5 Janeiro 2017

Milícias paramilitares que operam nominalmente como parte das forças armadas do Iraque no combate ao grupo armado autodenominado Estado Islâmico (EI) estão a usar armas dos arsenais militares iraquianos, fornecidas pelos Estados Unidos, países europeus, pela Rússia e pelo Irão, para cometerem crimes de guerra, ataques de vingança e outras atrocidades, documenta a Amnistia Internacional em novo relatório.

 

 

  • milícias aliadas às tropas governamentais iraquianas têm acesso a armas fornecidas por pelo menos 16 países

  • transferências recentes de armamento têm alimentado desaparecimentos forçados, raptos, tortura, execuções sumárias e a destruição deliberada de propriedade civil

  • o Iraque é o sexto maior importador mundial de armamento pesado

Investigação feita no terreno e a análise detalhada de perícia a provas fotográficas e de vídeo, desde junho de 2014, demonstram que estas milícias paramilitares têm vindo a beneficiar de fornecimentos de armas fabricadas em pelo menos 16 países e nos quais se incluem tanques e artilharia pesada assim como uma grane variedade de outras armas de mais baixo calibre. Todos estes dados são apresentados no relatório “Iraq: Turning a blind eye: The arming of the Popular Mobilization Units” (Iraque: Fechar os olhos ao armamento das Unidades de Mobilização Popular), publicado esta quinta-feira, 5 de janeiro.

As milícias, predominantemente xiitas, têm usado essas armas para levar a cabo desaparecimentos forçados e raptos de milhares de pessoas – sobretudo homens e rapazes sunitas – e para torturar e fazer execuções extrajudiciais, assim como para destruir propriedades de forma indiscriminada.

“Os fornecedores internacionais de armamento, incluindo os Estados Unidos, países europeus, Rússia e Irão, têm de acordar para o facto de que todas as transferências de armas para o Iraque comportam o risco muito real de irem parar às mãos de grupos de milícias com longos historiais de violações de direitos humanos”, frisa o investigador da Amnistia Internacional Patrick Wilcken, perito em Controlo de Armas e Direitos Humanos. “Qualquer país que venda armas ao Iraque tem de mostrar que tem medidas rígidas a funcionar para garantir que esse armamento não será usado por milícias paramilitares para cometerem flagrantes violações de direitos. Sem isso não deve ocorrer nenhuma transferência [de armas]”, sustenta ainda.

As Unidades de Mobilização Popular (UMP) – compostas por cerca de 40 a 50 milícias diferentes – foram criadas em meados de 2014 para ajudar no combate ao EI no Iraque. Em 2016 foram formalmente integradas nas forças armadas iraquianas, mas desde há muito tempo que gozam do apoio do Governo do país.

Este relatório centra-se em quatro milícias principais que a Amnistia Internacional documentou estarem a cometer muito graves violações de direitos humanos: as Munathamat Badr (também conhecidas como Brigadas de Badr ou, mais recentemente, Organização de Badr), a Asaib Ahl-Haq (Liga dos Virtuosos), as Kataib Hezbollah (Brigadas Hezbollah) e as Saraya al-Salam (Brigadas da Paz).

A investigação da Amnistia Internacional demonstra que as milícias UMP têm crescido em poder e em influência desde 2014. Estes grupos recebem armas e salários das autoridades iraquianas, e cada vez mais participam em combates ou integram as forças mobilizadas em postos de controlo junto com as tropas do país. Sob este manto de aprovação oficial, algumas milícias das UMP têm, conforme documentado, levado a cabo ataques de vingança contra árabes sunitas e ninguém as responsabiliza por esses atos.

“As autoridades iraquianas têm ajudado a armar e equipar as UMP e pagam-lhes salários – têm de parar de fechar os olhos ao padrão sistemático de graves violações de direitos humanos e de crimes de guerra”, insta Patrick Wilcken.

O investigador da Amnistia Internacional reitera que “qualquer membro de qualquer milícia que combata lado a lado com tropas iraquianas tem de ser rigorosa e minuciosamente escrutinado”. “E aqueles que são suspeitos de cometerem graves violações têm de ser afastados das suas fileiras enquanto decorrem investigações e processos judiciais. Além disso, as milícias indisciplinadas ou que não são de alguma forma responsabilizadas pela sua conduta têm de ser verdadeiramente postas sob o controlo e disciplina das forças armadas ou totalmente desarmadas e desmobilizadas”.

