4 Novembro 2024

 

  • Espancamentos, choques elétricos e posições de tensão são comuns
  • As autoridades têm de atuar agora, antes que milhares de outras pessoas sejam vítimas de violações semelhantes

 

Os iraquianos estão a ser sujeitos a tortura e a outros maus-tratos, bem como a desaparecimentos forçados, depois de terem sido detidos no Centro Comunitário de Reabilitação de Al-Jed’ah, no norte do Iraque, afirmou a Amnistia Internacional numa nova investigação.

A Amnistia Internacional documentou os casos de oito pessoas, sete homens e uma mulher, que foram detidas no Centro Al-Jed’ah (também conhecido como Campo Jed’ah 1) em 2023 e 2024. Sete delas foram vítimas de tortura e outros maus-tratos. Os entrevistados afirmaram que a tortura incluía espancamentos severos, choques elétricos, ser forçado a posições de tensão e ser submerso à força em água ou ter a cabeça coberta com um saco de plástico para restringir a entrada de ar. Os familiares afirmaram ter observado os efeitos óbvios da tortura nos seus parentes, tais como dedos partidos e ombros deslocados.

Muitos iraquianos foram transferidos para o Centro Al-Jed’ah do campo de detenção de Al-Hol, no nordeste da Síria, onde dezenas de milhares estão a ser arbitrariamente detidos devido às suas alegadas ligações ao grupo armado Estado Islâmico (EI). Desde 2021, estima-se que 9500 pessoas tenham regressado ao Iraque a partir de Al-Hol, na Síria. As autoridades iraquianas estão a considerar aumentar o regresso dos iraquianos em Al-Hol — estimado em mais de 18000 — para que a grande maioria seja transferida até ao final de 2027.

“A tortura e outros maus-tratos sofridos pelas pessoas detidas no Centro Al-Jed’ah são horríveis. É preciso pôr cobro a esta situação e investigá-la imediatamente”, afirmou Agnès Callamard, secretária-geral da Amnistia Internacional.

“A tortura e outros maus-tratos sofridos pelas pessoas detidas no Centro Al-Jed’ah são horríveis. É preciso pôr cobro a esta situação e investigá-la imediatamente”

Agnès Callamard

“As autoridades iraquianas e a ONU concordaram que dezenas de milhares de iraquianos serão reenviados para o Centro Al-Jed’ah a partir do campo de detenção de Al-Hol, no nordeste da Síria, nos próximos anos. É inadmissível que, depois de terem escapado a uma década de guerra e de detenção, os iraquianos regressem para enfrentar novos horrores. Antes que estas práticas afetem os milhares de pessoas que deverão regressar ao Centro Al-Jed’ah, as autoridades iraquianas têm de tomar medidas urgentes para pôr termo ao recurso à tortura e a outros maus-tratos”, acrescentou Agnès Callamard.

A Amnistia Internacional realizou entrevistas presenciais com indivíduos que tinham sido detidos no Centro Al-Jed’ah e com os seus familiares durante uma visita de investigação ao Iraque em julho de 2024, e em entrevistas remotas realizadas entre julho e setembro de 2024. A organização também entrevistou 16 membros do pessoal da ONU e de outras organizações internacionais, bem como o presidente do Tribunal de Recurso de Ninewa.

Sete dos oito casos documentados envolviam relatos pormenorizados de tortura e outros maus-tratos utilizados durante os interrogatórios pelas forças de segurança iraquianas. Seis das pessoas entrevistadas estão atualmente a cumprir longas penas de prisão, com base nas suas confissões contaminadas pela tortura. Estes padrões de violações são semelhantes aos enfrentados por homens iraquianos transferidos de prisões no nordeste da Síria para as autoridades iraquianas, que a Amnistia Internacional documentou num importante relatório no início deste ano.

Em 2 de outubro de 2024, a Amnistia Internacional escreveu ao primeiro-ministro do Iraque descrevendo em pormenor as conclusões do inquérito. Sem resposta

Em julho de 2024, as autoridades iraquianas recusaram à Amnistia Internacional o acesso a visitas ou a realização de entrevistas no Centro Al-Jed’ah, alegando “preocupações de segurança”. Em 2 de outubro de 2024, a Amnistia Internacional escreveu ao primeiro-ministro do Iraque descrevendo em pormenor as conclusões do inquérito. Até à data desta publicação, ainda não tinha sido recebida qualquer resposta.

