15 Novembro 2017

Grandes empresas de produtos eletrónicos e de veículos elétricos não estão ainda a fazer o necessário para impedir que abusos de direitos humanos ocorram nas suas cadeias de fornecimento de cobalto, passados já quase dois anos desde que uma investigação da Amnistia Internacional expôs como as baterias usadas por essas gigantes mundiais podem estar ligadas a trabalho infantil na República Democrática do Congo (RDC), revela esta quarta-feira, 15 de novembro, a organização de direitos humanos.

  • Exame a empresas de produtos eletrónicos e de carros mostra que existem enormes “pontos cegos” nas cadeias de fornecimentos
  • A Apple é a empresa que lidera no ranking de responsabilidade nos seus abastecimentos de cobalto – mas os padrões são baixos
  • Microsoft, Lenovo e Renault são as que fizeram menos progressos

O novo relatório, agora publicado pela Amnistia Internacional e intitulado Time to Recharge: Corporate Action and Inaction to Tackle Abuses in the Cobalt Supply Chain (Hora de recarregar: Ação e Inação empresarial para confrontar abusos na cadeia de fornecimentos de cobalto), classifica gigantes do sector – incluindo a Apple, a Samsung Electronics, a Dell, a Microsoft, a BMW, a Renault e a Tesla – e a analisa o quanto estas empresas fizeram para melhorar as suas práticas de abastecimento de cobalto desde janeiro de 2016, quando a organização de direitos humanos publicou a investigação pioneira “This is what we die for: Human rights abuses in the Democratic Republic of the Congo power the global trade in cobalt” (Morremos para isto: abusos de direitos humanos na República Democrática do Congo alimentam o comércio mundial de cobalto).

Este novo documento revela que apesar de algumas das empresas avaliadas terem feito progressos, outras continuam a fracassar na tomada até das medidas mais básicas, como investigarem as ligações nos fornecimentos feitos a partir das minas de cobalto na RDC.

“As nossas investigações iniciais descobriram que cobalto minerado por crianças e adultos na RDC, em condições horríveis, está a entrar nas cadeias de fornecimentos de algumas das maiores marcas mundiais. Quando abordámos estas empresas, alarmou-nos perceber que algumas não faziam sequer as perguntas mais básicas sobre a origem do cobalto que usam nos seus produtos”, recorda a chefe do departamento de Empresas e Direitos Humanos da Amnistia Internacional, Seema Joshi.

A perita frisa que “ao fim de quase dois anos, algumas das mais ricas e poderosas empresas do mundo continuam a dar desculpas por não investigarem as suas cadeias de fornecimentos”. “E até aquelas que já começaram a investigá-lo, não revelam os riscos e abusos de direitos humanos que detetaram. Se as empresas estão sem saber de onde provém o cobalto que usam, também o estão os seus clientes”, critica.

“Este é um momento de mudança crucial. Com a procura de baterias recarregáveis a aumentar, as empresas têm a responsabilidade de provar que não estão a lucrar com a miséria de mineiros a trabalharem em condições terríveis na República Democrática do Congo. As soluções da energia do futuro não podem ser construídas em cima de abusos de direitos humanos”, prossegue Seema Joshi.

“As soluções da energia do futuro não podem ser construídas em cima de abusos de direitos humanos.”

Seema Joshi, chefe do departamento de Empresas e Direitos Humanos da Amnistia Internacional

Cadeias de fornecimentos turvas

Mais de metade do cobalto produzido no mundo inteiro é oriundo da RDC e 20% dele minerado à mão. Este minério é um componente-chave das baterias de iões de lítio.

A Amnistia Internacional documentou casos de crianças e de adultos a minerar cobalto em túneis apertados cavados à mão, em risco de sofrerem acidentes fatais e de desenvolverem doenças pulmonares graves. A organização de direitos humanos rastreou o cobalto oriundo destas minas até à empresa chinesa de processamento de minérios Huayou Cobalt, cujos produtos acabam depois a integrar baterias que são usadas para dar energia a produtos eletrónicos e a carros elétricos.

Time to Recharge avalia o progresso que a Huayou Cobalt e outras 28 empresas potencialmente ligadas ao cobalto ali processado, ou que estão provavelmente a comprar aquele minério com origem na RDC, fizeram desde que o risco de recurso a trabalho infantil lhes foi revelado em janeiro de 2016.

