9 Junho 2022

 

  • “A habitação é um direito humano, não um luxo, e precisa de ser protegida pela lei” – Sacha Deshmukh
  • Quase um em cada três adultos no Reino Unido (RU) está preocupado com o facto de acabar a fazer couchsurfing ou de ficar em alojamentos temporários nos próximos 5 anos, em virtude dos custos da habitação
  • Restrições à imigração significam que as pessoas mais vulneráveis são as menos propensas a serem ajudadas

O acesso a habitação condigna e comportável deve ser tornado um direito humano devidamente legislado para garantir que o governo britânico se responsabilize por mobilizar esforços para enfrentar a crise das pessoas em situação de sem-abrigo no Reino Unido, cujo agravamento se prevê com a subida do custo de vida, anunciou a secção britânica da Amnistia Internacional.

 ‘Uma Pista de Obstáculos: Assistência a pessoas em situação de sem-abrigo e o direito à habitação em Inglaterra’, é um relatório com os todos os detalhes da primeira pesquisa sobre pessoas desalojadas realizada pela Amnistia Internacional do Reino Unido – examina a lei, as políticas e as práticas relativas às pessoas em situação de sem-abrigo a partir de uma perspetiva de direitos humanos, e traça um quadro sombrio da dimensão e da profundidade do problema.

Segundo as estatísticas oficiais do governo, 270 mil pessoas enfrentam atualmente a situação de sem-abrigo em Inglaterra, com o relatório da Amnistia a destacar como as principais medidas políticas resultaram na negação de habitação a milhares de pessoas, muitas das quais ficando sem alojamento por um longo período, sofrendo, depois, de doenças físicas e mentais, bem como de dependência de drogas e de álcool.

A Amnistia está a apelar ao governo britânico para cumprir as suas obrigações internacionais em matéria de direitos humanos, derrubando as barreiras implementadas que negam às pessoas o seu direito à habitação condigna e construa urgentemente mais habitação social.

Para Sacha Deshmukh, diretor executivo da Amnistia Internacional do Reino Unido, “é muito conveniente para o governo que se assuma que uma pessoa se encontra em situação de sem-abrigo devido a circunstâncias pessoais, contudo, a situação de sem-abrigo resulta de uma falha governamental sistemática”, lamentando que não exista “habitação suficiente para a crescente necessidade da população”.

“É muito conveniente para o governo que se assuma que uma pessoa se encontra em situação de sem-abrigo devido a circunstâncias pessoais, contudo, a situação de sem-abrigo resulta de uma falha governamental sistemática”

Sacha Deshmukh

O membro da secção britânica da Amnistia considera que as “regras rígidas e subjetivas resultam regularmente em que as pessoas mais necessitadas são as menos propensas a serem ajudadas.

“Muitas imigrantes sofrem restrições por terem esse estatuto e são excluídos, tanto dos apoios públicos, como da autorização para trabalhar. Assim, são incapazes de se autossustentar e, sendo-lhes negado apoio habitacional, acabam inevitavelmente por dormir ao relento. O sistema está viciado contra elas”, sublinhou, alertando que “se a habitação não for legitimamente reconhecida como um direito humano básico e legal, não existe forma de responsabilizar o governo pelas suas lamentáveis falhas”.

 

Sondagem identifica causas do desalojamento

Novos dados de uma sondagem encomendada pela Amnistia Internacional do Reino Unido e conduzida pela Savanta ComRes constataram que mais de metade (54%) dos adultos do RU assume que as pessoas estão numa situação de desalojamento por circunstâncias individuais, tais como problemas de relacionamento ou dependência de drogas.

Uma percentagem muito mais baixa (36%) considerou que a falha do governo em providenciar habitação condigna é a causa mais provável para o desalojamento. No entanto, a Amnistia está a desenvolver uma campanha para mudar a opinião pública e informar as pessoas de que os casos prolongados de pessoas em situação de sem-abrigo são resultantes de uma falha governamental sistemática em concretizar o direito a uma casa segura, independentemente da forma como uma pessoa possa ter-se encontrado nessa situação originalmente.

De realçar ainda que, quase um em cada três (31%) adultos no Reino Unido disseram estar preocupados por poderem vir a fazer couchsurfing ou a habitarem alojamentos temporários nos próximos 5 anos, como consequência dos custos da habitação, enquanto dois em cada cinco (41%) dizem estar preocupados com que isso ocorra a alguém que conhecem.

 

Critérios restritivos de acesso a habitação provocam tripla exclusão

Uma vez que os recursos são tão inadequados à escala das necessidades, foram implementados pelas autoridades vários obstáculos para limitar o acesso a habitação. Pessoas em busca de habitação são excluídas através de uma série de critérios de elegibilidade restritivos.

