18 Janeiro 2012

Contributo da Amnistia Internacional Portugal no âmbito da Consulta Pública para a Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas do Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural

O primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Contudo, e apesar do papel preponderante da Europa no melhoramento dos padrões internacionais de combate à discriminação, esta é, hoje em dia, a mais comum e grave violação de direitos humanos na Europa. A discriminação assume muitas formas: desde insultos a violência, passando pela negação de bens e serviços básicos e outros direitos. As vítimas de discriminação podem ser prejudicadas na obtenção de emprego ou ver restringido o seu acesso à educação, habitação e serviços de saúde adequados. Os grupos discriminados podem ver negados os seus direitos de participar na vida pública, de se associar livremente, de praticar a sua religião ou de manter a sua identidade cultural. Seja qual for a sua forma, a discriminação baseia-se na negação ou depreciação da diferença e é o resultado da falta de respeito pela dignidade e igualdade de valor inerentes a todos os seres humanos. Os direitos humanos não podem ser cumpridos quando a sua fruição é negada ou limitada com base na origem étnica, cor da pele, religião, género, identidade de género, orientação sexual, idade, deficiência ou outra condição. Há sessenta anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adoptada, garantindo o princípio da universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos: todos os direitos humanos para todos – este princípio é central à missão da Amnistia Internacional, tal como a luta contra a discriminação.

Uma das maiores minorias na Europa, a comunidade de etnia cigana, continua a contar-se entre os grupos mais sistematicamente discriminados e excluídos do continente. Tanto na Europa de Leste como na Europa Ocidental, as pessoas de etnia cigana continuam a enfrentar sérios obstáculos para aceder a bens e serviços essenciais e garantir os seus direitos fundamentais, tais como os direitos à habitação, saúde, educação e trabalho. Milhões de pessoas de etnia cigana vivem sem ou com condições de saneamento extremamente precárias, enfrentam altos níveis de desemprego e têm acesso limitado a serviços de saúde.

A Amnistia Internacional tem documentado a forma como a marginalização das pessoas de etnia cigana tem sido perpetuada pela segregação nos sistemas educacionais de uma série de países da Europa Central e de Leste, em que as crianças de etnia cigana são sistematicamente encaminhadas para escolas especiais com programas de estudo extremamente simplificados e com condições muito inferiores em comparação com as escolas frequentadas por residentes que não são de etnia cigana e que, muitas vezes, estão ali mesmo ao lado.

Assim, e no âmbito da Consulta Pública para a Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas promovida pelo Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural, I.P., consideramos relevante promover o debate e a troca de informação sobre alguns dos temas que em seguida se apresentam, destacando desde já como elemento muito positivo a consulta à sociedade civil promovida no âmbito da presente Estratégia.

Desde logo se entende dever referir ser também de elogiar a ideia de promover a elaboração de uma “estratégia nacional”, embora no caso concreto possamos considerar estarmos mais perante um rol de iniciativas várias do que perante “um todo”, coerente e coeso, e em que se parece atribuir maior envolvimento aos diversos “actores” chamados a participar do que à comunidade cigana – que, de alguma forma, parece aqui surgir essencialmente como um objecto “exterior” à própria estratégia. Deve entender-se, sim, que só o envolvimento, a autonomia e a participação plena da comunidade cigana na definição do seu próprio destino constitui uma forma capaz de a “empoderar” e de tornar verdadeiramente eficaz uma estratégia de integração. Infelizmente, é grande o desconhecimento sobre a comunidade cigana. Mais investimento centrado na comunidade do que propriamente nas pessoas que colaboram da estratégia poderá ser decisivo para o sucesso que se pretende alcançar com a mesma. Estes são, aliás, elementos que não são estranhos à Amnistia Internacional. De facto, a Amnistia Internacional tem várias estruturas locais a desenvolver trabalho junto das comunidades ciganas. Nesse sentido, pode dizer-se que se a ideia de promover o “associativismo” é de louvar, já a ideia de o mesmo se centrar essencialmente na promoção de associações estritamente a ciganas ou que se dediquem exclusivamente aos problemas da comunidade cigana nos parece fazer correr o risco de ser ineficaz.

A mediação, que, parece, se pretende que seja o elemento central da estratégia agora sujeita a consulta, mereceria porventura um pouco mais de reflexão, designadamente no que toca à definição de acções concretas, sua duração, âmbito, equivalência escolar e número de formandos. O enfoque na “etnicidade” deveria ser desejavelmente minorado: é preciso aceitar que o mediador não tem necessariamente de ser cigano – deve, sim ter um currículo e uma vivência mínimas no contexto da comunidade cigana. Assim, espera-se desde logo que o mediador tenha formação intensiva na área administrativa (procedimentos e funcionamento). No caso dos mediadores de âmbito escolar, deve exigir-se em nosso entender a escolaridade básica (9º ano) e o curso de mediador adicional deverá ter, em nossa opinião, equivalência escolar (ao secundário, se não, mais) com formação pedagógica e sobre o currículo e a organização escolar. Na verdade, para trabalhar com os professores na promoção da escola e da educação, seria desejável que o mediador tivesse precisamente “escola e educação”, até para viabilizar a “aceitabilidade” do corpo docente e dos demais agentes educativos. Como nota final, acrescenta-se que a referência a “mediadores de etnia cigana” deveria ser melhor explicitada, uma vez que, nos termos da Lei Fundamental, o perfil dos mediadores não pode ser determinado pela sua etnia.

O território das comunidades ciganas em Portugal não tem uniformidade nacional. Assim, a estratégia, sobretudo se nacional, não deverá esquecer que o país apresenta considerável diversidade territorial, entendendo-se desejavelmente que importa ter em conta a organização do território nacional e o seu planeamento na definição das acções em concreto no âmbito da presente estratégia.

Sobre a composição do grupo consultivo, será de destacar a ausência das universidades e de entidades de investigação científica na composição do grupo, cujo elevado número de membros poderá prejudicar processo de decisões. Uma vez que a estratégia faz uma clara aposta na mediação, pergunta-se se do grupo não deveriam obrigatoriamente constar representantes de associações desses profissionais?  

No documento agora em fase de consulta, destaca-se a ausência de referência às questões prisionais e do apoio judiciário e a outras temáticas de Direitos Humanos (nomeadamente do âmbito de acção das magistraturas e da protecção dos direitos e liberdades de menores). Neste ponto, seria porventura relevante a menção à acção parlamentar e dos organismos independentes de protecção dos Direitos Fundamentais.

Não pode, no entanto, deixar de se considerar como muito positiva a referência à “homogeneização e invisibilidade de grupos”, ainda que pudesse apresentar-se mais desenvolvida e dessa forma constituir uma  introdução da temática da “adolescência feminina”. De facto, a identidade de uma comunidade não pode funcionar ou ser invocada como um argumento “contra” os Direitos Humanos e nesse sentido, serão de apoiar todas as soluções que possam contribuir para promover a autonomia das jovens ciganas, promovendo a luta contra o preconceito dentro da própria comunidade. Mais uma vez, só com “empoderamento” podem a comunidade e os seus membros tornar-se verdadeiramente “senhores” do seu próprio destino. Nessa linha, são também de destacar as medidas, muito positivas, de promoção do acesso ao “microcrédito”, por exemplo, ou da formação em “marketing” para vendedores ou feirantes.

Noutro sentido, também a individualização dos “idosos” merece menção especial, destacando-se porém a importância de o documento dever apresentar metas específicas para este grupo com peculiaridades que obriga a uma atenção especial.

Lisboa, 18 de janeiro de 2012

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