23 Abril 2012

“Não trabalhámos o suficiente com as comunidades em risco”, afirmou Teresa Morais, Secretária de Estado dos Assuntos Parlamentares e Igualdade, em jeito de conclusão sobre o trabalho feito em Portugal para a erradicação da prática da Mutilação Genital Feminina (MGF). Acrescentou: até agora “sensibilizámos, formámos e advogámos”, mas a MGF continua a ser “uma realidade mal conhecida do ponto de vista quantitativo e mal estudada do ponto de vista académico”.

Afirmações proferidas na sessão de abertura da conferência Vozes e Rostos: A Arte pelo Fim da Mutilação Genital Feminina, que decorreu esta tarde na Fundação Calouste Gulbenkian, promovida pela Amnistia Internacional Portugal e pela Associação para o Planeamento da Família, parceiros na Campanha Europeia End FGM (Female Genital Mutilation) em Portugal.

O mote para a conferência foi dado pelos dois vestidos criados pela artista plástica brasileira Adriana Bertini, feitos a partir pétalas de rosa, de papel, que contêm assinaturas recolhidas em toda a Europa no âmbito de uma petição promovida pela Amnistia Internacional. O objetivo da petição era alertar as instituições europeias para a necessidade de adotar uma estratégia comum para pôr fim à MGF. Uma necessidade confirmada por Edite Estrela, Eurodeputada, Vice-Presidente da Comissão dos Direitos da Mulher e Igualdade de Género, que referiu que “no seio da União Europeia há países onde esta prática é crime – como Portugal – e outros onde não é”. Daí a necessidade de criação de uma Diretiva europeia, que seja depois transposta para a legislação dos Estados-membros, acrescentou. “Houve o compromisso de apresentar essa iniciativa legislativa, mas continuamos à espera“, concluiu a Eurodeputada.

 

Mudar comportamentos

Adriana Bertini espera que os dois vestidos que concebeu, de uma mãe e da sua filha, “passem a ser objeto de diálogo e de discussão”, com o objetivo último de “promover a mudança de comportamento”. São também estes os objetivos da Amnistia Internacional e da Associação para o Planeamento da Família, que com a apresentação dos vestidos e a conferência que se seguiu deram um forte contributo para o desenvolvimento em Portugal da luta contra a MGF. Perante uma sala cheia, Teresa Morais, Secretária de Estado dos Assuntos Parlamentares e Igualdade, afirmou que, apesar de não se conhecer de forma precisa esta realidade, a “presença da mutilação genital feminina em Portugal é tida como garantida”.

Afirmou ainda que está em curso o II Programa de Ação para a Eliminação Genital Feminina e que existe um Grupo de Trabalho Inter-sectorial que acompanha esta realidade. Das cinco medidas propostas no Programa de Ação [refira-se: Medida 1 – Sensibilizar e Prevenir; Medida 2 – Apoiar e Integrar; Medida 3 – Formar; Medida 4 – Conhecer e Investigar e Medida 5 – Advogar], a Secretária de Estado referiu: “Não deixando de sensibilizar e informar, porque estas são atividades que devem ser permanentes, devemos dar um passo para conhecer melhor esta realidade”. Para tal referiu que foi criado um sistema que permite registar os casos de MGF detetados no Serviço Nacional de Saúde e pela Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Risco. Referiu ainda que vão decorrer reuniões com três Associações e Organizações que trabalham esta temática e que há apoio financeiro para projetos de associações que trabalhem com as vítimas, nas comunidades.

Foi este último trabalho que foi defendido de forma particular por Fatumata D’jau Baldé, Presidente do Comité para o Abandono das Práticas Nefastas à Saúde da Mulher e Criança da Guiné Bissau, que viajou para Portugal para participar no evento. Conhecida no país pela luta que desenvolve há vários anos pelo fim da MGF, defende que têm de ser os elementos da própria comunidade a dar a cara pelo fim desta prática, “para que o trabalho feito não seja entendido como aculturação por parte do Ocidente”. Defendeu, por isso, que as organizações não governamentais portuguesas trabalhem com as comunidades, levando pessoas da própria comunidade. Acrescentou ainda que é fundamental que este trabalho seja feito, porque há em Portugal guineenses da Guiné Bissau e da Guiné Conacri, países onde a MGF é prática, e que estes continuam a mutilar as suas filhas, em Portugal ou em viagens ao país de origem. Por último, Fatumata Djau Baldé recordou a sua própria história, quando aos nove anos de idade a mãe a levou para a cidade para ser mutilada. “Apesar de terem passado já quase quatro décadas, cada vez que me refiro a esta prática fico muito emocionada. Não só por recordar o que passei, mas por saber que apesar de termos tido já algum resultado, ainda há muito por fazer”.

O mesmo foi defendido pela jornalista Sofia Branco, que fechou a conferência. “Acompanho esta realidade há 10 anos. É verdade que em termos de discurso muito mudou, mas na prática continuam a faltar várias coisas”, disse. Referiu uma vez mais a aproximação à comunidade e acrescentou a necessidade de educar as crianças e jovens, nas escolas, para esta realidade, sendo este ainda um local privilegiado para detetar casos de MGF. O mesmo foi defendido por Fatumata D’jau Baldé: “se eu não tivesse estudado, não sei se poderia liderar este processo na Guiné Bissau. Para mudarmos comportamentos, nada melhor que sermos escolarizados”. Por último Sofia Branco disse faltar o interesse da comunicação social, como se pôde comprovar pela adesão ao evento: “os Direitos Humanos e os direitos das mulheres são quase uma questão de iniciativa privada dos jornalistas”, afirmou. Ironicamente, Adriana Bertini referiu que no Brasil os meios de comunicação social mostraram muito interesse pelos dois vestidos e que numa publicação de São Paulo saiu a informação sobre o evento de hoje.

A conferência Vozes e Rostos contou ainda com a presença de Catarina Furtado, enquanto Embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População, que assistiu, numa das suas viagens aos países africanos, a algumas das consequências da MGF: “Aminata tinha uma fístula obstétrica” e “Fatu morreu durante o parto, ela e o seu bebé”, contou. Mais uma das muitas mortes evitáveis em países em desenvolvimento, lamentou a apresentadora de televisão. Já Mónica Ferro, Deputada Coordenadora do Grupo Parlamentar Português sobre População e Desenvolvimento, referiu que a MGF é um dos temas acolhidos por este grupo, mas conclui que “mentiria se dissesse que todos os deputados e deputadas estão informados e sensibilizados para a questão”. A deputada referiu ainda que hoje está ultrapassada a discussão sobre a MGF ser um direito cultural. “É uma violação dos direitos humanos das mulheres. Põe em causa a integridade física, põe em causa a sua saúde reprodutiva e até capacidade de sociabilizar. Para nós isto ultrapassou o domínio do cultural”.

A enriquecer ainda mais esta conferência estiveram os guineenses Edson Incopté e Rita Ié, da AEGBL-Associação de Estudantes da Guiné-Bissau em Lisboa, que declamaram poemas, porque, referiu Edson Incopté: “a poesia é uma arma por todas as causas que consideramos justas” e “como guineense, não podia ficar indiferente a esta questão da MGF. Não podia fugir dela, porque tenho casos na família”. Rita Ié deixou ainda um desejo, que foi partilhado por todos os oradores e pelas pessoas presentes: “esperamos um dia poder falar sobre isto como algo do passado”.

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