6 Abril 2017

Provas recolhidas no terreno indiciam ter sido usado um agente nervoso num ataque com armas químicas lançado por via aérea, em que morreram mais de 80 pessoas e centenas ficaram feridas, em Khan Sheikhiun, na província de Idlib, no Norte da Síria, na terça-feira, 4 de abril, é confirmado pela Amnistia Internacional. A organização de direitos humanos considera também que, face ao raide que se seguiu na madrugada desta sexta-feira, 7 de abril, pelos Estados Unidos contra uma base aérea na Síria, é imperativo que o Presidente norte-americano, Donald Trump, revogue a proibição e restrições à entrada no país de refugiados. (artigo atualizado a 7 de abril)

  • Peritos sinalizam indícios de que um tóxico classificado como agente nervoso, como o gás sarin, foi lançado por via aérea em Idlib

  • A Amnistia Internacional autenticou e analisou dezenas de vídeos feitos no local que foi alvo do ataque químico

  • Este é o ataque mais mortal desde 2013 na Síria e ocorreu após uma série de ocasiões em que foram usadas armas químicas e num contexto de generalizados crimes de guerra com armas convencionais

  • Presidente dos EUA tem de revogar proibição de entrada no país de muçulmanos e as restrições aos refugiados sírios

Para a Amnistia Internacional, a professada preocupação pelas vidas dos civis na Síria expressa pelo Presidente norte-americano deve também nortear Trump a assumir um claro compromisso com os refugiados sírios. Face aos raides dos EUA contra uma base da força aérea síria em Homs, três dias após o ataque com armas químicas que causou a morte de mais de 80 pessoas na província de Idlib, a diretora executiva da Amnistia Internacional Estados Unidos, Margaret Huang, frisa que “o Presidente Donald Trump sustentou que foi impelido pela preocupação com as vidas dos civis sírios, mas a sua Administração tem vindo a mostrar uma indiferença insensível pelos sírios que tentam fugir para salvar a vida”.

“O Presidente Trump tem de revogar imediatamente a proibição de muçulmanos viajarem para os Estados Unidos e pôr fim às restrições à entrada de refugiados oriundos da Síria que tentam escapar aos horrores no seu país”, defende ainda Margaret Huang.

A diretora da Amnistia Internacional Estados Unidos avança ainda que “as forças dos Estados Unidos têm de cumprir zelosamente as suas obrigações ao abrigo da lei internacional humanitária e tomar todas as medidas possíveis para proteger a população civil quando levam a cabo ações militares – no que se inclui absterem-se de utilizar armas que estão proibidas internacionalmente, como é o caso das munições de fragmentação”.

Raides aéreos recentes feitos pela coligação militar liderada pelos Estados Unidos no Iraque e na Síria mataram centenas de civis, muitos dos quais eram mulheres e crianças que estavam encurraladas nas suas casas.

“O Conselho de Segurança das Nações Unidas tem sido incapaz de proteger os civis na Síria ao longo dos últimos seis anos. Tem até encorajado todas as partes envolvidas no conflito na Síria a cometerem crimes terríveis com impunidade”, critica Margaret Huang. E remata: “É assim imperativo que os Estados-membros [da ONU] aprovem uma resolução que garanta uma investigação no terreno ao ataque com armas químicas que foi feito em Khan Sheikhoun e que promova que os responsáveis por estes crimes sejam julgados”.

A organização de direitos humanos instara já o Conselho de Segurança das Nações Unidas, que se reuniu de emergência na quarta-feira, 5 de abril, em Nova Iorque, a aprovar urgentemente uma resolução impondo claramente a proibição de ataques com armas químicas e a desenvolver ativamente todos os esforços para que os responsáveis por estes crimes de guerra sejam julgados.

“Os países do Conselho de Segurança – e, em particular, a Rússia e a China – têm demonstrado uma indiferença insensível à perda de vidas na Síria ao fracassarem, repetidamente, na aprovação de resoluções que permitiriam a aplicação de medidas punitivas contra quem está a cometer crimes de guerra e outras graves violações de direitos humanos na Síria”, frisa a diretora de Investigação da Amnistia Internacional, Anna Neistat.