A Amnistia Internacional analisou as práticas destas empresas com base em cinco critérios que refletem os padrões internacionais, incluindo o requisito legal de que as empresas levem a cabo as “diligências necessárias e adequadas” (due diligence) na monitorização das suas cadeias de fornecimentos, e ainda o requisito de que sejam transparentes sobre os riscos de direitos humanos associados às suas atividades. A organização de direitos humanos classificou as empresas como: “nenhuma ação [tomada]”, “mínimo”, “moderado” e “adequado” em cada um dos cinco critérios avaliados.

Nenhuma das empresas identificadas no relatório está a tomar as medidas adequadas para cumprir os padrões internacionais. Tal verifica-se apesar de todas as 29 empresas analisadas saberem que riscos e abusos de direitos humanos estão intrinsecamente ligados à mineração de cobalto na RDC.

Apple lidera no caminho, Microsoft fica muito para trás

No início de 2017, a Apple tornou-se na primeira empresa a publicar os nomes dos seus fornecedores de cobalto e a investigação feita pela Amnistia Internacional demonstra que esta é a empresa que está na liderança no que toca à responsabilidade sobre os abastecimentos de cobalto. Desde 2016 que a Apple tem trabalhado ativamente com a Huayou Cobalt para identificar e solucionar os casos de trabalho infantil na sua cadeia de fornecimentos.

A Dell e a HP têm mostrados sinais com potencial. Começaram ambas a investigar as suas ligações de abastecimento junto da Huayou Cobalt e, também, possuem algumas das mais fortes políticas empresariais para detetar a ocorrência de riscos e abusos de direitos humanos nas suas cadeias de fornecimento de cobalto.

Mas outras grandes marcas de produtos eletrónicos têm apenas, e de forma muito alarmante, feito muito diminuto progresso.

A Microsoft, por exemplo, está entre as 26 empresas que não forneceram detalhes sobre os seus fornecedores, como é o caso das empresas que extraem e refinam o cobalto usado nos seus produtos. Isto significa que a Microsoft não está a cumprir nem sequer os mais básicos padrões internacionais.

Também a Lenovo teve uma má classificação, tendo tomado apenas medidas mínimas para identificar riscos de direitos humanos e para investigar as suas ligações à Huayou Cobalt e à República Democrática do Congo.

Na generalidade das empresas analisadas há falta de transparência; as empresas não revelam as suas próprias avaliações ao potencial de ocorrência de abusos de direitos humanos nas suas cadeias de fornecimentos ou às práticas de due diligence dos seus fornecedores.

Por exemplo, aa Apple e a Samsung SDI identificaram as empresas que fazem a extração do cobalto, mas não tornaram público a avaliação que fizeram sobre os riscos associados a essas empresas extratoras do minério. E desta forma é impossível saber se estão ou não a cumprir as suas responsabilidades de direitos humanos.

O lado sombrio da tecnologia verde

A investigação anteriormente feita pela Amnistia Internacional expôs um risco muito significativo de o cobalto minerado por crianças na República Democrática do Congo acabar por integrar baterias de carros elétricos.

Este novo relatório aos progressos feitos desde então mostra que as empresas de veículos elétricos estão muito para trás dos outros sectores, no que toca a manter as suas baterias “limpas” de abusos de direitos humanos.

A Renault e a Daimler tiveram avaliações particularmente negativas, tendo fracassado em preencher até os padrões internacionais mínimos de divulgação e de due diligence, deixando enormes “pontos cegos” nas suas cadeias de fornecimentos.

A BMW foi a empresa com melhor classificação de entre os fabricantes de veículos elétricos que foram analisados pela Amnistia Internacional. Fez algumas melhorias nas suas políticas e práticas referentes à cadeia de fornecimentos de cobalto, mas não revelou quais são as empresas extratoras e que refinam o minério que usam. A BMW também não mostrou nenhumas intenções em tornar públicas quaisquer avaliações feitas às práticas de due diligence em matéria de direitos humanos das extratoras de cobalto com que trabalha.

“O cobalto tem um papel crucial nas soluções de energia sustentável. É um componente-chave das baterias que alimentam carros elétricos e pode ainda desempenhar um papel significativo no desenvolvimento das tecnologias verdes como os parques eólicos e a energia solar. Mas a procura pelo cobalto pode estar também a dar azo a abusos de direitos humanos”, explica o consultor de Estratégia sobre Empresas e Direitos Humanos da Amnistia Internacional, Joshua Rosenzweig.

O perito reitera que “com a procura por carros elétricos a crescer, é mais importante do que nunca que as empresas que os fabricam comecem a agir de forma limpa”. “Os governos também têm um papel a desempenhar aqui e devem tomar medidas significativas sobre as cadeias de fornecimentos éticas – o que deve ser uma prioridade no que toca a concretizar políticas verdes”, avança ainda.

