2 Julho 2015

Violência policial, perseguição, detenções arbitrárias e violações ocorridas durante uma operação de segurança levada a cabo no ano passado no Congo, para deportar dezenas de milhares de cidadãos oriundos da vizinha República Democrática do Congo e ali refugiados, marcaram uma série de brutais ataques que podem configurar crimes contra a humanidade, conclui a Amnistia Internacional em nova investigação.

A organização de direitos humanos insta a que sejam prontamente abandonados todos os planos atuais de expulsões maciças no Congo e que seja permitido regressar a todos quantos foram ilegitimamente forçados a sair do país, caso assim o desejem.

O novo relatório “Operation ‘Mbata ya Bakolo’: mass expulsions of foreign nationals in the Republic of Congo” (Operação “Mbata ya Bakolo”: expulsões maciças de cidadãos estrangeiros do Congo) – publicado esta quinta-feira, 2 de julho – documenta várias violações de direitos humanos e crimes enlencados na legislação internacional que foram cometidos pelas forças de segurança congolesas e outros naquele país entre abril e setembro de 2014.

Durante esse período, pelo menos 179.000 cidadãos da República Democrática do Congo (RDC), incluindo refugiados e requerentes de asilo, foram reunidos, arbitrariamente detidos e forçados a abandonar o Congo.

“A ‘Mbata ya Bakolo’ [“esbofeteamento dos anciãos” em lingala, a língua local] ficou manchada por ataques generalizados que podem configurar crimes contra a humanidade”, frisa a investigadora da Amnistia Internacional perita em RDC, Evie Francq. “A nossa investigação inclui numerosos testemunhos que demonstram que, no afã da operação para juntar os cidadãos da República Democrática do Congo, a polícia recorreu com frequência a força excessiva, fez detenções arbitrárias, extorquiu dinheiro e pertences, destruiu bens e, em alguns casos, foram mesmo violadas raparigas e mulheres. E até hoje não foi feita nenhuma investigação criminal nem formulada qualquer acusação. O Congo tem a obrigação clara de julgar aqueles que são suspeitos de serem criminalmente responsáveis por crimes consagrados na legislação internacional”, prossegue a perita.

Deportações em larga escala

A operação “Mbata ya Bakolo” foi uma resposta em larga escala das forças de segurança congolesas ao que as autoridades do Congo descreveram como um aumento da criminalidade no país que atribuíam a membros das “kulunas” (grupos criminosos) oriundos da vizinha RDC. Oficialmente, esta operação tinha a mira assente em “imigrantes ilegais”, mas na prática quaisquer cidadãos da RDC foram rapidamente visados na operação, independentemente do estatuto de migração que detinham.

Entre abril e setembro de 2014, as expulsões forçadas de requerentes de asilo e de refugiados foram comuns no país, numa flagrante violação da lei internacional. As deportações ocorreram por todo o Congo, tendo sido registada a transferência de cidadãos da RDC em 33 postos fronteiriços entre os dois países.

Na capital congolesa, Brazzaville, foram detidos arbitrariamente cidadãos da RDC e levados para o porto que é conhecido localmente como “Beach” (Praia) e funciona como a principal travessia fronteiriça para Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, na margem oposta do rio Congo.

Jacqueline (nome fictício), cidadã da RDC que vivia na capital congolesa desde 2009, contou à Amnistia Internacional como aquelas rusgas foram completamente arbitrárias: “Estávamos em casa, no bairro de Moungali, em Brazzaville, na sexta-feira de 2 de maio [de 2014], quando o chefe do bairro e a polícia apareceram. Disseram-nos que quem quer que fosse da RDC tinha de partir… Nós vivíamos legalmente em Brazzaville mas eles recusarem-se até a verem os nossos documentos de identificação! Agarrámos em algumas roupas e fomos obrigados a apanhar um barco para Kinshasa. Estou agora aqui com quatro crianças, a viver nas ruas. Estamos ao abandono. Estamos em perigo aqui”.

Quase metade das 112 pessoas entrevistadas pela Amnistia Internacional nesta investigação asseveraram terem sido arbitrariamente detidas, algumas delas até múltiplas vezes, durante a operação “Mbata ya Bakolo”.

