16 Julho 2019

Soldados gay e “trans” enfrentam violência, assédio e discriminação devido à criminalização do sexo consensual entre homens nas Forças Armadas da Coreia do Sul, indica a Amnistia Internacional, no mais recente relatório que explica porque é que esta lei injusta e destrutiva deve ser abolida. Serving in silence: LGBTI people in South Korea’s military (“Servindo em silêncio: Pessoas LGBTI nas forças armadas da Coreia do Sul”), divulgado na última quinta-feira, aponta que o artigo 92-6 da Lei Penal Militar pune as relações sexuais entre homens, com uma pena até dois anos de prisão, à luz de uma cláusula sobre “atos indecentes”.

“Há muitos que os militares deviam ter reconhecido que a orientação sexual de uma pessoa é totalmente irrelevante para a sua capacidade para servir”

Roseann Rife, diretora de Investigação para a Ásia Oriental da Amnistia Internacional

“Os militares da Coreia do Sul têm de parar de tratar as pessoas LGBTI como o inimigo. A criminalização de atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo é devastadora para as vidas de tantos soldados LGBTI e tem repercussões na sociedade em geral”, nota Roseann Rife, diretora de Investigação para a Ásia Oriental da Amnistia Internacional.

“Este ambiente hostil potencia o abuso e assédio de jovens que ficam em silêncio por medo de represálias. Há muito que os militares deviam ter reconhecido que a orientação sexual de uma pessoa é totalmente irrelevante para a sua capacidade para servir”, acrescenta.

Na Coreia do Sul, o serviço militar é obrigatório para todos os homens, durante um período mínimo de 21 meses. A criminalização, embora só seja aplicável no interior das Forças Armadas, cria um ambiente no qual a discriminação é tolerada e tem um impacto social significativo numa fase precoce da vida de vários jovens. Muitos soldados, antigos e atuais, consideram que isto é tóxico.

Violência e violação

Soldados que falaram com a Amnistia Internacional disseram terem vivido intimidação, violência e isolamento em resultado da criminalização do sexo entre homens nas Forças Armadas.

“U”, um ex-soldado que serviu há cerca de uma década, recordou como foi levado a tentar o suicídio devido ao abuso que sofria: “Uma noite, vi um soldado ser abusado sexualmente. Quando se revoltou, o abusador, que era seu superior, começou a bater-lhe e forçou-o a beber da sanita. Alguns dias mais tarde, o soldado abusado decidiu relatar o incidente e abordou-me pedindo a minha ajuda.”

Quando o oficial ouviu falar da possível denúncia, ameaçou espancar “U”. “Depois, fui submetido a violência física e humilhação durante três horas, o que incluiu ser forçado a ter sexo oral e anal com a vítima original, enquanto o oficial fazia comentários insultuosos, tais como: ‘Não queres ter sexo com um homem que parece uma mulher?’”.

Muitos militares disseram à Amnistia Internacional que a violência sexual é cometida contra homens gay – assumidos ou presumidos. O abuso é retratado, habitualmente, como uma punição para soldados por “não serem suficientemente masculinos”, sendo que os “sinais” incluem caminhar de forma “efeminada”, ter pele mais clara ou falar com um timbre de voz mais agudo.

Investigações em 2017

Embora a criminalização à luz do código militar esteja em vigor desde os anos 1960, o assunto veio à tona em 2017 depois de as autoridades militares terem conduzido uma investigação para identificar e punir soldados suspeitos de terem sexo com homens. Em resultado, mais de 20 pessoas foram acusadas.

“Yeo-jun Kim”, um dos soldados visados na investigação, contou à Amnistia Internacional como os investigadores tentaram coagi-lo a admitir que teve sexo com homens: “Começaram por perguntar-me se conhecia ‘Jun-seo’, um antigo namorado com quem eu tinha acabado um ano antes. Quando eu respondi ‘não’, os investigadores começaram a gritar-me e a ameaçar-me”.

Na presença de “Yeo-jun Kim”, os investigadores chamaram “Jun-seo”, que confirmou o relacionamento. “Yeo-jun Kim” acabou por reconhecer “Jun-seo”, tendo sido submetido a perguntas intrusivas sobre a sua vida privada, incluindo posições sexuais e onde é que ele tinha ejaculado.

