As autoridades de Curaçau e dos Países Baixos violaram os direitos humanos de pessoas venezuelanas que procuravam proteção internacional na ilha, afirmou hoje a Amnistia Internacional num novo relatório, “Ainda sem segurança: Proteção negada a venezuelanos em Curaçau”. A organização expõe 22 casos de venezuelanos – entre os quais existem crianças – que foram submetidos a violações de direitos humanos, como detenção sob condições desumanas, maus-tratos, separações familiares e impedimentos à solicitação de asilo.
Quase 5.7 milhões de de pessoas fugiram da crise de direitos humanos que assola a Venezuela, tornando-a numa das maiores crises globais que leva à deslocação forçada da sua população. Curaçau, uma ilha caribenha próxima, que integra o Reino dos Países Baixos, está entre os países de destino. Estima-se que, atualmente, 17.000 venezuelanos vivam com estatuto migratório irregular na ilha.
“É inaceitável que o Reino dos Países Baixos tenha apoiado as autoridades de Curaçau a juntar, deter e deportar pessoas que fugiram da Venezuela em busca de segurança. Em vez de fecharem os olhos enquanto são violados os direitos humanos destas pessoas, as autoridades dos Países Baixos deveriam garantir que elas recebem a proteção internacional de que necessitam”, mencionou Erika Guevara-Rosas, diretora da Amnistia Internacional para as Américas.
“Em vez de fecharem os olhos enquanto são violados os direitos humanos destas pessoas, as autoridades dos Países Baixos deveriam garantir que elas recebem a proteção internacional de que necessitam”
Erika Guevara-Rosas
Ainda sem proteção
A Amnistia Internacional descobriu que a situação dos venezuelanos que procuram proteção em Curaçau não melhorou desde a publicação do seu relatório, Detidos e Deportados, em 2018. Ainda que Curaçau tenha introduzido um novo procedimento de proteção internacional, este não cumpre as normas internacionais de direitos humanos. Por exemplo, os venezuelanos que fogem da crise ainda são automaticamente detidos por períodos de tempo indefinidos, durante os quais são pressionados a assinar formulários, consentindo a sua deportação, e têm acesso muito limitado a assistência legal.
As entrevistas que avaliam a necessidade de proteção são executadas por funcionários governamentais, que estão igualmente responsáveis pela detenção de estrangeiros com estatuto migratório irregular. Até agora, o novo procedimento só tem conduzindo à rejeição de requerimentos de proteção internacional. A Amnistia Internacional teme o incumprimento do princípio de non-refoulement praticado constantemente por Curaçau, que reenvia as pessoas para a Venezuela, colocando-as em risco de graves violações de direitos humanos.
As condições no apelidado “Quartel de estrangeiros”, um centro de detenção localizado na prisão DDKK (Sentro di Detenshon i Korekshon Korsou), continuam desumanas, com pessoas detidas a serem sujeitas a privação sensorial, sobrelotação dos espaços, aprisionamento junto de prisioneiros condenados e falta de privacidade. À Amnistia Internacional, alguns venezuelanos partilharam o tratamento degradante e desumano por parte dos guardas prisionais, nomeadamente abuso físico (agressões) e verbal (insultos), detalhando que houve vezes em que os obrigaram a permanecer nus e a saltar como sapos. Em 2019, a polícia disparou balas de borracha sobre um grupo de pessoas que se encontrava no “Quartel de estrangeiros”. A força intencional e desproporcionada utilizada pela polícia, e a gravidade dos ferimentos, poderá equivaler a maus-tratos ou tortura.
Miguel, uma das vítimas dos disparos com balas de borracha, recorda como os guardas prisionais o puniram por procurar proteção: “Três dias depois de chegar, começou a loucura. Os guardas não nos deixavam dormir. Faziam barulho com martelos o tempo todo. Eu estava a dormir no chão e encontrava-me mal alimentado. Perdi trinta e cinco quilos em cinco meses. Maltratavam-nos psicologicamente para assegurar que deixávamos a ilha.”