Sob o sistema atual, as autoridades locais britânicas não têm um dever de providenciar habitação às pessoas se estas se enquadrarem num de três grupos: se estiverem sujeitas a restrições de imigração (sem recurso a fundos públicos); Se não forem reconhecidas como estando num grupo de necessidade prioritária de habitação; se forem consideradas ‘intencionalmente’ pessoas em situação de sem-abrigo.

O relatório é altamente crítico do conjunto destas três condições de acesso, que violam as obrigações internacionais de direitos humanos do Reino Unido.

 

Restrições à imigração e os riscos de abuso e exploração

O relatório critica particularmente o facto de as autoridades locais não exercerem o dever de providenciar apoio às pessoas em situação de sem-abrigo que se encontram sujeitas a controlo migratório quando têm – ou são tratadas como tendo – um estatuto ‘sem recurso a fundos públicos’.

Os migrantes em situação irregular que integram este grupo estão frequentemente entre os mais vulneráveis, assim como mais suscetíveis de estar entre as pessoas mais pobres que sofrem situações de sem-abrigo, já que não têm direito a dinheiros públicos, sendo muitas vezes incapazes de trabalhar e não lhes é permitido arrendar alojamento. Uma vez que a maioria dos albergues e outras formas de alojamento temporário estão ligadas ao acesso a benefícios de segurança social estatais, são-lhes automaticamente negados. Para muitas pessoas nesta situação, as únicas opções que restam são os arrendamentos informais, quando comportáveis, como o couchsurfing ou dormir ao relento, situações que, todas elas, as colocam sob elevado risco de abuso e exploração.

 

Apelo à abolição da condição de pessoa com “necessidade prioritária”

A Amnistia Internacional do Reino Unido apela à abolição da atual condição de “necessidade prioritária”, porque, atualmente, é exigido às autoridades locais que avaliem se alguém que é identificado como elegível para apoio de emergência é considerado como estando na categoria de “necessidade prioritária”.

Esta determinação de necessidade prioritária é um bloqueio significativo para muitos, especialmente para pessoas que são classificadas como “solteiras em situações de sem-abrigo” ou aquelas sem crianças dependentes.

Pelo menos seis mulheres entrevistadas pela secção britânica da Amnistia Internacional tiveram as suas crianças tomadas ao cuidado dos serviços sociais, sendo, assim, consideradas “solteiras em situação de sem-abrigo” – e, portanto, sem necessidade prioritária. Sem um lugar seguro para viver, era-lhes impossível obter trabalho, encontrar alojamento e recuperar as suas crianças.

Mandy, cujos filhos foram acolhidos por familiares, disse à Amnistia que, “o que tornou ainda pior a experiência traumática, foi ser classificada como uma mulher solteira em situação de sem-abrigo. Por conseguinte, eu não era de ‘necessidade prioritária’ e demorou mais tempo a ser-me atribuído um lugar onde me sentisse segura. Isto prolongou o período de separação dos meus filhos.”

 

A urgência de eliminar o termo “intencionalmente em situação de sem-abrigo”

A Amnistia Internacional do Reino Unido também está a apelar a que a prática de denominar alguém de “intencionalmente em situação de sem-abrigo” seja eliminada. Atualmente, uma pessoa poder ser considerada como estando “intencionalmente” em situação de sem-abrigo por vários fundamentos, muitas vezes altamente subjetivos. Estes incluem: ser avaliada como não tendo pagado a renda de alojamento ou as prestações de hipoteca, apesar de se considerar que seria capaz de o fazer; ser avaliada como tendo entregado voluntariamente a habitação, quando é considerado que teria sido razoável continuar a ocupar a propriedade; ser avaliada como tendo recusado aceitar alojamento “adequado” oferecido pelas autoridades.

Outros motivos incluem ser expulso devido a comportamento antissocial ou ter perdido a sua casa devido a uma pena de prisão.

Várias pessoas entrevistadas disseram à Amnistia Internacional do Reino Unido que sentiram não ter escolha senão viver em alojamento temporário de baixa qualidade, porque se o recusassem seriam declaradas “intencionalmente em situação de sem-abrigo” e as autoridades locais já não seriam responsáveis por lhes encontrar habitação adequada.

Pearl, uma das muitas pessoas que se encontra nessa situação, disse à Amnistia que o seu alojamento “é extremamente inadequado”. “As condições de habitação estão a afetar-me mentalmente. Há baratas, o quarto é bolorento e húmido. Ao telefone, disseram-me que, se eu recusasse a habitação, seria considerada intencionalmente em situação de sem-abrigo… que eu própria me tinha feito sem habitação”.

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