“Quase todas as pessoas detidas serão sujeitas a tortura… É apenas a rotina”

Em setembro de 2024, estavam detidas no Centro Al-Jed’ah 2223 pessoas, incluindo 1318 crianças, 627 mulheres e 278 homens. O Centro Al-Jed’ah é gerido pelo Ministério da Migração e Deslocação do Iraque, com o apoio de vários outros ministérios iraquianos, da ONU — incluindo a OIM, a UNICEF, o ACNUR, o UNFPA, a OMS e o PAM — e de ONG internacionais e locais.

Desde 2021, as forças de segurança iraquianas efetuaram cerca de 80 detenções de pessoas no centro de Al-Jed’ah sob a acusação de filiação no EI. A grande maioria das pessoas detidas são homens, mas também foram detidas mulheres e crianças.

As detenções de iraquianos no centro de Al-Jed’ah são efetuadas pelas forças de segurança do Iraque, incluindo o exército, a polícia e os serviços secretos. De acordo com o presidente do Tribunal de Recurso de Ninewa, as pessoas detidas no Centro Al-Jed’ah são normalmente interrogadas na prisão de Faisaliya, em Mossul, ou em Bagdade, e depois são julgadas no Tribunal Antiterrorista de Ninewa, em Mossul.

Saleem*, que foi detido juntamente com o seu filho Abdullah* em 2023, afirmou que ambos foram vítimas de tortura e outros maus-tratos durante os seus interrogatórios. Disse à Amnistia Internacional: “Espancaram-me e algemaram-me as mãos atrás das costas. Bateram-me nas solas dos pés com um cano de água verde. Eu só dizia ‘não’, uma e outra vez. Durante a tortura, disseram-me que queriam que eu confessasse coisas que não tinha feito. Eu não confessei e, por isso, fiquei quatro dias sem andar”.

“Durante a tortura, disseram-me que queriam que eu confessasse coisas que não tinha feito. Eu não confessei e, por isso, fiquei quatro dias sem andar”

Saleem

Saleem disse que viu Abdullah na cela que partilhavam após o interrogatório: “Enforcaram o meu filho durante quatro horas. Ele enfrentou ta’liq [espancamento enquanto suspenso numa barra de metal], pancadas nos pés, palavrões e insultos à sua dignidade. Quase todas as pessoas detidas são sujeitas a tortura… É apenas a rotina”.

Maryam*, detida no Centro Al-Jed’ah em 2024, contou à Amnistia Internacional que foi sujeita a choques elétricos, pontapés, espancamento com um pau no pescoço e assédio sexual durante o seu interrogatório. Foi também forçada a testemunhar a tortura de outros detidos. Ela disse à Amnistia Internacional: “[O investigador] estava a amaldiçoar-me e a dizer coisas sobre o meu corpo. Algumas palavras [que ele disse] eu não posso dizer, nem sequer as posso ter na boca… Estavam sempre a dizer que eu devia dizer que estava com o EI”.

Mostafa*, detido em 2024, recebeu a visita da sua mulher pouco depois do interrogatório. Ela disse à Amnistia Internacional: “Não o reconheci. Tinha os dentes partidos e não conseguia ouvir. Ainda não consegue ouvir corretamente. Tinha as costelas partidas. Pudemos ver o quanto ele foi torturado”.

“Não o reconheci. Tinha os dentes partidos e não conseguia ouvir. Ainda não consegue ouvir corretamente. Tinha as costelas partidas. Pudemos ver o quanto ele foi torturado”

Mulher de Mostafa

 

Desaparecimento forçado

Em seis dos oito casos documentados pela Amnistia Internacional, uma pessoa detida no Centro Al-Jed’ah parece ter estado desaparecida à força durante um período que variou entre 14 dias e os três meses. Na maioria dos casos, os funcionários recusaram-se a revelar o paradeiro da pessoa detida. Muitas vezes, os familiares só souberam do destino do seu familiar através de outros detidos que foram libertados.

A Amnistia Internacional já documentou anteriormente o padrão das forças de segurança que prendem iraquianos em campos de deslocados internos e os sujeitam a desaparecimentos forçados.

A mulher de Mostafa disse à Amnistia Internacional: “Estávamos sempre a perguntar à administração onde é que ele estava. Eles só me diziam que o tinham levado [e estavam] sempre a dar respostas diferentes. Eles não gostavam que eu lhes perguntasse pelo meu marido. Eu tinha tanto medo de perguntar e via que eles ficavam zangados quando eu perguntava”.

