24 Agosto 2015

 

O Tratado sobre o Comércio de Armas Convencionais, criado para pôr rédeas no debilmente regulado negócio de armamento global que alimenta crimes de guerra e graves abusos e violações de direitos humanos, enfrenta o seu primeiro grande teste esta semana na conferência de Estados-parte do histórico acordo, no México. Para a Amnistia Internacional este é um momento decisivo para perceber o verdadeiro compromisso dos países em refrear o comércio de armas.

A primeira Conferência de Estados-parte do Tratado sobre o Comércio de Armas Convencionais (TCA, ATT na sigla em inglês), que decorre na cidade mexicana de Cancún de 24 a 27 de agosto, conta com a participação de dezenas de países, incluindo alguns que não assinaram nem ratificaram o acordo desde que o mesmo foi adotado em abril de 2013 na Assembleia Geral das Nações Unidas. A Amnistia Internacional – que fez campanha e pressão institucional ao mais alto nível pela aprovação do tratado, ao lado de várias outras organizações não-governamentais (ONG) durante mais de duas décadas – vai estar presente com uma delegação na conferência do México.

“Cancún é o primeiro grande teste para o Tratado sobre o Comércio de Armas Convencionais, e os países participantes vão ter aqui uma oportunidade muito importante para fazerem história, honrando, nas decisões que agora tomarem, os objetivos do acordo em salvar vidas”, sublinha logo à partida o diretor do programa de Segurança, Polícias e Forças Armadas da Amnistia Internacional, Marek Marczynski. “Vamos estar presentes para garantir que as conversações não se irão atolar em burocracias, nem perder de vista os princípios orientadores do TCA: uma regulação efetiva e transparente [dos negócios de armas] que visa acabar com o sofrimento humano provocado pelos fornecimentos irresponsáveis de armamento convencional”, explica o perito da organização de direitos humanos.

São três as áreas principais em que a Amnistia Internacional vai exercer pressão nesta conferência:

  • a transparência em todos os aspetos do TCA, incluindo a apresentação de dados abrangentes pelos países sobre a escala e tipificação das importações e exportações de armas;

  • garantir que é permitida uma participação significativa por parte das ONG em todas as reuniões e processos pertinentes ao tratado;

  • a criação e operacionalidade de mecanismos que assegurem que os países honram as suas obrigações no âmbito do TCA, impedindo fornecimentos de armas a quem quer que seja que represente um risco de as mesmas serem usadas para cometer graves violações da lei internacional, incluindo crimes de guerra e outras violações e abusos de direitos humanos.

Transparência é o elemento-chave

A transparência é um dos principais objetivos do TCA, uma vez que o negócio global de armamento tem – até à data – estado envolto em secretismo. A transparência é também um meio crucial para demonstrar que os Estados-parte estão a concretizar e a respeitar as medidas consagradas no acordo, além de ajudar a avaliar se e como é que o TCA está a ser aplicado na prática.

No período que antecedeu a conferência do México, realizaram-se várias reuniões preparatórias, cujas discussões se centraram na continuada participação de grupos e organizações da sociedade civil, assim como sobre quanta informação sobre as importações e exportações de armas é que os países ficam obrigados a reportar e a tornar publicamente disponível.

Alguns países estão a tentar limitar o papel da sociedade civil, restringindo de forma muito significativa a participação destas organizações em futuras conferências do TCA e aumentando o número de decisões fundamentais a serem tomadas à porta fechada e em sessões secretas.

A Amnistia Internacional está também particularmente alarmada por os países terem tentado reduzir ao mínimo as obrigações decorrentes do TCA no que se refere à prestação de informação sobre os negócios de armas. Isto significa que podem ficar vinculados a reportar apenas o valor financeiro anual do comércio de armas, sem terem de fornecer detalhes cruciais como o volume dos fornecimentos, o número de armas e ainda as categorias e tipificação das armas ligeiras e de pequeno calibre negociadas.

Os pormenores sobre o destino dos fornecimentos das armas e sobre o uso que lhes será dado podem também ficar em segredo – sendo esta uma informação absolutamente fundamental para tentar evitar o desvio de armamento para mercados ilegais e utilizadores finais que não estão autorizados a receber tal armamento.

