1 Março 2018

As forças militares da Turquia, e em menor grau as forças curdas, estão a levar a cabo ataques indiscriminados nas cidades sírias de Afrin e de Azaz, imersas em combates, a norte de Alepo, causando numerosas mortes de civis, de acordo com testemunhos oculares obtidos e confirmados pela Amnistia Internacional.

A organização de direitos humanos entrevistou 15 pessoas que vivem ou foram recentemente deslocadas de cidades e vilas em volta de Afrin e de Azaz, que fizeram um retrato profundamente sombrio de bombardeamentos indiscriminados alegadamente cometidos por ambas as partes envolvidas nos combates. A Unidade de Verificação Digital da Amnistia Internacional pode corroborar muitas das descrições feitas por estas testemunhas, através de cuidada análise de vídeo.

“Os combates em Afrin entre a Turquia e as forças curdas apoiadas pelos Estados Unidos já provocaram numerosas mortes de civis e está a pôr em risco as vidas de centenas mais”, frisa a diretora de Investigação da Amnistia Internacional para a região do Médio Oriente, Lynn Maalouf. “os relatos de bombardeamentos de vilas e áreas residenciais das cidades são profundamente perturbadores. O uso de artilharia e outro armamento explosivo tecnicamente impreciso é proibido pela lei humanitária internacional, e todas as partes têm de pôr fim a estes ataques imediatamente”, prossegue a perita.

Segundo o Crescente Vermelho Curdo, os ataques do Exército turco causaram já a morte de 93 civis e provocaram ferimentos em outros 313 incluindo 51 crianças. Por seu lado, os bombardeamentos feitos pelas curdas Unidades de Defesa do Povo (YPG, braço armado do movimento curdo sírio) sobre a cidade de Azaz mataram alegadamente quatro pessoas, incluindo uma criança de nove anos.

A análise realizada pela Unidade de Verificação Digital da Amnistia Internacional é consistente com alguns dos testemunhos recolhidos pela organização de direitos humanos junto de residentes em Afrin e em Azaz, no que se inclui um ataque, a 18 de janeiro, a um dos hospitais de Azaz em que foi reportada a morte de um doente e que outros 13 foram feridos.

A violência nesta região da Síria agravou-se depois de o Governo da Turquia ter anunciado, a 20 de janeiro passado, o início de uma ofensiva militar sobre Afrin, com o nome de código “Ramo de Oliveira”, a partir de várias frentes, incluindo as vilas de Jenderess, Shara, Balbali, Shih, Rajo e Al-Shahba.

Ataques atribuídos às forças turcas

De acordo com o Crescente Vermelho Curdo, entre 22 de janeiro e 21 de fevereiro de 2018, foram mortos 93 civis, incluindo 24 crianças. Mais 313 civis foram feridos, em que se incluem 51 crianças.

Residentes nas vilas de Jenderess, Rajo e Maabatli, em redor de Afrin, descreveram que foram sujeitos a horas consecutivas de bombardeamentos indiscriminados mesmo depois de as forças turcas terem prometido que garantiriam a proteção das populações civis. Algumas pessoas fugiram das suas casas e viram os seus vizinhos serem mortos.

Zeina, moradora em Jenderess, que fica a sete quilómetros de distância da fronteira com a Turquia, reportou à Amnistia Internacional: “De início, ficámos aliviados quando vimos e ouvimos a declaração do Governo turco na televisão dizendo que não iriam bombardear áreas civis… Mas era tudo mentira. Nunca vi bombardeamentos assim, as bombas estavam a cair sobre nós como chuva”.

Residente em Maabatli, Sido contou à Amnistia Internacional que uma bomba atingiu a casa de um vizinho a 25 de janeiro passado, matando cinco dos seis membros daquela família.

“O ataque destruiu a casa por completo e matou o pai, a mãe e três das crianças mais novas, com menos de 15 anos. A quarta filha ficou sob os escombros várias horas. Sobreviveu, mas está em estado crítico… Não há nenhuma posição militar perto da casa deles e a mais próxima linha de frente é a uns 41 quilómetros, junto à fronteira”.

A Unidade de Verificação Digital da Amnistia Internacional confirmou independentemente este ataque mortal contra Maabatli.