Detenções injustas

Embora algumas detenções no Centro Al-Jed’ah possam ter sido efetuadas com base em motivos legítimos, os iraquianos e os membros do pessoal das organizações internacionais referiram vários fatores que podem frequentemente conduzir a uma falsa acusação de filiação no EI.

Nalguns casos, as pessoas foram acusadas de envolvimento com o EI por um dos seus familiares ter aderido ao grupo. O filho de Fátima*, Haider*, com 14 anos quando chegou ao campo de Al-Hol, foi detido no Centro Al-Jed’ah. Ela disse à Amnistia Internacional: “Houve alguém da [nossa aldeia] que disse que na nossa família todos éramos terroristas, o pai e os filhos… Ele [Haider] não tinha qualquer ligação ao terrorismo. Era apenas um miúdo”.

“Houve alguém da [nossa aldeia] que disse que na nossa família todos éramos terroristas, o pai e os filhos… Ele [Haider] não tinha qualquer ligação ao terrorismo. Era apenas um miúdo”

Fátima, mãe de Haider

As rixas pessoais também podem levar a falsas acusações. Em dois casos documentados pela Amnistia Internacional, as acusações de filiação no EI tiveram origem em disputas conjugais. Estes padrões já tinham sido documentados pela Amnistia Internacional ao longo do conflito que envolveu o EI no Iraque e no seu rescaldo.

Nalguns casos, os membros da comunidade que se instalaram na casa de uma pessoa que abandonou o Iraque podem acusar o indivíduo de ser membro do EI para evitarem renunciar à posse da propriedade.

Condições desumanas nas prisões

Em todos os oito casos documentados pela Amnistia Internacional, cada indivíduo foi acusado ao abrigo da Lei Antiterrorismo de 2005, que enferma de graves deficiências. Dois deles foram libertados após as investigações e os julgamentos. Os restantes seis foram condenados, tendo cinco indivíduos sido sentenciados a prisão perpétua (20 anos) e um a 15 anos. Os seis estão a cumprir as penas na Prisão Central de Nasiriyah ou na Prisão Central de Babel.

De acordo com alguns dos seus familiares, as condições em que se encontram detidos, particularmente em Nasiriyah, são desumanas, sendo privados de acesso a alimentação, água, saneamento e cuidados de saúde adequados. A Amnistia Internacional recebeu anteriormente relatos de maus-tratos por parte dos guardas prisionais em Nasiriyah, incluindo abusos verbais e físicos de rotina.

Todos os membros da família descreveram como é dispendioso fornecer aos seus familiares detidos a comida, o vestuário e a medicação de que necessitam. O pai de Abdullah, atualmente detido em Babel, afirmou: “Enviamos-lhe medicamentos, 300-350.000 dinares por mês [o equivalente a 210-250 euros americanos]. Gasta-se muito dinheiro para os visitar, para lhes levar comida e roupa”.

“Enviamos-lhe medicamentos, 300-350.000 dinares por mês [o equivalente a 210-250 euros americanos]. Gasta-se muito dinheiro para os visitar, para lhes levar comida e roupa”

Pai de Abdullah

Muitos familiares afirmaram ter ficado em situações desesperadas, uma vez que os detidos eram frequentemente os únicos assalariados da família. A mulher de Mostafa, que está a cumprir uma pena de 20 anos em Babel, disse à Amnistia Internacional: “Agora estamos mesmo destroçados. Um dos filhos está a trabalhar num parque de estacionamento, a passar recibos. O outro está a trabalhar numa loja de gelados e sumos. São eles que sustentam a família. Estamos a pedir ajuda a quem quer que seja que encontremos. Nem sequer podemos pagar a renda”.

A Amnistia Internacional apela às autoridades iraquianas para que ponham imediatamente termo ao recurso à tortura e a outros maus-tratos e ao desaparecimento forçado das pessoas detidas no Centro Al-Jed’ah, e para que procedam a novos julgamentos que respeitem as normas internacionais de julgamento justo de todas as pessoas condenadas com base em confissões viciadas pela tortura. A ONU deve efetuar novas investigações sobre o tratamento dado às pessoas detidas no Centro Al-Jed’ah e pôr termo à sua cooperação e apoio às autoridades iraquianas quando esse apoio é utilizado de forma cúmplice de violações dos direitos humanos.

 

* — Os nomes foram alterados.

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