23 Março 2021

No novo relatório divulgado hoje, a Amnistia Internacional denuncia a forma como as forças de segurança libanesas têm cometido brutais violações de direitos humanos contra refugiados sírios que foram detidos, muitas vezes arbitrariamente, por acusações relacionadas com terrorismo, empregando algumas técnicas de tortura que são usadas nas prisões mais conhecidas da Síria.

O relatório da Amnistia, I wish I would die: Syrian refugees arbitrarily detained on terrorism- related charges and tortured in Lebanon, documenta uma série de violações cometidas sobretudo por serviços secretos militares libaneses contra 26 detidos, incluindo violações no direito a um julgamento justo bem como tortura – entre os quais, espancamentos com barras de metal, cabos elétricos e canos de plástico. Os detidos também descreveram terem sido pendurados/as de pernas para o ar, em posições de esforço, por períodos prolongados de tempo.

“Não há dúvida de que membros de grupos armados responsáveis por abusos de direitos humanos devem ser responsabilizados pelas suas ações, mas a violação flagrante pelas autoridades libanesas do direito de refugiados sírios a procedimentos justos fez da justiça uma paródia. Em cada etapa, desde a detenção até ao interrogatório, à prisão e à acusação em julgamentos injustos, as autoridades libanesas desrespeitaram totalmente o direito internacional de direitos humanos.”

Marie Forestier, investigadora sobre direitos de refugiados/as e migrantes na Amnistia Internacional

“Este relatório é um exemplo do tratamento cruel, abusivo e discriminatório das autoridades libanesas a refugiados sírios detidos sob suspeita de acusações relacionadas com terrorismo. Em muitos casos, refugiados que escaparam a guerra, repressão impiedosa e tortura generalizada deram por si arbitrariamente detidos e mantidos incomunicáveis no Líbano, onde enfrentam muitos dos mesmos horrores empregues nas prisões sírias,” disse Marie Forestier, investigadora sobre direitos de refugiados/as e migrantes na Amnistia Internacional.

“Não há dúvida de que membros de grupos armados responsáveis por abusos de direitos humanos devem ser responsabilizados pelas suas ações, mas a violação flagrante pelas autoridades libanesas do direito de refugiados sírios a procedimentos justos fez da justiça uma paródia. Em cada etapa, desde a detenção até ao interrogatório, à prisão e à acusação em julgamentos injustos, as autoridades libanesas desrespeitaram totalmente o direito internacional de direitos humanos.”

O relatório documenta os casos de 26 refugiados sírios, incluindo quatro crianças, detidos no Líbano sob acusações relacionadas com terrorismo entre 2014 e 2021. Baseia-se em entrevistas com antigos detidos e outros atuais, advogados e uma análise de documentos legais.

Desde 2011, centenas de refugiados sírios foram detidos no Líbano, com frequência arbitrariamente, com base em acusações falsas relacionadas com terror ou, por vezes, relacionadas com a sua pertença a grupos armados.

 

Tortura generalizada e outros maus-tratos

Em 25 dos 26 casos documentados pela Amnistia Internacional, refugiados relataram serem torturados, quer durante o interrogatório quer sob detenção. Isto ocorreu com maior frequência no centro dos serviços secretos militares de Ablah, no Gabinete Geral de Segurança em Beirute ou no Ministério da Defesa.

Dois dos sobreviventes de tortura tinham apenas 15 e 16 anos de idade na altura. Pelo menos quatro homens disseram que foram tão espancados que perderam a consciência, e dois tinham dentes partidos.

Os detidos disseram ter enfrentado algumas das mesmas técnicas de tortura usadas rotineiramente em prisões sírias, tais como o “tapete voador” (ser amarrado a uma tábua dobrável), “shabeh” (quando um indivíduo é suspenso pelos pulsos e espancado), ou “balango”, que envolve um indivíduo ser suspenso durante horas com os seus pulsos amarrados atrás das costas.

“Eles espancaram-nos nas costas com tubos de plástico da casa de banho. As minhas costas tinham feridas abertas que começaram a piorar mesmo muito. No final, havia vermes dentro das minhas feridas.”

Bassel

Bassel, um ex-detido sírio, disse à Amnistia Internacional que após a sua transferência para a prisão de Rihaniyyeh, ele foi tão espancado todos os dias durante três semanas, que as suas feridas apodreceram. “Eles espancaram-nos nas costas com tubos de plástico da casa de banho. As minhas costas tinham feridas abertas que começaram a piorar mesmo muito. No final, havia vermes dentro das minhas feridas”, disse ele.

Ahmed, que descreveu o seu suplício sob detenção no centro dos serviços secretos militares de Ablah, disse que foi espancado nos genitais até perder a consciência.

