29 Maio 2018

As autoridades da Nicarágua adotaram uma estratégia de repressão caracterizada pelo uso excessivo da força, por execuções extrajudiciais, controlo dos media e recurso a grupos armados pró-governamentais para esmagar protestos, em que foram mortas já pelo menos 81 pessoas, denuncia a Amnistia Internacional em novo relatório publicado esta terça-feira, 29 de maio.

“Na Nicarágua, as autoridades viraram-se contra o próprio povo num ataque perverso, continuado e frequentemente mortal aos direitos à vida e à liberdade de expressão e de manifestação pacífica. O Governo do Presidente [Daniel] Ortega está descaradamente a tentar encobrir estas atrocidades, violando os direitos das vítimas à verdade, à justiça e ao ressarcimento”, sublinha a diretora da Amnistia Internacional para a região das Américas, Erika Guevara-Rosas.

“As autoridades viraram-se contra o próprio povo num ataque perverso, continuado e frequentemente mortal.”

Erika Guevara-Rosas, diretora da Amnistia Internacional para as Américas

Esta responsável da organização de direitos humanos sustenta que “o Estado tem de parar prontamente a repressão das pessoas que protestam, em particular dos estudantes jovens, e respeitar o direito que têm a criticar as políticas públicas”. “Em vez de os criminalizar, o Governo do Presidente Ortega deve antes permitir a criação de uma comissão internacional para levar a cabo uma investigação imediata, imparcial e eficaz e, no que for adequado, formular acusações contra quem seja suspeito de ter cometido ou de ter ordenado execuções extrajudiciais ou o uso excessivo da força e outras graves violações de direitos humanos e crimes previstos na lei internacional”, prossegue.

As manifestações na Nicarágua, maioritariamente lideradas por estudantes, começaram a 18 de abril passado em reação às reformas governamentais que fizeram subir significativamente as contribuições dos trabalhadores e dos empregadores para a Segurança Social e que, em simultâneo, cortaram benefícios. Até 28 de maio pelo menos 81 pessoas foram mortas nos protestos, 868 feridas e 438 detidas, no contexto da resposta de mão pesada e altamente coordenada do Estado.

O novo relatório da Amnistia Internacional, intitulado Shoot to kill: Nicaragua’s strategy to suppress protest” (Atirar a matar: a estratégia da Nicarágua para suprimir protestos), documenta o recurso da polícia a armamento letal, o elevado número de pessoas atingidas por armas de fogo, a trajetória dos tiros disparados, a concentração de ferimentos por balas na cabeça, pescoço e tronco de quem foi morto e, também, tentativas de obstrução à justiça e de dissimulação da natureza dessas mortes. Estes padrões levam a organização de direitos humanos a concluir que existem provas de que a polícia da Nicarágua e grupos armados pró-governamentais cometeram múltiplas execuções extrajudiciais.

Entrevistada pela equipa de investigação da Amnistia Internacional, a diretora do Centro Nicaraguense para os Direitos Humanos, Vilma Núñez, descreve que “a polícia começou por disparar balas de borracha [quando começaram as manifestações, a 18 de abril], mas a violência agudizou-se logo no dia a seguir”. “Daniel [Ortega] podia ter parado a repressão nesse dia, mas não o fez. E no dia seguinte a polícia disparou munições reais. A 19 de abril já houve várias mortes. A ordem era para matar”, avançou ainda.

“Daniel [Ortega] podia ter parado a repressão nesse dia, mas não o fez. E no dia seguinte a polícia disparou munições reais. A ordem era para matar.”

Vilma Núñez, diretora do Centro Nicaraguense para os Direitos Humanos

Num desses casos, ocorrido a 20 de abril, Juan Carlos López e Nelson Tellez foram alvejados na parte de cima do tronco quando caminhavam em Ciudad Sandino, onde decorria uma manifestação. Juan Carlos morreu nesse mesmo dia no hospital e Nelson acabaria por sucumbir aos ferimentos a 2 de maio, tendo contado à mulher que reconheceu o homem que disparou contra si e contra Juan Carlos como sendo membro da polícia nacional em Ciudad Sandino, apesar de estar vestido à civil no momento do incidente.

A estratégia de repressão das autoridades da Nicarágua aparenta ter sido emitida pelos mais altos níveis do Governo. O Presidente, Daniel Ortega, e a vice-presidente, Rosario Murillo, repetidas vezes fizeram declarações a demonizar os manifestantes e negaram que tenham sido mortas pessoas nos protestos. Ao mesmo tempo, responsáveis públicos recusaram assistência médica às vítimas, processaram mal provas e rejeitaram autorizar a realização de autópsias e de outros exames e perícias forenses.