“Com a procura por carros elétricos a crescer, é mais importante do que nunca que as empresas que os fabricam comecem a agir de forma limpa.”

Joshua Rosenzweig, consultor de Estratégia sobre Empresas e Direitos Humanos da Amnistia Internacional

Na sequência da atenção internacional gerada pelo relatório emitido em 2016 pela Amnistia Internacional, o Governo da RDC criou uma comissão para analisar e solucionar o trabalho infantil no sector da mineração e redigiu uma nova estratégia nacional que visa retirar todas as crianças das minas artesanais até 2025. Apesar de ser ainda muito cedo para avaliar o impacto destas medidas, a estratégia atual não tem agendas temporais concretas de execução, nem responsabilidades claramente atribuídas, nem um plano operacional para a sua concretização.

A Huayou Cobalt, a ligação-chave entre a RDC e muitas das empresas avaliadas, fez alguns progressos desde a publicação do relatório da Amnistia Internacional em 2016, e tornou-se mais transparente. Porém, permanecem lacunas, o que faz com que seja difícil avaliar a qualidade e eficácia das suas práticas de due diligence.

O que se segue para as empresas?

As empresas têm uma responsabilidade individual em identificar, prevenir, analisar e prestar contas por abusos de direitos humanos ocorridos nas suas cadeias de fornecimentos de cobalto.

A divulgação pública das análises aos riscos de direitos humanos constitui um passo essencial que nenhuma das empresas avaliadas neste relatório está a dar. As empresas têm de reconhecer abusos de direitos humanos existentes nas suas cadeias de fornecimentos se os detetam.

Uma empresa que tenha contribuído para ou beneficiado de trabalho infantil ou de adultos a trabalharem em condições perigosas tem a responsabilidade de ressarcir os danos causados. Isto significa também trabalhar com outras empresas e com o Governo para retirar as crianças das piores formas de trabalho infantil e apoiar a sua reintegração na escola, assim como dar resposta às necessidades de saúde e psicológicas.

Todas as 29 empresas contactadas na investigação

A Amnistia Internacional contactou todas as 29 empresas analisadas neste relatório como parte integrante do processo de investigação e deu a cada uma delas a oportunidade de reagirem às descobertas feitas.

Estas empresas discordaram da classificação que lhes foi dada pela organização de direitos humanos em pelo menos um dos cinco critérios: a Apple, a BMW, a Dell, a Fiat-Chrysler, a General Motors, a HP, a Hunan Shanshan, a Microsoft, a Sony, a Tesla e a Tianjin Lishen.

As perguntas feitas pela Amnistia Internacional a estas empresas refletem o enquadramento de cinco passos de due diligence definido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico no Guia de Due Diligence para as Cadeias de Fornecimentos Responsáveis de Minérios oriundos de Áreas Afetadas por Conflitos ou de Alto Risco.

A organização de direitos humanos inquiriu:

  • A empresa tomou medidas para mitigar os riscos de direitos humanos ou remediar danos causados relacionados com a sua cadeia de fornecimento de cobalto?
  • A empresa divulgou informação sobre os riscos e abusos de direitos humanos na sua cadeia de fornecimentos?
  • A empresa tomou medidas para identificar “pontos de bloqueio” e identificar riscos e abusos de direitos humanos?
  • A empresa possui políticas e sistemas robustos para detetar riscos e abusos de direitos humanos na sua cadeia de fornecimento de cobalto?
  • A empresa investigou as suas ligações de fornecimentos à República Democrática do Congo e à Huayou Cobalt?
  • 51%

    Das 100 maiores economias no mundo, 51 são empresas; apenas 49 são países.
  • 20 mil pessoas

    Mais de 20 000 pessoas morreram devido a uma fuga de gás de uma fábrica de produtos químicos da Union Carbide em Bhopal, Índia, em 1984.
  • 25 anos

    Foram precisos 25 anos para que um tribunal indiano condenasse os funcionários da Union Carbide India Ltd. pela sua responsabilidade no desastre de Bhopal.
  • 100 mil pessoas

    100 000 pessoas procuram tratamento médico para uma série de problemas de saúde depois de resíduos tóxicos terem sido despejados em redor da cidade de Abidjan, na Costa do Marfim, em agosto de 2006. Os resíduos foram criados pela multinacional exportadora de petróleo Trafigura.

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