11 Agosto 2021

 

  • Forças aliadas ao governo etíope submeteram centenas de mulheres e raparigas a violência sexual
  • Violação e escravatura sexual constituem crimes de guerra e podem equivaler a crimes contra a humanidade 

Mulheres e raparigas em Tigray foram alvo de violação, e outras formas de violência sexual, por forças combatentes aliadas ao governo etíope, referiu a Amnistia Internacional num novo relatório sobre o conflito em curso em Tigray.

O relatório, “Eu Não Sei Se Eles Se Aperceberam De Que Eu Era Uma Pessoa’: Violações e Outra Violência Sexual no Conflito de Tigray” (em inglês, I Don’t Know If They Realized I Was A Person’: Rape and Other Sexual Violence in the Conflict in Tigray) – revela como mulheres e raparigas foram sujeitas a violência sexual por membros da Força de Defesa Nacional da Etiópia, da Força de Defesa da Eritreia, da Força Especial de Polícia da região de Amhara (ASF, na sigla em inglês), e do Fano, um grupo da milícia Amhara.

Soldados e milícias sujeitaram mulheres e raparigas de Tigray a violação individual e em grupo, escravatura sexual, mutilação sexual e outras formas de tortura, recorrendo frequentemente a insultos étnicos e ameaças de morte.

“A gravidade e dimensão dos crimes sexuais cometidos são particularmente chocantes, equivalendo a crimes de guerra e, possivelmente, a crimes contra a humanidade”

Agnès Callamard, secretária-geral da Amnistia Internacional

“É evidente que a violação e a violência sexual foram usadas como arma de guerra para infligir lesões físicas e psicológicas duradouras às mulheres e raparigas de Tigray. Centenas foram submetidas a tratamentos brutais, com o objetivo de as humilhar e desumanizar”, declarou Agnès Callamard, secretária-geral da Amnistia Internacional.

“A gravidade e dimensão dos crimes sexuais cometidos são particularmente chocantes, equivalendo a crimes de guerra e, possivelmente, a crimes contra a humanidade. Fazem pouco dos princípios fundamentais da humanidade. Isto tem de parar”.

“O governo etíope deve tomar medidas imediatas para impedir que os membros das forças de segurança e milícias aliadas cometam violência sexual, e a União Africana não deve poupar esforços para assegurar que o conflito é agendado para discussão no Conselho de Paz e Segurança da União Africana.”

“A União Africana não deve poupar esforços para assegurar que o conflito é agendado para discussão no Conselho de Paz e Segurança da União Africana”

Agnès Callamard

As autoridades etíopes devem também conceder acesso à Comissão de Inquérito da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, e o secretário-geral das Nações Unidas deve urgentemente enviar a Tigray a sua equipa de peritos em “Estado de Direito e Violência Sexual em Conflitos”, conclui Agnès Callamard.

A Amnistia Internacional entrevistou 63 sobreviventes de violência sexual, assim como profissionais médicos. Vinte e oito sobreviventes identificaram forças eritreias como as únicas perpetradoras de violação.

 

Violência sexual generalizada

O padrão dos atos de violência sexual, com muitas sobreviventes a testemunharem também a violação de outras mulheres, indica que este tipo de violência foi generalizada e pretendia aterrorizar e humilhar as vítimas e o seu grupo étnico.

Doze sobreviventes revelaram que os soldados e milícias as violaram à frente de familiares, mesmo sendo crianças. Cinco estavam grávidas na altura.

Letay*, uma mulher de Baaker com 20 anos, disse à Amnistia Internacional que foi atacada em casa em novembro de 2020 por homens armados que falavam amárico e usavam uma mistura de uniformes militares e vestuário civil: “Entraram três homens na sala onde eu estava. Era noite e já estava escuro. Não gritei, eles gesticularam-me para não fazer barulho ou matar-me-iam. Violaram-me um após outro… Eu estava grávida de quatro meses. Não sei se eles se aperceberam de que eu estava grávida. Não sei sequer se eles se aperceberam de que eu era uma pessoa.”

“Violaram-me um após outro […] Não sei se eles se aperceberam de que eu estava grávida. Não sei sequer se eles se aperceberam de que eu era uma pessoa”

Relato de uma sobrevivente

Nigist*, de Humera, mãe de dois filhos e com 35 anos, partilhou que ela e quatro outras mulheres foram violadas por soldados eritreus em Sheraro, a 21 de novembro de 2020: “Três deles violaram-me à frente do meu filho. Estava connosco uma senhora grávida de oito meses, eles também a violaram… juntaram-se como um grupo de hienas que viu algo para comer. Violaram as mulheres e mataram os homens.”

As unidades de saúde em Tigray registaram 1.288 casos de violência de género entre fevereiro e abril de 2021. O Hospital de Adigrat registou 376 casos de violação desde o início do conflito até 9 de junho de 2021. No entanto, muitas sobreviventes referiram à Amnistia Internacional que não se deslocaram a unidades de saúde, sugerindo que estes números representam apenas uma pequena fração do total de violações no contexto do conflito.