Outro refugiado sírio disse que um agente de segurança o feriu tanto ao golpear os seus genitais que ele urinou sangue durante vários dias. Enquanto lhe batia, o agente dizia: “Estou a bater-te aqui para que não possas trazer mais crianças a este mundo, para que não contaminem esta comunidade.”

Vários detidos disseram que as forças de segurança libanesas fizeram referência à sua oposição ao presidente Bashar al-Assad enquanto os espancavam, indicando que os ataques podem ter sido politicamente motivados.

Karim, um jornalista que esteve detido durante oito dias no Gabinete Geral de Segurança de Beirute, disse que os seus interrogadores perguntaram se ele apoiava o presidente sírio e, quando ele disse que não, bateram-lhe com mais força.

Os detidos também descreveram serem mantidos em duras condições. “Eu fiquei três dias de seguida, noite e dia, de pé no corredor, algemado e vendado… Tínhamos de implorar para ir à casa de banho e por água. Eles davam-nos comida uma vez por dia. Havia agentes a guardar-nos para que não nos sentássemos nem dormíssemos. Se alguém tentava, eles forçavam-no a voltar a estar em pé”, disse um homem.

Não existiram investigações a nenhuma das alegações de tortura que a Amnistia Internacional documentou, mesmo em casos em que detidos ou respetivos/ advogados disseram ao juiz terem sido torturados. Em alguns casos, agentes de segurança requereram o adiamento de sessões de tribunal, levando à perda de cicatrizes de espancamentos ou outras formas de tortura.

A Amnistia Internacional documentou os maus-tratos de duas mulheres que foram assediadas sexualmente e atacadas verbalmente sob detenção. Uma mulher foi forçada a ver enquanto agentes de segurança torturavam o seu filho, e outra foi forçada a ver o seu marido ser espancado.

O Líbano aprovou uma lei anti-tortura em 2017, mas falhou consistentemente em implementá-la e as queixas de tortura raramente chegam a tribunal.

“As autoridades libanesas devem implementar de imediato a sua própria lei anti-tortura e respeitar as suas obrigações sob o direito internacional de direitos humanos. Devem garantir que as alegações de tortura são efetivamente investigadas e que aqueles responsáveis por estes abusos horrendos são responsabilizados”, disse Marie Forestier.

 

Violações de julgamento justo

A todos os 26 detidos cujos casos foram documentados pela Amnistia Internacional, foi negado acesso a um advogado durante o interrogatório inicial, em violação das próprias leis do Líbano e da lei e dos padrões internacionais. Isto prejudicou a sua capacidade para se defenderem ou para contestarem a sua detenção. Após a detenção, relataram com frequência terem tido que esperar várias semanas para comparecer perante um juiz de instrução e, em nove casos, os julgamentos foram atrasados até dois anos, violando o direito internacional.

Em muitos casos, os juízes basearam-se sobretudo em confissões obtidas sob tortura ou em provas de informantes não confiáveis, e as condenações foram suportadas em acusações vagas e excessivamente amplas relacionadas com terrorismo. Pelo menos 14 detidos disseram à Amnistia que ‘confessaram’ crimes que não cometeram após serem torturados ou ameaçados.

Em 23 dos casos documentados, os detidos– entre os quais duas crianças – foram julgados perante tribunais militares, violando padrões internacionais contra os julgamentos de civis perante tribunais militares.

Em pelo menos três casos, foram emitidas – e num caso executadas – ordens para deportar à força estes detidos para a Síria, em violação do princípio de não repulsão à luz do direito internacional, que proíbe os estados de enviar alguém de volta para um lugar onde exista risco real de graves violações de direitos humanos.

A Amnistia Internacional apela às autoridades libanesas para que garantam que é concedido a todos os detidos sírios um julgamento justo que se enquadre nos padrões internacionais. Também devem acabar urgentemente com a prática de julgar civis em tribunais militares.

Em 14 dos casos documentados, a Amnistia Internacional descobriu que acusações relacionadas com terrorismo contra refugiados sírios foram feitas com fundamentos discriminatórios, incluindo filiações políticas. Em nove casos, simplesmente expressar oposição política ao governo sírio foi considerado prova para justificar condenações por acusações de “terrorismo”.

Um conjunto de sírios que viviam no norte do Líbano foi preso com base no seu envolvimento real ou percebido na batalha de Arsal em 2014 – quando membros da Frente al-Nusra e o grupo armado Estado Islâmico atacaram o exército libanês e sequestraram 16 membros das forças de segurança. A batalha de Arsal terminou com um acordo de cessar-fogo que permitiu a milhares de combatentes da Frente al-Nusra e suas famílias regressarem a Idlib, na Síria.

Os casos analisados também incluíram um conjunto de mulheres sírias detidas em relação com as alegadas atividades dos seus parentes masculinos, ou de forma a pressionar os parentes masculinos a confessarem ou a entregarem-se.

 

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