“Yeo-jun Kim” sentiu que não tinha outra opção senão admitir ter violado o artigo 92-6. “Ainda sinto o impacto da investigação, mesmo depois de ter deixado as Forças Armadas em 2018”, recorda. “As autoridades vieram ter comigo como ‘mirones’. Deviam ter mantido confidencialidade. Perdi a fé e a confiança nas pessoas”.

Respondendo a relatos como este, Roseann Rife comenta: “Estas acusações ultrajantes representam apenas uma fração do dano infligido pela criminalização de homens gay ou percebidos como tal. O código militar faz mais do que legislar contra atos sexuais particulares – institucionaliza a discriminação e arrisca incitar ou justificar a violência contra as pessoas LGBTI dentro das Forças Armadas e na sociedade em geral”.

Muitos soldados sul-coreanos disseram que escondem a orientação sexual ou identidade de género por receio de serem perseguidos. “Lee So” indicou à Amnistia Internacional: “É um lugar onde temos de apagar quem somos para nos integrarmos.” “Kim Myunghak”, que era um soldado em serviço ativo quando foi entrevistado em julho de 2018, foi “denunciado” pelo seu oficial, apesar de isso não ser permitido.

O medo de represálias impede muitas vítimas de relatarem a violência nas Forças Armadas, especialmente quando esta é levada a cabo por aqueles que detêm postos mais elevados. Isto permite a prevalência de uma cultura de impunidade, na qual os perpetradores ficam livres e as vítimas são punidas.

Do hoon Kim, um homem gay que serviu anteriormente nas Forças Armadas, disse à Amnistia Internacional: “Tem tudo que ver com poder e hierarquia. Os soldados assediam outros com postos mais baixos, somente para exibirem o seu poder”.

Consequências para a saúde mental

Vários soldados gay contaram à Amnistia Internacional que foram enviados para as instalações militares de saúde mental ou os chamados “campos verdes” e “campos de cura”.

Após ter sofrido agressões sexuais repetidas, Jeram desenvolveu um mal-estar físico e mental. Foi-lhe dada a opção de entrar num hospital psiquiátrico das Forças Armadas ou permanecer numa cela com acesso limitado ao exterior: “O hospital tentou diagnosticar-me como ‘inapto para o serviço’, com membros do pessoal a chegarem mesmo a instruir-me sobre como fingir ser mentalmente inapto, de forma a ser dispensado”.

“Recusei ser rotulado desta maneira. Sentia que, antes das Forças Armadas, tinha vivido bem a minha vida e sabia que não era a fonte do problema. Toda esta experiência levou-me a tentar o suicídio porque perdi a vontade de viver”.

Jeram contou à Amnistia Internacional o que um membro do painel que acompanhou o seu pedido de dispensa lhe disse: “Se te balear aqui, vai ser encoberto como uma morte suspeita e não passará disso. Além disso, a compensação que a tua família receberia seria ainda mais baixa do que por um cão militar, que é de dois milhões KRW (cerca de 1700 euros)”.

Como condição para a dispensa de Jeram, a mãe foi forçada a assinar um papel concordando não processar os militares por maus-tratos.

Um autêntico falhanço institucional

Ao criminalizar o sexo entre homens nas Forças Armadas, o governo sul-coreano está a falhar em cumprir um vasto leque de direitos humanos, incluindo os direitos à privacidade, à liberdade de expressão e a igualdade e não-discriminação.

“Ninguém devia enfrentar tal discriminação e abuso devido a quem é ou a quem ama. A Coreia do Sul deve, urgentemente, revogar o artigo 92-6 do código militar, como um primeiro passo crucial para acabar com a estigmatização generalizada”

Roseann Rife, diretora de Investigação para a Ásia Oriental da Amnistia Internacional

Atualmente, o Tribunal Constitucional da Coreia do Sul está a considerar, de novo, se a criminalização de atos sexuais entre indivíduos do mesmo sexo por parte do pessoal militar é constitucional, tendo já, desde 2002, decidido três vezes que o é.

“A criminalização do sexo gay nas Forças Armadas é uma violação chocante dos direitos humanos […] Ninguém devia enfrentar tal discriminação e abuso devido a quem é ou a quem ama. A Coreia do Sul deve, urgentemente, revogar o artigo 92-6 do código militar, como um primeiro passo crucial para acabar com a estigmatização generalizada enfrentada pelas pessoas LGBTI”, defende Roseann Rife.

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