As sobreviventes continuam a sofrer complicações de saúde físicas e mentais consideráveis. Muitas queixaram-se de traumas físicos como hemorragia contínua, dores nas costas, imobilidade e fístula. Algumas testaram positivo para o VIH após terem sido violadas. Privação de sono, ansiedade e sofrimento emocional são comuns entre sobreviventes e familiares que testemunharam a violência.

 

Escravatura sexual e humilhação intencional

Doze sobreviventes afirmaram ter sido mantidas em cativeiro durante dias e, em muitos casos, várias semanas, tendo sido repetidamente violadas, na sua maioria, por diversos homens. Algumas foram mantidas em campos militares, outras em casas ou terrenos nas zonas rurais.

Tseday*, com 17 anos, declarou à Amnistia Internacional que foi raptada por oito soldados eritreus em Zebangedena e mantida em cativeiro durante duas semanas: “Eles levaram-me para uma zona rural, num campo, onde estavam muitos soldados. Fui violada por oito. Normalmente, eles saíam para guardar a zona em dois turnos. Quando quatro saíam, os restantes ficavam e violavam-me.”

Blen*, de Bademe, com 21 anos, disse que foi raptada por soldados eritreus e etíopes a 5 de novembro de 2020, e retida por 40 dias com cerca de 30 outras mulheres: “Eles violaram-nos e fizeram-nos passar fome. Eram demasiados e violaram-nos por rondas. Éramos cerca de 30 mulheres raptadas… fomos todas violadas.”

Oito mulheres referiram também como foram violadas por soldados etíopes e eritreus e milícias associadas perto da fronteira com o Sudão, enquanto procuravam refúgio.

Duas sobreviventes tinham pregos grandes, cascalho, e outros tipos de estilhaços de metal e plástico, inseridos nas suas vaginas, que lhes provocaram lesões duradouras e, possivelmente, irreparáveis.

Os soldados e milícias procuraram repetidamente humilhar as suas vítimas, utilizando regularmente calúnias étnicas, insultos, ameaças e comentários degradantes. Várias sobreviventes entrevistadas pela Amnistia Internacional mencionaram que os violadores lhes tinham dito “Isto é o que mereces” e “És nojenta”.

 

Falta de apoio para sobreviventes

Sobreviventes e testemunhas partilharam à Amnistia Internacional que receberam pouco ou nenhum apoio psicossocial e médico desde que chegaram aos campos de deslocados internos na cidade de Shire, na Etiópia, ou aos campos de refugiados no Sudão.

As sobreviventes também sofreram com a destruição das instalações médicas e restrições impostas à circulação de pessoas e bens, que dificultou o acesso a cuidados médicos. Vítimas e respetivas famílias sublinharam ter falta de alimentos, abrigo e roupas, devido à escassa ajuda humanitária.

Os relatos de violência sexual foram maioritariamente ocultos do mundo exterior durante os dois primeiros meses do conflito, que teve início em novembro de 2020, em grande parte, por restrições de acesso impostas pelo governo etíope e pelo corte de comunicações.

“Além do sofrimento e trauma, as sobreviventes foram deixadas sem apoio adequado. Têm de poder aceder aos serviços de que necessitam e aos quais têm direito – incluindo tratamento médico, auxílio de subsistência, cuidados de saúde mental e apoio psicossocial – que são aspetos essenciais de uma resposta centrada nas sobreviventes”, relembra Agnès Callamard.

“Temos de garantir que todas as alegações de violência sexual são investigadas de forma eficaz, independente e imparcial, para assegurar que as sobreviventes recebem justiça, e deve ser estabelecido um programa efetivo de reparações. Todas as partes no conflito devem também salvaguardar o acesso humanitário irrestrito.”

“Temos de garantir que todas as alegações de violência sexual são investigadas de forma eficaz, independente e imparcial, para assegurar que as sobreviventes recebem justiça”

Agnès Callamard

Metodologia

Entre março e junho de 2021, a Amnistia Internacional entrevistou 63 sobreviventes de violação e outros atos de violência sexual – 15 presencialmente no Sudão e 48 remotamente, através de linhas telefónicas seguras. A organização entrevistou também profissionais médicos e trabalhadores humanitários envolvidos no tratamento ou assistência a sobreviventes nas cidades de Shire e Adigrat e em campos de refugiados no Sudão, sobre a escala da violência sexual e para corroborar informação sobre casos específicos.

Em maio, as autoridades etíopes anunciaram que três soldados etíopes tinham sido condenados e 25 outros indiciados por violação e outros atos de violência sexual. Contudo, não foi disponibilizada qualquer informação sobre estes julgamentos, ou sobre outras medidas para investigar e trazer os responsáveis à justiça.

A 26 de julho de 2021, a Amnistia Internacional escreveu ao Gabinete do primeiro-ministro etíope, ao Gabinete do procurador-geral federal e à ministra das Mulheres, Crianças e Jovens, ao ministro da Informação da Eritreia e a um conselheiro sénior do presidente Isaias Afwerki, solicitando uma resposta aos resultados da investigação preliminar da organização, mas não recebeu uma resposta à data da publicação.

Desde que os combates começaram na região a 4 de novembro de 2020, foram mortos milhares de civis, centenas de milhares de pessoas foram deslocadas internamente dentro de Tigray, e dezenas de milhares de refugiados fugiram para o Sudão.

 

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