19 Dezembro 2013

A investigação no terreno feita nestas últimas duas semanas pela Amnistia Internacional na República Centro Africana não deixa margens para dúvidas: estão a ser cometidos crimes de guerra e crimes contra a humanidade naquele país, mergulhado há um ano em violência.

Para a Aministia Internacional é crucial uma rápida mobilização de uma robusta força de paz das Nações Unidas, com um claro mandato para proteger os civis, e que a comunidade internacional dote essa força de recursos suficientes para garantir que cumpre o seu propósito de forma eficaz.

“A investigação profunda que fizemos no terreno nas últimas duas semanas na República Centro Africana não nos deixa margens para dúvidas de que estão a ser cometidos crimes de guerra e crimes contra a humanidade por todas as partes envolvidas no conflito”, frisa o perito Christian Mukosa, da Amnistia Internacional, o qual integrou a equipa de três elementos que esteve no terreno. “Os crimes cometidos incluem execuções sumárias, mutilação de corpos, destruição intencional de edifícios religiosos, como mesquitas, e a deslocação forçada e maciça de pessoas”, precisa.

Testemunhos e evidências de situações similares a estas foram obtidas igualmente por uma equipa de investigadores do think-tank Human Rights Watch, que divulgou também esta quinta-feira, 19 de dezembro, um relatório sobre a escalada de violência e atrocidades cometidas na província de Ouham, no noroeste do país, região de fronteira com o Chade.

A delegação da Amnistia Internacional, que esteve na capital da República Centro Africana, Bangui, entre 4 e 17 de dezembro, documentou violações e abusos dos direitos humanos ocorridos desde que a violência eclodiu naquela cidade, no passado 5 de dezembro, com um ataque feito às primeiras horas da manhã pelas milícias anti-balaka (anti-catana, ou anti-espada, nos idiomas locais). Este grupo formou-se após a subida ao poder de Michel Djotodia, líder da coligação dos rebeldes armados Séléka, maioritariamente muçulmanos, a qual derrubou em março o então Presidente François Bozizé.

Em alguns bairros de Bangui, as milícias anti-balaka foram de porta em porta e mataram pelo menos 60 homens muçulmanos. As forças governamentais de facto, fiéis a Djotodia, retaliaram a uma ainda maior escala contra os cristãos, matando perto de mil pessoas em apenas dois dias e pilhando pelo caminho as casas de civis. Entre os mortos há também mulheres e crianças. Nos dias que se seguiram à primeira vaga de violência em Bangui, os abusos e violações dos direitos humanos prosseguiram a um ritmo alucinante.

Apesar da presença no terreno de forças militares francesas e da União Africana para protegerem as populações, os civis estão a ser deliberadamente mortos todos os dias, com pelo menos mais 90 pessoas mortas nos últimos dez dias – algumas alvejadas a tiro, outras às mãos de multidões armadas com catanas e facas de mato, outras ainda apedrejadas até à morte.

Vizinhos a matar vizinhos à catanada

A total ausência de justiça e de responsabilização por estes crimes tem alimentado uma espiral de matanças por vingança e um cada vez mais profundo ódio e desconfiança entre as comunidades.

“Desde a madrugada do ataque a Bangui que todos os dias há mortes e tortura, mesmo massacres. Morreram já pelo menos mil pessoas desde 5 de dezembro. É uma situação muito séria”, alerta Christian Mukosa. “Nesta última semana, o mais chocante foram as mortes à catanada, pessoas que são mortas pelos vizinhos à catanada como se fossem chouriços. São vizinhos a matar vizinhos, pessoas que viviam ao lado umas das outras, que antes viviam em harmonia umas com as outras. Mas, com esta crise a ficar fora de controlo nos bairros, agora são vizinhos que estão a matar vizinhos”.

O investigador relata ter encontrado crianças de apenas três anos nos hospitais com ferimentos de catanas e facas de mato nas cabeças: “Vê-se bem que a intenção era a de as matar. É chocante e preocupante quando uma comunidade é capaz de tomar por alvo crianças e vizinhos”.

Num dos campos improvisados que têm vindo a acolher os civis forçados a abandonar as suas casas por causa da violência, um homem expressou à Amnistia Internacional, na passada segunda-feira, 16 de dezembro, o medo presente nas comunidades: “Neste momento, desde as pessoas mais pequenas às maiores, todos estamos com medo. Estamos aterrados e aqui à espera de uma solução real que nos permita regressar a casa. Até lá, estamos aqui entregues ao nosso triste destino. Há aqui crianças, idosos, pessoas com deficiências e outras doentes. Houve uma mulher que ainda há pouco teve um filho…”

Pelo menos 610 mil pessoas foram forçadas a abandonar as suas casas por todo o país, mais de 189 mil delas apenas em Bangui – um número que representa um quarto dos habitantes da capital. “A violência imparável, a extensa destruição de propriedade e a deslocação forçada da população de Bangui estão a alimentar uma raiva e hostilidade enormes”, sublinha Christian Mukosa.

“E não há nenhuma hipótese de chegar ao fim deste ciclo de violência enquanto as milícias não forem desarmadas e não houver uma eficaz e adequada proteção dos milhares de civis que estão em risco no país. Tornar os bairros residenciais seguros tem de ser uma prioridade urgente, de forma a permitir que as pessoas possam voltar às suas casas e retomar as suas vidas com normalidade”, insta este perito da Amnistia Internacional.

O processo de desarmamento deve ser acompanhado, por seu lado, por medidas concretas de proteção física das pessoas, sobretudo nas zonas mais problemáticas como os bairros de PK5, Miskine e Combattant. A Amnistia tem recebido relatos de atos de vingança levados a cabo nestas áreas contra aqueles que entregaram as suas armas.

Multidões em raiva misturadas com grupos armados

Um dos aspetos mais preocupantes da situação atual na República Centro Africana é a ambiguidade existente entre os grupos armados e as multidões de civis em fúria. Em muitos casos tem sido difícil identificar os responsáveis pelas mortes, mas é claro que muitos civis não apenas aceitam como defendem os atos violentos de vingança, e alguns participam mesmo neles.

Tanto as comunidades cristãs como as muçulmanas estão imersas num profundo ódio e mágoa: muitas pessoas, em ambos os lados envolvidos mostraram aos investigadores da AI fotografias e vídeos de massacres que têm gravadas nos seus telemóveis.

A Amnistia Internacional defende que são necessárias urgentemente mais tropas internacionais para garantir a segurança em Bangui e no resto da República Centro Africana. A União Africana prometeu enviar um contingente de seis mil soldados adicionais para uma força de paz que deveria assumir a autoridade no país hoje mesmo, 19 de dezembro – esta força é precisa com urgência, mas até agora não são ainda conhecidos os planos da sua composição nem da forma como estas tropas se vão instalar no terreno.

Para a Amnistia Internacional é igualmente crucial que as Nações Unidas apressem os planos de criação de uma comissão de investigação para os crimes de guerra, crimes contra a humanidade e outras graves violações de direitos humanos no país. “É muito importante que sejam apuradas responsabilidades pelos crimes que foram cometidos por ambos os lados no conflito e garantir o fim de décadas de impunidade que têm perdurado neste país”, avalia Christian Mukosa.

Informação credível recolhida pelos investigadores da Amnistia Internacional revela que houve envolvimento direto de líderes das milícias nos ataques, os quais devem ser levados à justiça. Mukosa sublinha que “a comunidade internacional tem um papel importante a desempenhar na República Centro Africana na garantia de que as forças de paz são mobilizadas com brevidade e que lhes são dados os recursos de que precisam para evitar um ainda maior derramamento de sangue”.

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