“Banir a sociedade civil de algumas das mais importantes discussões e não apresentar publicamente relatórios anuais sobre as importações e exportações de armas vai traduzir-se no ‘negócio do costume’: os fornecimentos de armamento vão continuar envoltos em secretismo, minando o propósito do TCA. E não podemos permitir que isto aconteça”, insta Marek Marczynski.

O diretor do programa de Segurança, Polícias e Forças Armadas da Amnistia Internacional recorda que “muito foi conseguido graças ao trabalho da sociedade civil junto dos Estados para obter regras globais e juridicamente vinculativas no comércio internacional de armas”. “Queremos continuar a desempenhar um papel construtivo conforme avançamos para a fase de concretização e operacionalidade do tratado. E os países têm de adotar obrigações de prestação de informação abrangente e transparente que forneçam uma imagem real e completa sobre o comércio global de armas”, reitera.

Negócio global de armas alimenta atrocidades e violações de direitos humanos

Desde o início da década de 1990, a Amnistia Internacional tem feito campanha e exercido pressão institucional junto com ONG parceiras para obter regras robustas, globais e juridicamente vinculativas para os negócios de armamento, com o propósito de refrear os fluxos de armas convencionais e munições que alimentam atrocidades e abusos de direitos humanos. Mais de um milhão de pessoas de todo o mundo aderiram a este esforço.

A 2 de abril de 2013, 155 países votaram favoravelmente na Assembleia Geral das Nações Unidas a adoção do Tratado sobre o Comércio de Armas Convencionais. O histórico acordo entrou em vigor como lei internacional vinculativa a 24 de dezembro de 2014 para todos os Estados-parte.

Cinco dos dez maiores exportadores mundiais de armas – a França, a Alemanha, Itália, Espanha e Reino Unido – estão entre os 72 países que já ratificaram o TCA. Os Estados Unidos, de longe o maior produtor e exportador de armamento do mundo, é um dos 58 países que assinaram mas ainda não ratificaram o tratado. Outros grandes produtores de armas como a China, o Canadá e a Rússia têm resistido a assinar e ratificar o TCA.

O tratado consagra uma série de regras robustas que visam refrear os fluxos de armamento para países onde se sabe que este será usado para cometer genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. E os governos dos países que são parte do tratado ficam obrigados a realizarem avaliações objetivas para evitar o risco predominante de que um fornecimento de armas venha a ser utilizado para cometer graves violações da lei internacional de direitos humanos ou da legislação internacional humanitária.

Os negócios internacionais de armamento estão envoltos em segredo, mas estima-se que o valor do comércio global de armas esteja próximo dos 100 mil milhões de dólares por ano.

A Amnistia Internacional tem documentado e exposto de forma ativa e perseverante os fornecimentos irresponsáveis de armas que contribuem ou facilitam a ocorrência de graves abusos de direitos humanos.

E aqui incluem-se as armas e munições que são maioritariamente produzidas nos países da Federação Russa (ex-União Soviética) e ainda Bielorrússia e Ucrânia, além da China, e transferidas para o Sudão, onde, subsequentemente, são utilizadas por todas as partes envolvidas nos conflitos armados no Cordofão do Sul e no Darfur, assim como no vizinho Sudão do Sul. A situação no Cordofão do Sul, em particular, foi documentada recentemente pela Amnistia Internacional numa investigação feita a uma série de ataques indiscriminados contra zonas civis naquela província do Sudão, incluindo hospitais e escolas – e cuja natureza e escala os enquadram como crimes de guerra e possíveis crimes contra a humanidade.

No Iraque e na Síria, a proliferação desenfreada das armas tem envolvido fornecimentos de armas que são desviadas para o grupo jihadista autodenominado Estado Islâmico e outros grupos armados. Este armamento está a ser usado para facilitar a ocorrência de execuções sumárias, desaparecimentos forçados, violação e tortura, além de outras violações graves de direitos humanos.

A disseminação de armas e de munições – na maioria armas ligeiras e de pequeno calibre, veículos armados e artilharia que datam das décadas de 1970 e de 1980 – tem provocado um impacto sem precedentes nas populações civis. Tem criado fluxos maciços de deslocados internos e de refugiados, impedido o acesso da assistência humanitária às populações afetadas e exacerbado a violência com base no género.

 

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