14 Outubro 2020

O Ministério Público do Chile deve assegurar que responsáveis de comando da Polícia Nacional (Carabineros), incluindo o diretor-geral, o subdiretor-geral e o diretor para a Ordem Pública e Segurança, bem como as chefias operacionais da Zona Metropolitana, são investigados por possíveis violações de direitos humanos cometidas durante as manifestações do ano passado, defende a Amnistia Internacional.

“Os comandantes estratégicos da Polícia Nacional permitiram que fossem cometidos atos de tortura e maus-tratos contra os manifestantes por considerarem que isso seria um mal necessário para dispersar as multidões”

Erika Guevara-Rosas, diretora para as Américas da Amnistia Internacional

No relatório intitulado All Eyes on Chile: Police violence and command responsibility during the social protests (“Todos os olhos no Chile: Violência policial e responsabilidade de comando durante os protestos sociais”), que assinala o primeiro aniversário das manifestações em massa, a organização analisa as ações policiais entre 18 de outubro e 30 de novembro de 2019, concluindo que foram cometidas de forma generalizada graves violações de direitos humanos, como ao direito dos manifestantes à integridade física. A investigação mostra que os responsáveis de comando não tomaram todas as medidas necessárias para evitar esta conduta.

No relatório sobre a situação de direitos humanos nas Américas e Caraíbas em 2019, a Amnistia Internacional documentou 23 mortes em contexto de protestos no Chile. Embora a definição do período temporal da investigação seja limitada por razões metodológicas, casos de uso excessivo de força policial continuaram a ser registados até meados de março de 2020 – quando as manifestações cessaram temporariamente devido à pandemia de COVID-19. Recentemente, e após uma série de protestos em Santiago, novos episódios de violência policial foram verificados, como o caso de um jovem de 16 anos que caiu de uma ponte depois de ser empurrado por um agente, que está agora a ser acusado de tentativa de homicídio.

“Os comandantes estratégicos da Polícia Nacional permitiram que fossem cometidos atos de tortura e maus-tratos contra os manifestantes por considerarem que isso seria um mal necessário para dispersar as multidões a todo custo. Por meio de ordens tácitas ou omissões deliberadas, incentivaram casos tão graves como o de Gustavo Gatica ou Fabiola Campillai, entre muitos outros”, aponta a diretora para as Américas da Amnistia Internacional, Erika Guevara-Rosas.

“A cadeia de omissões que a Amnistia Internacional identificou, ao longo dos canais institucionais pelos quais os comandantes estratégicos da polícia poderiam ter posto fim às violações de direitos humanos, mostra que, longe de serem atos isolados cometidos por funcionários que agiam por conta própria, é provável que tenham sido levados a cabo por causa de uma política cujo objetivo final era desencorajar o protesto social”, prossegue a mesma responsável.

O uso excessivo de força, o comportamento abusivo e a impunidade pelas violações de direitos humanos cometidas pelas forças de segurança não são exclusivos dos factos ocorridos a partir de outubro de 2019. Na realidade, fazem parte de um padrão constante e histórico que sublinha a necessidade de uma profunda reforma estrutural da Polícia Nacional do Chile, incluindo mecanismos eficazes e independentes de controlo e responsabilização.

Impunidade reinante

A Amnistia Internacional conduziu análises a violações ao direito à vida e à integridade física de 12 pessoas, através de processos de investigação, registos dos tribunais, entrevistas a vítimas, defensores de direitos humanos e autoridades, incluindo os procuradores responsáveis ​​pelos casos. Além disso, foram verificados mais de 200 vídeos e realizados 14 pedidos formais de informações a diferentes ministérios, incluindo o Ministério do Interior.

“Uma estratégia de impunidade foi fomentada pela falta de identificação das munições utilizadas, uma vez que não havia vestígios nas armas de onde foram disparadas”

Erika Guevara-Rosas, diretora para as Américas da Amnistia Internacional

O relatório mostra que há razões para acreditar que pelo menos o diretor-geral, o subdiretor-geral e o diretor para a Ordem Pública e Segurança da Polícia Nacional teriam conhecimento das violações de direitos humanos por meio de informações públicas e oficiais. Relatórios internos indicam, por exemplo, os ferimentos graves e sistemáticos causados​, numa base diária,​ por munições de espingardas e a utilização de lançadores de gás lacrimogéneo, totalizando 347 casos a 30 de novembro de 2019. De acordo com o Instituto Nacional de Direitos Humanos, o número ascendia a 460, em março de 2020.

Os responsáveis pelo comando, cuja atuação foi analisada ​​no relatório, demoraram um mês para restringir o uso destas munições e nunca as baniram, apesar de um relatório interno mostrar o quão perigosas poderiam ser, tendo provocado mais de 250 lesões oculares. Apesar de ter sido estabelecido um plano para aconselhar o diretor-geral, a estratégia e o planeamento da gestão das operações permaneceram praticamente inalterados. Os protocolos continuaram a ser vagos, não sofreram alterações e foram emitidas ordens gerais quase idênticas às anteriores, sem instruções específicas sobre como minimizar os danos causados.

Durante o período em análise pela Amnistia Internacional, nenhuma sanção disciplinar foi aplicada, apesar das mais de 4000 queixas apresentadas ao Ministério Público sobre a Polícia Nacional do Chile. Das 170 sanções anunciadas pela instituição em julho de 2020, apenas 16 envolveram destituição do cargo.