Hussein, morador em Jenderess, testemunhou a morte de um vizinho num bombardeamento que os residentes daquela vila creem ter sido feito pela artilharia da Turquia a 21 de janeiro. Esta testemunha relatou: “Estávamos a tomar o pequeno-almoço, por volta das 8h, quando ouvimos as explosões… agarrámos o que pudemos e fugimos para uma cave a uns 200 metros da nossa casa. No caminho, vimos a nossa vizinha Fatme, de 60 anos. A minha mãe disse-lhe para vir connosco, mas ela disse que se juntaria depois. Assim que lá chegámos, ouvimos uma explosão enorme. Saí e dirigi-me ao fumo porque temi que a minha casa tivesse sido atingida. Aproximei-me e vi que uma bomba caíra a uns 50 metros da nossa casa. Tinha caído na casa de Fatme… Ela morreu instantaneamente”.

A maior parte dos habitantes não estava preparada para os ataques devastadores contra as áreas residenciais e teve de acorrer a caves a abarrotarem de gente sem tempo nenhum para levarem consigo alimentos pu água, na esperança de que as bombas não os atingissem naqueles abrigos.

Ataques atribuídos às forças das YPG

Residentes em Azaz descreveram à Amnistia Internacional ataques indiscriminados alegadamente cometidos pelas forças curdas que terão atingido residências e hospitais. De acordo com o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, as chamadas Forças Democráticas Sírias aliadas a combatentes das YPG fizeram uma série de ataques contra aquela cidade desde meados de janeiro passado.

O ativista dos media Mustafa, oriundo de Azaz, disse à Amnistia Internacional que viu o rescaldo de um ataque a 5 de fevereiro, no qual foi morta uma criança e cinco membros da mesma família ficaram feridos. “O bombardeamento de Azaz pelos curdos começou com a operação “Ramo de Oliveira” em janeiro. As bombas são disparadas todos os dias e os civis no centro da cidade tornaram-se alvos recentemente. Nenhuma das posições militares foi atingida. Os civis têm sido o alvo principal. Há já anos que não temos qualquer presença militar nas áreas residenciais de Azaz”.

Esta testemunha descreveu o ataque de 5 de fevereiro como “o pior” que vira. “Um carro foi atingido por um rocket disparado pelo PKK [referindo-se às forças das YPG]… Uma menina de nove anos morreu imediatamente e cinco dos seus familiares foram feridos gravemente. Foram levados para a Turquia. Não sei se sobreviveram. O carro ficou em chamas. Foi horrível ver”.

Saed, farmacêutico que trabalha num hospital psiquiátrico, crê que as forças militares curdas são responsáveis por um ataque que atingiu esse hospital a 18 de janeiro. Esta testemunha contou à Amnistia Internacional: “Temos a certeza que fomos atacados a partir da zona de Afrin que está sob o controlo do PKK, porque vimos a trajetória do rocket – que nos pareceu ser um Katyusha – e o local onde caiu no hospital. O ataque feriu 13 mulheres hospitalizadas, das quais duas se encontram em estado crítico e uma delas acabou por morrer. A ala feminina foi totalmente destruída por este ataque”.

Esta testemunha avançou ainda que o hospital psiquiátrico “se localiza junto a um orfanato e a um outro hospital civil”. “Não há nenhuma presença militar perto do hospital psiquiátrico e todos estes três edifícios estão a quilómetros de distâncias de todas as linhas da frente”, garantiu.

A Unidade de Verificação Digital da Amnistia Internacional procedeu à geolocalização destas informações e confirmou a veracidade de dois vídeos cujas imagens mostram o rescaldo e os danos causados no hospital psiquiátrico descritos por Saed.

Além destes ataques, numerosos mísseis e disparos de morteiros atingiram zonas residenciais em território da Turquia. O Governo turco reportou que, até 5 de fevereiro, sete civis foram mortos e 113 feridos devido a tais ataques.

“O conflito na Síria tem infligido um sofrimento insuportável aos habitantes, com as partes envolvidas nos combates a falharem consistentemente na tomada de precauções necessárias para garantir a proteção dos civis”, avalia Lynn Maalouf.

A diretora de Investigação da Amnistia Internacional para a região do Médio Oriente acrescenta que “Estados Unidos, Rússia e outros países têm de usar a sua influência para pressionar as partes envolvidas no conflito a porem fim aos ataques ilegais e a assegurarem o respeito pela lei humanitária internacional”.

