
Amnistia Internacional Portugal
Neste contexto, é ainda fundamental que Portugal alinhe a legislação sobre a violência sexual com os padrões internacionais de direitos humanos, como já foi recomendado ao Estado português pelo Comité para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres em 2015. Recorde-se que no segundo trimestre deste ano foi divulgado pela Amnistia Internacional um estudo que refere Portugal como um dos países Europeus que ainda não logrou conformar adequadamente a legislação interna com a Convenção de Istambul.
O Governo português e os demais órgãos de soberania devem ouvir as vozes da discussão que ocorre no contexto nacional. E, em respeito pela Constituição e pelos direitos humanos das mulheres, nomeadamente pela sua liberdade e autodeterminação sexual e integridade pessoal, devem adotar as reformas, melhorias e todas as ações necessárias para que sejam garantidos os direitos das vítimas, em especial no acesso à justiça, e a efetiva prevenção e combate à violência sexual e de género, em cumprimento das obrigações internacionais a que Portugal está vinculado.
“É fundamental que Portugal alinhe a legislação sobre a violência sexual com os padrões internacionais de direitos humanos, como já foi recomendado pelo Comité para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres em 2015.”
Amnistia Internacional Portugal
A Amnistia continuará a monitorizar de perto esta situação.
Necessidade e urgência do debate sobre a prevenção e combate à violência sexual na sociedade portuguesa
Embora reconhecendo a importância de toda a violência sexual como questão de direitos humanos, independentemente do sexo, género ou identidade de género da vítima, as mulheres e raparigas são desproporcionadamente afetadas por esta forma de abuso.
Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), o crime de violação é dos que mais aumentou em Portugal em 2017 (21,8%), no quadro da criminalidade violenta e grave, com mais 73 casos registados (num total de 408) em comparação com o ano de 2016. No RASI é referido ainda que em 90,7% dos casos registados em 2016 as vítimas são mulheres; a maioria das vítimas (22,7%) tem entre 21 a 30 anos; em cerca de 55% dos casos existe uma relação familiar ou de conhecimento entre vítima e perpetrador.
“As mulheres que denunciam violência sexual demonstram uma coragem extraordinária.”
Amnistia Internacional Portugal
O número de casos será superior ao registado considerando que muitas mulheres não denunciam o crime de que são vítimas por, muitas vezes, não conhecerem os seus direitos, por falta de confiança no sistema legal ou, simplesmente, por receio de descredibilização, intensificando o seu sofrimento.
As mulheres que denunciam violência sexual demonstram uma coragem extraordinária. Enfrentam enormes barreiras no acesso à justiça e a mecanismos de reparação, incluindo a sujeição ao questionamento da sua credibilidade, estereótipos de género prejudiciais, falhas no sistema legal e interpretações erradas sobre o que é violência sexual.