13 Novembro 2017

Populações civis inteiras que sofreram cercos horríveis foram sujeitas a intensos bombardeamentos não estão a ter nenhuma outra escolha que não a de partirem ou morrerem, ao abrigo dos chamados acordos de “reconciliação” firmados entre o Governo sírio e grupos armados da oposição, denuncia a Amnistia Internacional em novo relatório emitido esta segunda-feira, 13 de novembro.

A campanha de cercos, de execuções ilegais e de deslocamentos forçados das populações levada a cabo pelo Governo sírio, que tem desenraizado milhares de civis e forçado as pessoas a viverem em condições miseráveis, constitui crime contra a humanidade.

O novo relatório da Amnistia Internacional – intitulado We leave or we die”: Forced displacement under Syria’s ‘reconciliation’ agreements” (“‘Partimos ou morremos’: Deslocamentos forçados causados pelos acordos de ‘reconciliação’ na Síria”) – analisa quatro destes pactos locais e documentos relacionados com violações de direitos humanos que datam até de 2012. Firmados entre agosto de 2016 e março de 2017, os acordos de “reconciliação” provocaram a deslocação forçada de milhares de habitantes de seis zonas sob cerco militar: em Daraya, na zona oriental da cidade de Alepo, em Al-Waer (distrito de Homs), em Madaya e em Kefraya e Foua.

O Governo sírio e, em menor grau, grupos armados da oposição têm cercado ilegalmente populações civis, privando-as de acesso a alimentos, a medicamentos e a outros produtos e serviços essenciais, e fizeram ataques ilegais sobre áreas densamente povoadas.

“Apesar de o declarado objetivo do Governo sírio ser de que visa derrotar os combatentes da oposição, o uso cínico que tem feito de táticas de “rendição ou morte à fome” envolve uma mistura devastadora de cercos e de bombardeamentos. Tal tem feito parte de um ataque sistemático, assim como generalizado, sobre os civis que configura crimes contra a humanidade”, explica o diretor de Investigação e Advocacy da Amnistia Internacional para a região do Médio Oriente e Norte de África, Philip Luther.

“Apesar de o declarado objetivo do Governo sírio ser de que visa derrotar os combatentes da oposição, o uso cínico que tem feito de táticas de “rendição ou morte à fome” envolve uma mistura devastadora de cercos e de bombardeamentos. Tal tem feito parte de um ataque sistemático, assim como generalizado, sobre os civis que configura crimes contra a humanidade.”

Philip Luther, diretor de Investigação e Advocacy da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África

Este perito da organização de direitos humanos insta “todos os Estados a cooperarem para pôr fim à mancha sombria na consciência mundial que a continuada impunidade por estes crimes representa”. “E não há forma mais simples de o fazerem do que prestando apoio e recursos ao Mecanismo Internacional, Imparcial e Independente recentemente criado pelas Nações Unidas para ajudar na investigação e formulação de acusações judiciais aos responsáveis”.

As pessoas submetidas a estas horríveis violações de direitos humanos não tiveram outra escolha que não a de abandonarem as suas casas em êxodos maciços. O resultado é que milhares de famílias vivem agora em campos improvisados com muito limitado acesso a ajuda e a produtos e serviços cruciais, assim como escassas oportunidades de sustento.

“Se o Governo sírio e os grupos armados da oposição como o Movimento Islâmico Ahrar al-Sham e o Hayat Tahrir al-Sham estão seriamente empenhados na reconciliação, têm de pôr imediatamente fim as estas práticas ilegais, levantar os cercos e acabar com os ataques contra os milhares de civis que continuam cercados por toda a Síria”, frisa Philip Luther.

O relatório We leave or we die assenta em entrevistas com 134 pessoas, feitas entre abril e setembro de 2017, incluindo residentes deslocados que passaram por cercos e ataques, trabalhadores de organizações e agências humanitárias e peritos, jornalistas e responsáveis das Nações Unidas. A Amnistia Internacional analisou também dezenas de vídeos e imagens de satélite para corroborar os relatos das testemunhas ouvidas. A organização de direitos humanos tentou obter comentários sobre as suas conclusões de investigação junto das autoridades da Síria e da Rússia, que não responderam, assim como do Movimento Islâmico Ahrar al-Sham, que respondeu.

A vida sob os cercos

Desde o início do conflito armado na Síria, que o Governo sírio tem imposto cercos sobre as áreas habitadas por civis, usando a fome como tática de guerra e bloqueando ou restringindo arbitrariamente o acesso a necessidades básicas, incluindo alimentos, água, medicamentos, eletricidade, combustíveis e comunicações. As autoridades sírias têm também impedido as organizações de ajuda humanitária de entrarem nas zonas cercadas.

Os efeitos têm sido devastadores, empurrando as populações para uma situação de ficarem à beira da fome e causando a morte às pessoas por razões que, de outra forma, podiam ser evitadas com a prestação dos tratamentos adequados.