O medo da violência policial e da crescente xenofobia no Congo conduziu muitos outros a regressarem à RDC por sua própria iniciativa. Marie (nome fictício), de 35 anos, descreveu à Amnistia Internacional as condições desumanas e de sobrelotação no porto de Brazzaville em que estiveram a aguardar a partida de retorno ao país natal.

“Estive dois dias em ‘Beach’ antes de partir [para a RDC]. Durante esses dois dias, havia lá crianças a desfalecerem, até mulheres que entraram em trabalho de parto. Eu mesma vi um parto, ali no porto atulhado de gente. O bebé morreu devido a asfixia. Eu dormi no exterior com os meus quatro filhos e havia imensa gente em volta. A polícia pisava as pessoas, empurrava-as. Dei 40 dólares a um polícia para conseguir entrar num barco”, recordou.

Violência e violações

Sobreviventes destas expulsões reportaram que, além de extorquirem dinheiro e pertences a cidadãos da RDC, agentes das forças de segurança do Congo usaram violência física – incluindo violações – para humilhar e intimidar estas pessoas.

Uma mulher de 21 anos relatou que seis polícias irromperam pela casa dela às 3h00 da madrugada e a violaram quando ela estava sozinha com a filha de quatro anos. “Arrancaram-me as roupas e violaram-me, um a seguir ao outro. Eu lutava contra eles, tentava resistir, e eles disseram que me iam mostrar como é que alguém de Brazzaville trata uma zairense [em referência a Zaire, a designação antiga da República Democrática do Congo], que é como a um cão. Um deles atou-me as mãos e outro feriu-me com um objeto”.

A Amnistia Internacional documentou a violação de mais outras quatro mulheres e raparigas, incluindo uma criança de cinco anos.

Xenofobia contra cidadãos da RDC

A polícia do Congo fez extenso uso dos órgãos de comunicação social para publicitar a operação “Mbata ya Bakolo”, lançando mão das rádios e canais de televisão, e também nas ruas, com megafones, para encorajar a população a identificar o que descreveram como “famílias criminosas”.

Músicos do país escreveram canções que incitavam à discriminação, com versos que diziam “os ngala [em referência aos estrangeiros ou cidadãos da RDC] agora vão para casa, vamos salvar os nossos trabalhos e deixá-los partir”.

Em consequência, a xenofobia alastrou e os cidadãos da RDC foram ameaçados, intimidados, perseguidos e agredidos por vizinhos e outras pessoas nas ruas. Perderam os empregos e a capacidade de se sustentarem e às suas famílias. Alguns viram-se forçados a dormir ao relento após terem sido despejados das suas casas depois de a polícia ter criado uma multa, de 600 dólares, para os senhorios que arrendassem casas a “inquilinos ilegais”.

Uma requerente de asilo oriunda da RDC, com nove filhos, contou à Amnistia Internacional: “Ameaçaram-me no mercado. Disseram-me ‘Já vamos tratar de ti. Vais ver.’ Os nossos vizinhos dizem que estão fartos de nos ter ali, atiram-nos pedras, cortam-nos o acesso à rede elétrica. Os nossos filhos deixaram de ir à escola porque temos medo que os apanhem e os expulsem para Kinshasa”.

“Perante esta xenofobia feroz incitada pelas autoridades, muitos cidadãos da RDC sentiram não ter nenhuma outra escolha senão a de partirem do Congo. O Governo de Brazzaville chamou-lhes partidas voluntárias, mas na verdade são deportações disfarçadas e uma violação da lei internacional. As autoridades têm de pôr fim à discriminação oficial e confrontar com urgência os comportamentos xenófobos na sociedade”, insta a perita da Amnistia Internacional em RDC.

Cidadãos da África Ocidental também são alvos

A Amnistia Internacional está igualmente apreensiva com a nova vaga de detenções e deportações que atualmente tem em mira cidadãos de países da África Ocidental e se regista desde 14 de maio passado em Ponta Negra, a segunda maior cidade do Congo.

“O Governo do Congo tem de acabar imediatamente com esta nova fase da operação e garantir que não se verificará uma repetição das deportações maciças do ano passado”, remata Evie Francq.

 

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