Ghuta Oriental sob bombardeamentos incessantes

A população de Ghuta Oriental, nos arredores rurais de Damasco, capital da Síria, tem sofrido também nas semanas mais recentes uma grave escalada nos bombardeamentos feitos pelo Governo sírio e seus aliados russos, causando numerosas mortes e centenas de feridos só no mês de fevereiro.

Esta barragem incessante e deliberada de bombardeamentos sobre uma região com 400 mil habitantes, ao fim de seis anos de cerco cruel dos civis, constitui crime de guerra.

A 24 de fevereiro o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou uma resolução, durante muito tempo adiada, que urge à prestação de ajuda humanitária à população de Ghuta Oriental e a um cessar-fogo parcial. Este é um desenvolvimento positivo, mas os civis forçados a passar fome e à espera de assistência e proteção necessárias para salvar vidas não deviam ter de aguardar por uma resolução da ONU.

“Todas as partes envolvidas no conflito têm de cumprir as suas obrigações ao abrigo da lei internacional humanitária e providenciar passagem segura aos civis que querem sair da área e permitir acesso sem limitações às organizações humanitárias, para que estas possam fazer chegar ajuda a centenas de milhares de pessoas”, sustenta a investigadora da Amnistia Internacional Diana Semaan, perita em Síria.

ONU reporta alegado pacto de fornecimento de armas químicas à Síria pela Coreia do Norte

Um relatório das Nações Unidas, reportado num artigo do diário norte-americano The New York Times a 27 de fevereiro, alegadamente revela que a Coreia do Norte tem vindo a fornecer à Síria meios que podem servir para produzir armas químicas banidas internacionalmente.

“Fornecer a qualquer Estado os meios para produzir armamento tão horrível é sempre totalmente deplorável. Mas ajudar o Governo sírio – que repetidamente tem usado armas químicas contra civis – a reabastecer o seu arsenal será uma traição terrível à humanidade”, considera Lynn Maalouf.

A diretora de Investigação da Amnistia Internacional para a região do Médio Oriente avança ainda que “se este relatório [da ONU] é exato, representa um marcador sinistro de quão profundamente os crimes e violações de direitos humanos cometidos pelo Governo sírio desgastaram o respeito por proibições desde há muito estabelecidas”.

“O uso de armas químicas é há muito repudiado pela comunidade internacional e estão proibidas por muito boas razões. Tememos que a sua repetida utilização na Síria possa ter implicações horríveis que se estendem muito para lá deste conflito”, sublinha ainda Lynn Maalouf. E remata: “Obviamente, os atuais embargos de armas e os mecanismos de inspeção não estão a funcionar. A comunidade internacional tem de deixar muito claro que o mundo não tolerará tão flagrantes violações da lei internacional”.

Ativistas e órgãos de comunicação social reportaram a ocorrência de um ataque químico sobre Ghuta Oriental a 25 de fevereiro. A Organização para a Proibição de Armas Químicas anunciou que está a investigar este ataque. E, de acordo com a Associação Médica Sírio-Americana, este foi o sétimo ataque deste tipo em 2018 e o 197º desde o início do conflito em 2012, causando a morte a centenas de pessoas e infligindo ferimentos terríveis em outras.

A Convenção sobre Armas Químicas, de 1992, proíbe o desenvolvimento, produção, armazenamento, transferências e uso de armas químicas e exige aos Estados-parte que destruam o armamento químico existente nos seus arsenais. As armas químicas são inerentemente indiscriminadas e a sua utilização constitui um crime de guerra previsto na lei internacional consuetudinária.

A Amnistia Internacional apela ao cumprimento total das proibições na lei internacional sobre armas químicas e biológicas. Este armamento não deve ser usado e quaisquer arsenais existentes devem ser destruídos.

  • 50 milhões

    50 milhões

    Pela primeira vez desde a II Guerra Mundial, mais de 50 milhões de pessoas foram obrigadas a abandonar as suas casas. A maior parte devido a conflitos armados. (ACNUR, 2014)
  • 12,2 milhões

    12,2 milhões

    No final de 2014, 12,2 milhões de sírios – mais de metade da população do país – dependiam de ajuda humanitária. (UNOCHA)

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