24 Maio 2017

O Exército dos Estados Unidos não conseguiu monitorizar devidamente armas e outro equipamento militar, no valor de mais de mil milhões de dólares, que foram enviados para o Iraque e para o Kuwait, é exposto numa auditoria do Departamento de Defesa norte-americano, cuja documentação foi agora retirada da classificação de secreta e obtida pela Amnistia Internacional na sequência de um requerimento feito ao abrigo da Liberdade de Acesso à Informação.

A auditoria governamental, de setembro de 2016, revela que o Departamento de Defesa “não tinha registos precisos e atualizados sobre a quantidade e a localização” de numeroso equipamento transferido para o Kuwait e para o Iraque para abastecer o Exército iraquiano.

“Esta auditoria fornece uma preocupante compreensão do falhado – e potencialmente perigoso – sistema do Exército dos Estados Unidos no controlo de transferências de armamento no valor de milhões de dólares para uma região intensamente volátil”, frisa o investigador da Amnistia Internacional Patrick Wilcken, perito em Controlo de Armas e Direitos Humanos. “E é uma leitura muito sóbria tendo em conta o longo historial de desvio de armas norte-americanas para as mãos de múltiplos grupos armados que cometem atrocidades no Iraque, incluindo o grupo armado autoproclamado Estado Islâmico”, prossegue.

Estes fornecimentos militares, analisados na auditoria, foram feitos no âmbito do Fundo de Treino e Equipamento do Iraque (ITEF, na sigla em inglês), um vital programa de cooperação em segurança entre os Estados Unidos e o Iraque. Em 2015, o Congresso norte-americano alocou 1,6 mil milhões de dólares para este programa, destinados a combater o avanço do Estado Islâmico.

As transferências, em que se incluem dezenas de milhares de espingardas de assalto (no valor de 28 milhões de dólares), centenas de munições de morteiro e centenas de veículos armados Humvee, destinavam-se ao Exército iraquiano, incluindo as Unidades de Mobilização Popular, predominantemente xiitas, assim como as Peshmerga (forças militares do aparelho de segurança do Governo Regional do Curdistão).

A auditoria do Departamento de Defesa detetou várias falhas graves na forma como o equipamento alocado ao ITEF foi registado e monitorizado desde o ponto de entrega, incluindo:

  • registos fragmentados nos armazéns de armamento no Kuwait e no Iraque, com a informação anotada em múltiplas folhas de registo, bases de dados e até em recibos manuscritos
  • vastas quantidades de equipamento registadas manualmente em múltiplas tabelas, aumentando o risco de erro humano
  • registos incompletos, o que significa que os responsáveis pelo equipamento não conseguiram determinar a sua localização ou estado

A auditoria argumenta que o Departamento de Defesa não tem a responsabilidade de monitorizar as transferências feitas no âmbito do ITEF após estas chegarem às autoridades iraquianas. Mas o programa Golden Sentry do Departamento de Defesa norte-americano (criado para monitorizar as transferências de armamento e equipamento militar entre governos) tem justamente no seu mandato de ação funções de verificação pós-entrega.

Uma auditoria anterior, feita em 2015, expunha procedimentos ainda menos cuidadosos na monitorização que as forças armadas iraquianas faziam dos arsenais. Em alguns casos, o Exército iraquiano nem tinha conhecimento do que se encontrava nos armazéns; noutros casos, havia equipamento militar – por abrir e sem lhe ter sido dada entrada em inventário – dentro de contentores de expedição deixados no exterior.

“A necessidade de monitorização pós-entrega é vital. Quaisquer fragilidades ao longo da cadeia de fornecimentos aumentam os riscos de as armas serem desviadas numa região onde grupos armados instalaram o caos e causaram um imenso sofrimento humano”, sustenta Patrick Wilcken.

Transferências de armas alimentam atrocidades

A investigação feita pela Amnistia Internacional tem documentado de forma consistente descuido nos controlos e nos registos no seio da cadeia de comando iraquiana. E isto tem resultado em armas fabricadas nos Estados Unidos e em outros países acabarem nas mãos de grupos armados conhecidos por cometerem crimes de guerra e outras atrocidades, como o Estado Islâmico, ou de milícias paramilitares agora incorporadas no Exército iraquiano.

Em reação a esta auditoria, o Exército norte-americano comprometeu-se a reforçar os seus sistemas de rastreamento e monitorização de transferências futuras para o Iraque. Porém, o Departamento de Defesa assumiu compromissos praticamente iguais em resposta a um relatório apresentado ao Congresso que, já em 2007, expressava preocupações similares.

“Ao fim de todo este tempo e depois de todos estes avisos, continuam a ocorrer os mesmos problemas. Isto devia constituir um alerta urgente para os Estados Unidos e para todos os outros países que fornecem armas ao Iraque, para fortalecerem os controlos e sistemas de verificação. Enviar armamento no valor de milhões de dólares rumo a um buraco negro e ficar à espera que tudo corra bem não é uma estratégia antiterrorismo viável; é pura falta de prudência”, critica o investigador da Amnistia Internacional perito em Controlo de Armas e Direitos Humanos.

Patrick Wilcken sublinha ainda que “qualquer Estado que venda armas ao Iraque tem de demonstrar que põe em prática medidas rigorosas para garantir que esse armamento não será usado para cometer violações de direitos”. “Sem estas salvaguardas, não podem ser feitas nenhumas transferências”, remata.

A Amnistia Internacional insta assim os Estados Unidos a cumprirem a Leahy Law, legislação norte-americana que proíbe expressamente a prestação da maior parte dos tipos de ajuda e treino militar a unidades de segurança, militares e policiais de outros países sob as quais existam suspeitas credíveis de terem cometido “graves violações de direitos humanos”.

Os Estados Unidos e o Iraque têm também de aceder por completo ao Tratado sobre o Comércio de Armas Convencionais (TCA, ATT na sigla em inglês), o qual consagra regras estritas para pôr termo a transferências ou desvios de armas que possam alimentar atrocidades.

  • 78%

    78%

    Seis países são responsáveis pela produção de 78% do armamento mundial: China, França, Alemanha, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos.
  • 12 mil milhões

    12 mil milhões

    São produzidas 12 mil milhões de balas todos os anos – o que chega, praticamente, para matar todos os habitantes do mundo duas vezes.
  • 875 milhões

    875 milhões

    Atualmente existem 875 milhões de armas de fogo.

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