Um médico que trabalhou na cidade de Daraya descreveu aos investigadores da Amnistia Internacional: “Quando nos chegavam casos de falhas renais, não havia nada que pudéssemos fazer, porque não tínhamos máquinas de diálise. Por isso víamos os doentes a morrer em frente aos nossos olhos e não lhes podíamos prestar nenhuma ajuda”.

“Quando nos chegavam casos de falhas renais, não havia nada que pudéssemos fazer, porque não tínhamos máquinas de diálise. Por isso víamos os doentes a morrer em frente aos nossos olhos e não lhes podíamos prestar nenhuma ajuda.”

Médico na cidade de Daraya

Mulheres que tiveram os partos sob cerco contaram à equipa da Amnistia Internacional como os recém-nascidos sofriam por elas terem pouco leite materno e não haver leite em pó para os bebés. Num testemunho similar ao de outras mulheres entrevistadas pela organização de direitos humanos, uma antiga residente de Daraya, de 30 anos e que teve um bebé em março de 2016, recordou que a filha nasceu pequena e fraca.

“Dava-lhe o peito a mamar, mas o meu leite não a saciava, não a alimentava suficientemente. Ela era muito frágil e não havia nada que eu pudesse fazer… Como é que alguém que acabou de ter um bebé e que está a amamentar consegue alimentar-se devidamente, a si mesma e ao bebé, apenas com sopa?”, lamentou.

O Governo sírio e os grupos armados da oposição restringiram e bloquearam o acesso de ajuda médica e humanitária necessária à sobrevivência das populações civis, especialmente a pessoas que não conseguem pagar os preços inflacionados dos produtos alimentares e dos medicamentos. Em consequência, os habitantes destas zonas têm tido que sobreviver com uma só refeição por dia.

Uma mulher com três filhos, que se tornou na única fonte de sustento também do neto, cujos pais morreram em dois ataques separados em 2015, em Alepo Oriental, testemunhou à Amnistia Internacional: “O cerco foi terrível para as pessoas que não tinham nenhuma forma de rendimento, como acontecia com a minha família. As organizações de ajuda humanitária não puderam continuar o seu trabalho devido aos ataques implacáveis, incluindo contra os seus armazéns… Era muito difícil conseguir até o mais básico para as crianças, como fraldas e leite. O preço dos vegetais era tão alto que eu não conseguia comprá-los. O cerco não me afetou tanto como afetou as crianças. O meu neto, de quase dois anos, ficou privado de leite para bebés e outros nutrientes necessários porque eu não o conseguia comprar e as organizações de ajuda humanitária não o tinham”.

“O cerco não me afetou tanto como afetou as crianças. O meu neto, de quase dois anos, ficou privado de leite para bebés e outros nutrientes necessários porque eu não o conseguia comprar e as organizações de ajuda humanitária não o tinham.”

Habitante de Alepo Oriental

O Governo sírio e milícias aliadas destruíram os canais locais de fornecimentos de alimentos, queimando os campos de cultura agrícola em Daraya e em Madaya. A análise de imagens de satélite feita pela Amnistia Internacional confirma um decréscimo maciço na agricultura ao longo dos últimos anos e uma clara “zona morta” em volta da cidade de Daraya.

“O Governo e as forças do Hezbollah queimaram os campos agrícolas, apenas como forma de punição, apesar de nem sequer lhes conseguirmos chegar”, recordou aos investigadores da Amnistia Internacional um antigo professor oriundo de Madaya.

As provas recolhidas indicam ainda que grupos armados da oposição, em particular o Movimento Islâmico Ahrar al-Sham e o Hayat Tahrir al-Sham, cercaram ilegalmente as vilas de Kefraya e de Foua, restringiram e confiscaram provimentos de ajuda humanitária e bombardearam campos agrícolas.

Ataques sem piedade contra os civis

Além do imenso sofrimento causado às populações por estas táticas de cerco, também os ataques deliberados contra os civis e estruturas civis provocaram uma miséria inimaginável.

Civis testemunharam à equipa de investigação da Amnistia Internacional que forças governamentais intensificaram especialmente os ataques pouco antes de as populações serem forçadas a partir das suas casas, com o intuito de apressar a rendição nessas zonas. O Governo sírio reforçou o ataque contra Al-Waer a 7 de fevereiro de 2017, pressionando à rendição que ocorreu um mês depois. E o único hospital existente em Daraya foi atacado e incendiou várias vezes, tornando-o inoperável pouco antes de a cidade ter ficado sem habitantes.

Para os residentes de Alepo Oriental, o maior sofrimento foi causado pela ofensiva brutal e calculada de ataques aéreos ilegais feitos pelas forças militares sírias e russas – na qual civis, casas e hospitais foram deliberadamente feitos alvos e bairros inteiros indiscriminadamente bombardeados em ataques aéreos e de artilharia, incluindo com recurso a munições de fragmentação (cluster bombs), que estão proibidas internacionalmente, assim como a bombas-barris (barrel bombs, barris de aço que explodem com munições e fragmentos de metal no interior) e a armamento incendiário.