Em dois dos casos que receberam tais sanções administrativas, os de Fabiola Campillai e Gustavo Gatica, a conduta punida não estava relacionada com uso de força. Noutros, apesar de os agentes terem assumido a responsabilidade por ferimentos graves, não foram punidos. Isso permitiu que funcionários envolvidos em violações de direitos humanos permanecessem nos seus cargos e encorajou que tudo voltasse a acontecer, dada a impunidade existente dentro da instituição.

“Os agentes da Polícia Nacional reprimiram os protestos com disparos de munições altamente nocivas e de forma dispersa, contrariando os padrões internacionais sobre o uso de força. Em vez de banirem estes projéteis de borracha e metal antimotim, como deveria ter sido feito, houve disparos descontrolados, às vezes com a intenção de ferir os manifestantes ou sabendo que isso provavelmente iria acontecer”, denuncia Erika Guevara-Rosas.

“Só no mês de outubro, os agentes da Polícia Nacional dispararam mais de 104 mil tiros desse tipo. O desrespeito pela segurança física dos manifestantes faz com que mais pessoas sejam gravemente feridas todos os dias, independentemente do facto de que tal comportamento pode, em muitas ocasiões, ter constituído um crime. Uma estratégia de impunidade foi fomentada pela falta de identificação das munições utilizadas, uma vez que não havia vestígios nas armas de onde foram disparadas”, explica a diretora para as Américas da Amnistia Internacional.

A regra e não a exceção

Alguns dos comandantes da Região Metropolitana também deixaram de exercer o devido controlo sobre os agentes, como era seu dever, dirigindo e coordenando operações como a que foi registada no dia 8 de novembro de 2019, na Plaza Italia, onde efetivos das forças especiais dispararam indiscriminadamente e sobre zonas letais para os manifestantes. Nessa intervenção, na qual Gustavo Gatica ficou cego, mais de 2000 cartuchos foram usados.

“O facto de os comandantes estratégicos da Região Metropolitana dirigirem e coordenarem as operações e estarem diretamente envolvidos nas violações de direitos humanos terá encorajado os seus subordinados”

Erika Guevara-Rosas, diretora para as Américas da Amnistia Internacional

Operações deste tipo não eram a exceção, mas a regra. A Amnistia Internacional identificou que o modus operandi se repetiu durante o mês e meio em análise na nova investigação. A atuação na Região Metropolitana foi realizada pelos mesmos polícias, que disparavam tiros injustificados e sem controlo, dia após dia, e às vezes por meio de estratégias ofensivas contra os manifestantes. Entre os agentes repetidamente identificados estava o suspeito de ter provocado os ferimentos a Gustavo Gatica.

“O facto de os comandantes estratégicos da Região Metropolitana dirigirem e coordenarem as operações e estarem diretamente envolvidos nas violações de direitos humanos terá encorajado os seus subordinados a agir da mesma forma contra os manifestantes”, diz Erika Guevara-Rosas.

Responsabilidade do executivo

A Amnistia Internacional acredita que a política implementada pelos responsáveis de comando da Polícia Nacional não teria ocorrido se a administração do presidente Sebastián Piñera tivesse exercido um controlo adequado. As tentativas do executivo nesse sentido foram insuficientes e o discurso de apoio ao trabalho dos agentes favoreceu a continuidade dessa estratégia.

“Se esta crise nos mostrou alguma coisa foi o facto de a Polícia Nacional do Chile enquanto instituição estar obsoleta e precisar de se adaptar às necessidades da população”

Erika Guevara-Rosas, diretora para as Américas da Amnistia Internacional

Para que não se repitam estes acontecimentos, é necessário levar à justiça não só todos os responsáveis, até ao mais alto nível, mas também reestruturar a Polícia Nacional.

“Se esta crise nos mostrou alguma coisa foi o facto de a Polícia Nacional do Chile enquanto instituição estar obsoleta e precisar de se adaptar às necessidades da população, submetendo-se plenamente ao poder civil e exercendo as suas funções em absoluto respeito pelos direitos humanos, pela transparência e responsabilidade”, afirma Erika Guevara-Rosas.

As exigências da população que iniciaram as manifestações sociais no Chile também devem ser ouvidas. Nesse sentido, a Amnistia Internacional considera que o processo de adoção de uma nova Constituição é uma oportunidade histórica na qual os direitos económicos e sociais pedidos pela população devem ser garantidos a todos no Chile, sem discriminação.

Embora não seja objeto deste relatório, a Amnistia Internacional também documentou casos de violações de direitos humanos cometidas por membros das Forças Armadas, que o presidente Sebastián Piñera enviou para algumas regiões do Chile, entre 18 e 28 de outubro, durante um estado de emergência constitucional – sendo que o seu papel não é o de controlar a ordem pública durante manifestações. Os oficiais do exército foram acusados ​​da morte de três pessoas e de numerosos atos de tortura e outros tratamentos ou punições cruéis, desumanos ou degradantes, bem como de usar munições letais contra manifestantes em várias ocasiões. A responsabilidade criminal por essas mortes e lesões deve ser imediata e imparcialmente esclarecida.

“O Ministério Público e o sistema judicial têm uma tarefa gigantesca pela frente, mas crucial para o bem-estar do país: acabar com a tradição de impunidade por violações de direitos humanos cometidas pela polícia nacional. Justiça, verdade e reparação para as vítimas é a cura devida para um país ferido”, lembra Erika Guevara-Rosas.

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