“Maltratavam-nos psicologicamente para assegurar que deixávamos a ilha”
Relato de uma vítima
Detenção de crianças e separação de famílias
Curaçau violou os direitos das crianças venezuelanas, ao detê-las e separá-las dos seus pais, residentes na ilha. A Amnistia Internacional encontrou oito casos de crianças que estavam, ou tinham estado, detidas entre os adultos “Quartel de estrangeiros”, ou em centros de detenção juvenil. Em nenhum caso, as autoridades permitiram a reunião destas crianças com os seus pais, nem permitiram que os seus progenitores as visitassem. Em vez disso, deportaram estes menores, ou estavam a planear fazê-lo, sem o conhecimento ou autorização dos seus pais. O sofrimento emocional intencional e severo que os funcionários do governo causaram, ao deportar crianças e separá-las dos seus pais, poderá, em alguns casos, equivaler a tortura.
No caso de Yusmari, os seus dois filhos, naquela altura com 15 e 16 anos, foram automaticamente detidos no “Quartel de estrangeiros”, depois de terem sido intercetados pela Guarda Costeira e entregues à polícia de estrangeiros de Curaçau. Yusmari, que já em situação migratória irregular na ilha, recorda a detenção dos filhos: “Todas as vezes que chamávamos, nós chorávamos.” O seu filho mais novo, que agora está de volta à Venezuela, disse à Amnistia Internacional: “Eu senti-me mal. Não estava habituado a estar fechado.” Após dois dias, os filhos de Yusmari foram presos num centro de detenção juvenil, onde ela não estava autorizada a contactá-los ou a visitá-los. Quando Yusmari finalmente obteve autorização e chegou a este centro, soube que as autoridades de Curaçau já tinham deportado os seus filhos.
“Quando Yusmari finalmente obteve autorização e chegou a este centro [de detenção juvenil], soube que as autoridades de Curaçau já tinham deportado os seus filhos”
A contribuição dos Países Baixos para as violações de direitos humanos
Apesar dos vários sinais alarmantes sobre as violações dos direitos dos refugiados e migrantes cometidas nos anos recentes, as autoridades dos Países Baixoss intensificaram a sua cooperação e apoios ativos a Curaçau, principalmente nas áreas de deteção, e deportação de migrantes em situação irregular e de pessoas em busca de proteção.
Em novembro de 2019, as forças armadas dos Países baixos assistiram à detenção de um grupo de pessoas venezuelanas, detidas ilegalmente, que mais tarde foram aparentemente sujeitas a uma expulsão coletiva, o que entra em contradição com as normas integrantes do Direito Internacional. Além disso, os Países Baixos forneceram material e staff à Guarda Costeira do Caribe Holandês Caraíbas holandesa, para intercetar chegadas irregulares por mar, independentemente do elevado risco de violações de direitos humanos em terra.
As autoridades dos Países Baixos não estabeleceram um único mecanismo vinculativo de salvaguarda de direitos humanos ou de controlo independente, nem investigaram alegadas violações de direitos humanos enquanto apoiavam as autoridades de Curaçau. O Secretário de Estado responsável declarou repetidamente que estas autoridades não têm qualquer obrigação de o fazer, porque o seu governo considera que a política de migração e possíveis abusos cometidos são da responsabilidade de Curaçau.
No entanto, a Amnistia Internacional considera que a obrigação internacional de respeitar e proteger os direitos humanos também se aplica aos Países Baixos quando apoia as autoridades de Curaçau. É evidente que as suas autoridades não cumpriram esta obrigação, tendo assim contribuído para um sistema de abusos.
A Amnistia Internacional apela às autoridades de Curaçau para que garantam os direitos dos requerentes de asilo venezuelanos, através da criação de um procedimento de asilo que cumpra as normas internacionais. Devem pôr fim à detenção de menores e à separação de famílias, e não deter adultos, exceto como último recurso. Devem também conduzir investigações rápidas, exaustivas, imparciais e independentes sobre todas as alegações de violações de direitos humanos cometidas durante a detenção ou custódia.
O governo dos Países Baixos deve avaliar os riscos para os direitos humanos, e criar salvaguardas vinculativas de direitos humanos aplicáveis ao apoio que providencia às autoridades de Curaçau. Além disso, os Países Baixos deveriam estabelecer uma investigação independente das suas responsabilidades na prestação de assistência e cooperação com Curaçau em matéria de migração e proteção internacional, em particular durante a custódia de venezuelanos em pavilhões desportivos em 2019 e as ações da guarda costeira.
Ler mais:
Ainda sem Segurança: Proteção negada a venezuelanos em Curaçau (Investigação, 11 de outubro de 2021)
Detidos e Deportados: Proteção negada a venezuelanos em Curaçau (Investigação, 9 de setembro de 2018)