As autoridades iraquianas enfrentam terríveis ameaças de segurança por parte do EI, que continua a cometer atrocidades em áreas sob as quais mantém o controlo territorial e a atacar os civis em outras regiões do Iraque. Mas quaisquer medidas para dar resposta a estas ameaças têm de respeitar os direitos humanos e a lei humanitária.

A Amnistia Internacional exorta o Iraque a integrar imediatamente o Tratado sobre o Comércio de Armas Convencionais (TCA, ATT na sigla em inglês), que estipula regras estritas para pôr fim às transferências de armas ou desvios de armamento que possam alimentar atrocidades.

Violações sistemáticas pelas milícias UMP

As milícias UMP, predominantemente xiitas, têm usado o seu arsenal de armas para concretizar ou facilitar uma série de violações, aparentemente como vinganças por ataques cometidos pelo EI. Aqui se incluem desaparecimentos forçados, execuções extrajudiciais e outras mortes ilegais, assim como tortura de milhares de homens e rapazes árabes sunitas.

Um homem oriundo de Muqdadiya reportou à Amnistia Internacional que o irmão Amer, de 22 anos, é um dos cerca de cem homens e rapazes raptados das suas casas em janeiro de 2016 quando milícias UMP atacaram violentamente a cidade em retaliação a um ataque suicida contra um café de um xiita. Combatentes das UMP incendiaram e destruíram mesquitas, lojas e outras propriedades de sunitas.

“Muitos sunitas foram apanhados nas ruas ou levados à força das suas casas e mortos imediatamente. Na primeira semana desta vaga de violência, combatentes das milícias andaram de carro pela cidade chamando por altifalantes os homens sunitas a saírem de casa. A 13 de janeiro [de 2016] mais de cem homens foram levados e nunca mais ninguém os viu”, contou esta testemunha aos investigadores da Amnistia Internacional.

Homens e rapazes sunitas têm sido frequentemente sujeitos a tortura e a outros maus-tratos em postos de controlo e em centros de detenção sob a tutela das milícias UMP.

Um estudante de 20 anos descreveu à Amnistia Internacional que, num desses casos, a 26 de julho de 2016, estava a fugir dos combates em Shargat quando foi mandado parar no posto de controlo de Asmida, na região de Salah al-Din. As forças nesse posto de controlo – uma mistura de homens vestidos à civil e outros com uniformes militares, incluindo alguns com insígnias das UMP – vendaram-no de imediato e levaram-no.

“Passei sete semanas a ser torturado; queriam que confessasse ser dos Daesh [o acrónimo árabe, usado localmente, em referência ao Estado Islâmico]. Estive detido com mais umas 30 pessoas numa escola… Todos fomos espancados com barras de metal e cabos. Também usaram choques elétricos… Estive vendado a maior parte do tempo… Ao fim de 22 dias, transferiram-nos para uma prisão em Bagdad. Havia lá mais pessoas, algumas detidas há mais de seis meses, e as famílias não sabiam nada sobre o seu paradeiro. Voltei a ser torturado e interrogado uma vez com os olhos vendados”. Este estudante acabou por ser liberto sem que tenha sido jamais acusado formalmente de nada.

O destino e paradeiro de milhares de outros homens e rapazes sunitas que foram capturados pelas milícias UMP continuam desconhecidos. Centenas de rapazes e de homens sunitas foram raptados no posto de controlo de Al-Razzaza pelas Brigadas Hezbollah desde outubro de 2014.

“Em vez de saudarem efusivamente as milícias como heróis na luta para pôr fim às atrocidades do EI, e, assim, encorajando-as, as autoridades iraquianas têm de deixar de fechar os olhos aos abusos sistemáticos que estão a alimentar a tensão intersectária”, critica Patrick Wilcken.