“São precisos meses até se morrer de fome. Os ataques aéreos, esses, já são uma história diferente. Pode morrer-se por causa de um estilhaço de uma bomba numa fração de segundo. Ninguém tinha proteção para os ataques aéreos e de artilharia. Civis, rebeldes, edifícios, carros, pontes, árvores, jardins, etc. – tudo e todos foram alvo”, contou um habitante de Alepo aos investigadores da Amnistia Internacional.

“São precisos meses até se morrer de fome. Os ataques aéreos, esses, já são uma história diferente. Pode morrer-se por causa de um estilhaço de uma bomba numa fração de segundo. Ninguém tinha proteção para os ataques aéreos e de artilharia. Civis, rebeldes, edifícios, carros, pontes, árvores, jardins, etc. – tudo e todos foram alvo.”

Habitante de Alepo

O novo relatório We leave or we die, agora publicado, analisa dez ataques contra bairros civis de Alepo ocorridos entre julho e dezembro de 2016. A análise de imagens de satélite feita pela organização de direitos humanos demonstra que estes ataques foram feitos bem longe das linhas da frente de combate e sem a proximidade de quaisquer aparente objetivos militares, tendo destruído centenas de estruturas incluindo edifícios residenciais, um mercado e hospitais.

Grupos armados da oposição também mataram e feriram centenas de civis ao bombardearem indiscriminadamente as vilas de Kefraya e de Foua, com o uso de armamento explosivo com efeitos sobre vastas áreas. Tais ataques violam a lei internacional humanitária e, em muitos casos, configuram crimes de guerra.

“Tínhamos medo de mandar os nossos filhos à escola por causa dos bombardeamentos, e também dos atiradores furtivos que disparavam contra as crianças quando as viam vestidas com os uniformes azuis a caminho da escola. Arranjámos maneiras seguras de conseguir que os estudantes chegassem em segurança à escola mas continuou a ser perigoso porque os bombardeamentos eram imprevisíveis”, contou à equipa da Amnistia Internacional um antigo motorista de táxi de Kefraya.

Deslocações forçadas de populações

Em Daraya, em Al-Waer, em Alepo Oriental, em Kefraya e em Foua milhares de pessoas encurraladas pelos cercos militares acabaram por ser forçadas a abandonar as suas casas no contexto dos acordos de “reconciliação”.

Ao descrever à Amnistia Internacional os últimos dias sob cerco antes de ter sido alcançado um desses acordos, um advogado oriundo de Alepo reportou: “Os últimos dez dias antes da evacuação da cidade foram um pesadelo. A intensidade dos bombardeamentos foi um sinal claro de que o Governo queria que partíssemos… e os bombardeios naqueles últimos cinco meses foram tantos quantos os ataques aéreos e terrestres dos anteriores cinco anos… Isso foi suficiente para me fazer querer partir. De resto, como é que os civis poderiam ficar se não havia infraestruturas, nem hospitais, nem eletricidade nem água? O Governo tinha o objetivo de destruir tudo e deixar-nos sem nada pelo qual quiséssemos ficar para trás”.

Um homem que participou numa comissão de negociações em Daraya explicou aos investigadores da Amnistia Internacional como foi alcançado o acordo local de reconciliação: “O regime oferecia umas tréguas ou entendimento e continuava a exercer pressão militar para nos forçar a concordar. Era este o conceito. Após recebermos uma oferta dos intermediários, no dia seguinte havia uma escalada militar para instigar medo nos corações das pessoas e fazê-las implorar por uma solução”.

“O regime oferecia umas tréguas ou entendimento e continuava a exercer pressão militar para nos forçar a concordar. Era este o conceito. Após recebermos uma oferta dos intermediários, no dia seguinte havia uma escalada militar para instigar medo nos corações das pessoas e fazê-las implorar por uma solução.”

Participante nas negociações do acordo em Daraya

Ao longo do último ano e, especialmente, desde abril de 2017, parte da comunidade internacional, como a União Europeia e a Rússia, expressou vontade de ajudar nos esforços de reconstrução na Síria. Porém, não é claro que medidas o Governo sírio vai tomar para garantir que as pessoas deslocadas possam regressar em segurança e voluntariamente para recuperarem as suas casas.

“Com a comunidade internacional a reposicionar o seu enfoque nos esforços de reconstrução na Síria, a Amnistia Internacional insta todos os que podem exercer influência, em particular a Rússia e a China, a assegurarem que toda a assistência financeira às zonas afetadas pelas deslocações forçadas sustenta o direito das vítimas à restituição das suas habitações, terras e propriedades, assim como o direito de regresso voluntário em segurança e dignidade”, remata Philip Luther.

  • 50 milhões

    50 milhões

    Pela primeira vez desde a II Guerra Mundial, mais de 50 milhões de pessoas foram obrigadas a abandonar as suas casas. A maior parte devido a conflitos armados. (ACNUR, 2014)
  • 12,2 milhões

    12,2 milhões

    No final de 2014, 12,2 milhões de sírios – mais de metade da população do país – dependiam de ajuda humanitária. (UNOCHA)

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