O recurso a grupos armados pró-governamentais conhecidos como “turbas sandinistas” tem desempenhado um papel crucial na supressão dos protestos, com as autoridades a permitirem-lhes atacar os manifestantes, incitar à violência e espalhar o medo entre a população – e, dessa forma, reforçando a eficácia repressiva do Estado e a sua capacidade para negar responsabilidades pelos ataques.

Nas primeiras semanas desta crise, as autoridades violaram também o direito do público de acesso à informação, bloqueando as transmissões de quatro estações televisivas que cobriam as manifestações. Acresce que uma estação de rádio foi incendiada, pelo menos 12 jornalistas foram assaltados, ameaçados ou atacados fisicamente e o repórter Ángel Gahona foi morto a tiro quando transmitia imagens ao vivo a partir da cidade costeira de Bluefields.

Uma equipa da Amnistia Internacional esteve na Nicarágua entre 2 e 13 de maio para analisar relatos de violações de direitos humanos ocorridas nas cidades de Manágua, de León, de Ciudad Sandino e em Estelí. O relatório do que documentaram no curso desta investigação assenta em mais de 30 entrevistas de fundo, 16 casos de estudo – incluindo nove mortes –, o cruzamento de dezenas de testemunhos e de documentação apresentados por organizações locais, exames e corroboração técnica de imagens de vídeo e de provas fotográficas e ainda a análise feita por peritos em armas de fogo e munições.

A organização de direitos humanos apurou que, a 20 de abril, pelo menos três hospitais públicos se recusaram a prestar tratamento médico a pessoas que foram gravemente feridas nos protestos, incluindo Álvaro Conrado, de 15 anos, alvejado quando distribuía água aos manifestantes. Seguranças do Hospital Cruz Azul recusaram-lhe a entrada nas instalações e Álvaro morreu um dia depois no Hospital privado Bautista, onde funcionários explicaram aos investigadores da Amnistia Internacional que o jovem poderia ter sobrevivido se tivesse sido assistido mais cedo.

Shoot to killdocumenta igualmente vários casos em que as autoridades da Nicarágua bloquearam a realização de autópsias a pessoas que foram mortas nos protestos e condicionaram a entrega dos corpos aos familiares à assinatura de documentos de renúncia em que as famílias tinham de se comprometer a não apresentar queixas.

Vários familiares de vítimas contaram que a polícia os ameaçou e intimidou com o objetivo de os dissuadir de contarem o que se passou ou de formularem acusações sobre as mortes.

“O tratamento sem remorsos dado pelas autoridades às vítimas e às suas famílias mostra claro desprezo por quem as ousa enfrentar. Apesar destes esforços cruéis e calculados do Governo para suprimir a dissidência, a corajosa população da Nicarágua demonstrou já que não será silenciada”, frisa Erika Guevara-Rosas.

“Apesar destes esforços cruéis e calculados do Governo para suprimir a dissidência, a corajosa população da Nicarágua demonstrou já que não será silenciada.”

Erika Guevara-Rosas, diretora da Amnistia Internacional para as Américas

A Amnistia Internacional exorta o Presidente Ortega, na qualidade de chefe de Estado e de chefe-supremo das forças policiais nacionais, a pôr fim imediatamente à violenta repressão dos protestos, à intimidação e perseguição das famílias e das vítimas e à estigmatização dos manifestantes.

As autoridades da Nicarágua têm também de autorizar a criação de uma comissão internacional de peritos independentes para garantir uma investigação imediata, imparcial e exaustiva a possíveis execuções extrajudiciais e outras violações de direitos humanos ocorridas, incluindo as que foram alegadamente cometidas por grupos armados pró-governamentais.

A Administração Ortega deve ainda concretizar sem demoras as recomendações que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos fez na sua recente visita à Nicarágua.

 

  • 94 Estados

    94 Estados assinaram a Convenção Internacional sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado e 44 ratificaram-na.
  • 26 mil pessoas

    No México, entre 2006 e 2012, mais de 26 mil pessoas foram consideradas desaparecidas ou desapareceram.
  • 30 mil desaparecimentos

    No Sri Lanka, desde a década de 1980, foram denunciados à ONU 12 mil casos de desaparecimento forçado. O número real ultrapassa os 30 mil casos.

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