O investigador da Amnistia Internacional sublinha que “as mudanças cosméticas de reconhecimento das milícias como parte integrante das forças armadas não chegam – as autoridades iraquianas têm de refrear urgentemente as milícias paramilitares”. “E os parceiros internacionais do Iraque, incluindo os que lhe fornecem armas, têm de fazer uso da sua influência para exercer pressão nesse sentido”.

Armar as UMP

As UMP usam mais de cem tipos de armas originalmente fabricadas em pelo menos 16 países, incluindo armamento pesado como tanques e artilharia, além de uma panóplia de outras armas como Kalashnikov, espingardas automáticas M-16, metralhadoras, revólveres e espingardas de atiradores furtivos.

Desde que foram criadas em meados de 2014, as UMP têm vindo cada vez mais a ser abastecidas diretamente pelas autoridades iraquianas, a partir dos arsenais militares do país. E aqui se inclui uma quantidade muito significativa de equipamento de fabrico recente de acordo com os padrões da NATO, sobretudo oriundo dos Estados Unidos, a par de equipamento proveniente da Rússia e de países da Europa de Leste.

Mais de 20 países forneceram armas e munições ao Iraque ao longo dos últimos cinco anos: à cabeça estão os Estados Unidos, seguidos pela Rússia. De acordo com o Stockholm International Peace Research Institute, as exportações de armamento para o Iraque aumentaram em 83% entre os períodos de 2006-2010 e 2011-2015. Em 2015, o Iraque era o sexto maior importador de armas pesadas do mundo inteiro.

O sistema de rastreamento das armas das forças armadas iraquianas, frequentemente mal-organizado e nada fiável, torna extremamente difícil registar e controlar para onde vai o armamento assim que entra em território do Iraque. Isto, a par da natureza fluida do conflito no país, significa que as armas são amiúde capturadas ou desviadas para grupos armados ou para milícias atualmente ativas tanto no Iraque como na Síria.

“As autoridades iraquianas têm de adotar medidas rígidas para garantir que os arsenais de armas estão seguros e são controlados”, defende Patrick Wilcken.

O papel do Irão

A amplitude e a diversidade dos fornecedores de armas ao Iraque têm resultado em consequências indesejadas. Por exemplo: veículos armados fabricados nos Estados Unidos e que seguramente se destinavam às forças armadas iraquianas acabaram nas mãos das Brigadas Hezbollah, uma milícia com ligações ao Irão que o Departamento de Estado norte-americano desde há muito classifica como “organização estrangeira terrorista”.

O Irão permanece um importante patrocinador militar das milícias UMP, particularmente daquelas que têm laços próximos às forças armadas e a líderes religiosos iranianos, como é o caso da Organização de Badr, da Liga dos Virtuosos e das Brigadas Hezbollah – todas acusadas de cometerem graves violações de direitos humanos. E estes contínuos fornecimentos de armas constituem uma violação de uma resolução das Nações Unidas, de 2015, que baniu as exportações de armas feitas pelo Irão sem a aprovação prévia do Conselho de Segurança.

“O fornecimento iraniano de armas diretamente às UMP põe em risco que o Irão se torne cúmplice de crimes de guerra. O país não deve permitir nenhumas transferências de armamento para qualquer grupo de milícias UMP enquanto estas estiverem fora da alçada de comando efetivo e do controlo das forças armadas iraquianas e enquanto continuarem a não ser responsabilizadas pelos abusos que cometem”, remata o investigador da Amnistia Internacional perito em Controlo de Armas e Direitos Humanos.

Esta investigação é complementada pelo relatório “Taking Stock: The arming of Islamic State” (Inventário: o armamento do Estado Islâmico), publicado pela Amnistia Internacional em dezembro de 2015, que detalha a forma como décadas de fornecimentos não regulados de armas para o Iraque e controlos lassos no terreno acabaram por pôr nas mãos do EI um arsenal que o grupo armado tem usado para cometer crimes de guerra e crimes contra a humanidade a uma escala maciça no Iraque e na Síria.

A 26 de setembro passado, a Amnistia Internacional pediu informação ao Ministério da Defesa iraquiano sobre os fornecimentos de armas e assistência militar prestados pelas autoridades às milícias UMP, assim como sobre os mecanismos de responsabilização existentes. Este pedido não recebeu resposta.

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