A perita avança que “o Conselho de Segurança tem de votar prontamente a favor de que seja feita uma investigação a este ataque [ocorrido a 4 de abril] e ajudar a que os responsáveis sejam julgados”. “Falhar em fazê-lo será catastrófico, arriscando encorajar ainda mais os governos e grupos armados na Síria, que tomam os civis como alvo em crimes de guerra com recurso tanto a armas convencionais como a armas que estão banidas”, alerta ainda.

Muitas das vítimas do ataque na província de Idlib, que ocorreu pelas 6h30 locais de 4 de abril, aparentam ter sido envenenadas com um agente químico enquanto dormiam em suas casas. Peritos em armas químicas que trabalham com a Amnistia Internacional confirmam que as vítimas apresentam os sintomas de exposição a um agente nervoso, um composto organo-fosforado, como o gás sarin. Estes peritos não creem que tenha sido usado gás de cloro, como acontecera em anteriores ataques registados no conflito na Síria, em 2014 e em 2015.

Provas de vídeo

A Amnistia Internacional também autenticou mais de 25 vídeos que foram filmados no rescaldo deste ataque com armas químicas. Algumas destas imagens têm qualidade suficiente para permitir aos peritos observar que as vítimas tinham as pupilas extremamente contraídas, o que constitui um sintoma clássico de envenenamento com gás nervoso.

Foram também recolhidos relatos de profissionais médicos que apresentam sinais de exposição secundária ao químico, o que é igualmente consistente com o uso de um agente nervoso. E, em alguns dos vídeos, as vítimas não mostram movimentos espasmódicos ou sacudidos, comportamentos de movimento funcional que é tido consensualmente como sinal de envenenamento extremo. Noutras imagens ainda, incluindo vídeos que mostram várias crianças, as vítimas apresentam tremuras intensas.

Uma das peças de vídeo, cuja credibilidade a Amnistia Internacional corroborou cruzando com outros indícios e conteúdos obtidos, mostra nove crianças mortas na parte de trás de uma carrinha. Estas crianças, rapazes e raparigas, estão nus ou apenas parcialmente vestidos; parecem ter morrido a dormir nas suas camas. Não são detetáveis nenhuns sinais de traumas nos corpos, o que constitui mais um sinal indicador de envenenamento químico.

Em vários vídeos filmados em instalações clínicas no rescaldo do ataque veem-se muitas pessoas a serem tratadas devido a dificuldades respiratórias agudas, e ainda mais imagens de adultos e crianças mortas. Não há quaisquer sinais de ferimentos com derramamento de sangue nem lesões causadas por estilhaços.

“Este é o mais mortal ataque químico na Síria desde que o Conselho de Segurança da ONU aprovou a resolução 2118, em setembro de 2013, para eliminar o uso de armas químicas na Síria”, atesta Anna Neistat.

A diretora de Investigação da Amnistia Internacional recorda que “a Organização para a Proibição de Armas Químicas [OPAQ, OPCW na sigla em inglês] e a ONU confirmaram conjuntamente a ocorrência de vários ataques com armas químicas, tanto pelas forças governamentais sírias como não governamentais”. “É absolutamente chocante que ninguém tenha sido julgado”, critica.

Entrevistas a profissionais médicos em Idlib

A Amnistia Internacional entrevistou um enfermeiro que estava a trabalhar no hospital de Al-Rahma na manhã do ataque. Esta testemunha recorda-se de ter visto as horas no relógio, às 6h20, quando tomava o café da manhã e tudo estava tranquilo – até aí.

“O som da explosão não foi como estamos habituados a ouvir. Eu e os meus colegas pensámos que este não tinha explodido por causa do som de pancada seca que fez, não foi um som de explosão. Uns minutos depois, pelas 6h35, chegaram as primeiras vítimas, e continuaram a chegar, sem parar, até por volta das 9h. Foi um número enorme de pessoas a chegar, e socorristas também, e erámos só quatro médicos que estávamos no hospital naquela altura… um de nós foi também infetado”, relatou.

Este enfermeiro descreveu ainda os sintomas estranhos que as vítimas apresentavam: “O cheiro chegou-nos aqui, cheirava a comida podre. Já tínhamos recebido vítimas de ataques com gás de cloro – mas isto foi completamente diferente. As vítimas tinham vómito a sair pelo nariz e pela boca, de um amarelo escuro, às vezes tornando-se castanho. E paralisia das funções respiratórias: as crianças estavam a morrer mais depressa por isso. Tentámos injeções… mas não funcionaram. As vítimas não conseguiam engolir, estavam inconscientes, sem reação”.

“O uso de armas químicas é estritamente proibido pela lei internacional humanitária e constitui crime de guerra. É imperativo que a comunidade internacional expresse indignação e tome todas as medidas necessárias para proteger a população síria e do mundo inteiro deste tipo de ataques horríveis”, exorta a diretora de Investigação da Amnistia Internacional.

Um médico do hospital cirúrgico, a uns 50 quilómetros de distância do local atacado, prestou também testemunho do ocorrido. “As vítimas foram inicialmente enviadas para os hospitais mais próximos, por isso, quando finalmente nos começaram a chegar, já eram umas 8h. O ataque tinha acontecido às 6h42, precisas. As vítimas, incluindo cerca de 80 mortos, são umas 400 pessoas, que estavam espalhadas por vários centros clínicos, algumas foram transferidas para a Turquia. A maior parte das que aqui chegaram ainda estavam vivas. Os que tinham morrido já não nos foram trazidos. Duas pessoas que nos chegaram morreram aqui, no hospital”.

O cirurgião descreve que “as vítimas apresentavam estados clínicos variados: algumas com paralisia muscular e respiratória”, que os médicos tentaram tratar com “tranquilizantes e Atropina [substância alcaloide usada para combater a ação de acetilcolina no organismo]”, “secreções brancas expelidas pela boca e pelo nariz”, “algumas estavam totalmente inconscientes”, “algumas tinham intensas dores musculares”. “As crianças são as primeiras a morrer, não conseguem lutar contra isto. Aqui só nos chegou uma criança, que, graça a Deus, sobreviveu”, contou ainda este médico.

Justiça e responsabilização são centrais para o futuro da Síria

Khan Sheikoun é uma vila pequena na zona rural de Idlib, atravessada pela autoestrada que liga Damasco ao Norte, e que é uma das poucas zonas no Nordeste da Síria que continua sob controlo da oposição. Nos últimos meses, Idlib tem-se tornado num destino daqueles que fogem da violência em Alepo e noutras áreas do país.

Esta província tem sido alvo de bombardeamentos esporádicos da artilharia e da força aérea síria desde 2012. Os bombardeamentos foram intensificados recentemente, em reação a uma inesperada ofensiva de grupos armados da oposição em Hama. E as forças áreas da coligação liderada pelos Estados Unidos também têm feito ataques sobre a província de Idlib.

A Amnistia Internacional tem repetidamente exortado o Conselho de Segurança da ONU, ao longo dos seis anos de conflito, a pôr fim ao ciclo de impunidade e a apresentar o caso da Síria ao Tribunal penal Internacional.

Em fevereiro de 2017, a Rússia e a China vetaram uma resolução submetida ao Conselho de Segurança que visava impor medidas consagradas no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas sobre as “transferências não autorizadas de armas químicas, ou qualquer uso de armamento químico por qualquer parte na República Árabe da Síria”.

O ataque de 4 de abril contra a vila de Khan Sheikoun recorda também, com uma carga sombria e infeliz, que os países europeus, reunidos em Bruxelas para discutir a reconstrução na Síria, têm de fazer com que a tomada de ação para alcançar justiça e responsabilização deve ser central em quaisquer conversações sobre o futuro do país.

 

A Amnistia Internacional insta as Nações Unidas a avançarem diligente e celeramente com o mecanismo de investigação e responsabilização pelos crimes de guerra e contra a humanidade cometidos na Síria. Assine a petição!

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