9 Janeiro 2015

 

O ataque ao jornal satírico francês Charlie Hebdo deixou o mundo em choque e jornalistas, satiristas e cartoonistas foram especialmente abalados, até ao mais ínfimo do seu ser. A forma como se ergueram logo no dia seguinte para escrever de novo, para desenhar de novo, e a resposta solidária nas ruas a que se assistiu pelo mundo fora, fazem crer que a recusa às mordaças é firme e inequívoca – expressa neste artigo o redator da Amnistia Internacional Conor Fortune. Disso depende a liberdade de todos.

 “Posso escrever os versos mais tristes esta noite”: assim começa um dos poemas de Pablo Neruda. Tenho de admitir que me é muito duro escrever estas palavras agora.

Como jornalista, debato-me para pôr a proverbial caneta no papel, na tentativa de alinhar alguns pensamentos, pôr alguma ordem no aparente caos e tirar algum significado do que aconteceu [na quarta-feira, em Paris].

E é mesmo preciso fazê-lo.

Todas as pessoas que conheço ficaram em choque com o assassínio horrível de 12 pessoas no ataque à redação do jornal satírico francês Charlie Hebdo. Muitos profissionais criativos – jornalistas, satiristas, cartoonistas e outros – foram abalados, até ao mais ínfimo de si, por uma mistura de raiva, tristeza e medo.

Porém, logo no dia seguinte, ergueram-se em desafio, voltaram à luta. Continuam a escrever, a fazer a sátira, a desenhar. Como o fez Dave Brown, de forma tão incisiva, nas páginas do diário britânico The Independent, estão todos a mostrar o dedo àqueles que tentam silenciar a imprensa e cercear a liberdade de expressão.

À sua maneira, tantas e distintas, continuam a tentar criar algo novo e com significado; transmitir conhecimentos novos ou inspiração a outros; iluminar até os cantos mais escuros da existência humana e questionar e provocar-nos nas questões e emoções que nos são mais íntimas.

E é isso mesmo que têm de fazer. A liberdade de expressar aquilo em que acreditamos, as nossas opiniões e o nosso entendimento do mundo está no cerne do que é mais maravilhoso no ser humano.

Negar às pessoas este direito – seja de que forma for – é sempre um ato que esmaga, que reduz e que desumaniza.

Nem todas as pessoas partilharão sempre as mesmas opiniões, mas nenhuma troca de ideias pode jamais conduzir a um banho de sangue.

O direito à liberdade de expressão é inequivocamente essencial para a concretização e exercício de todos os direitos humanos. Concedamos, não é um direito absoluto: há algumas circunstâncias, muito limitadas circunstâncias, em que a liberdade de expressão pode ser restrita – é o caso do “discurso do ódio” ou do incitamento à discriminação.

Mas a lei internacional de direitos humanos não permite nenhumas limitações à liberdade de expressão apenas porque outros podem achar algo ofensivo, nem tão pouco porque as autoridades possam entender que algo coloca um risco para a ordem pública.

No rescaldo de um ataque tão terrível, há o risco de as autoridades se apressarem a adotar novas medidas antiterrorismo ou impor restrições que terão um impacto negativo no direito de liberdade de expressão e em outros direitos, liberdades e garantias fundamentais.

Há também frequentemente o risco, provocado pelo medo ou por outras razões, de uma reação radicalizada, conducente ao exacerbar da discriminação, de preconceitos, e à fractura das sociedades nas linhas da religião ou da etnia. Infelizmente, já assistimos a alguns incidentes isolados de ataques a mesquitas. E não podemos permitir que tal se agrave.

Como o Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos tão bem frisou na quarta-feira, após as mortes de Paris, “o Estado de direito tem de nos unir a todos a fazermos face contra tais ataques terroristas”. “O Estado de direito exige que tentemos deter e punir os que são diretamente responsáveis por levarem a cabo, planearem e serem cúmplices em crimes específicos, e não atribuir culpas a nenhum grupo mais amplo”.

É encorajador ver a união que as pessoas têm demonstrado na esteira do ataque ao Charlie Hebdo, com multidões em França e por todo o mundo a recusarem ser intimidadas ao silêncio. Gente de todas as origens e, claramente, de todos os credos, condenaram as mortes e defenderam a liberdade de expressão.

Os jornalistas e os cidadãos em geral resistiram à potencial tentação de se autocensurarem e amordaçarem quaisquer demais críticas ou debate em relação ao ataque.

Em vez disso, as pessoas encheram as ruas aos milhares, expressando solidariedade e dando um renovado fôlego de vida aos jornalistas, aos satiristas e aos cartoonistas que recusam ser amordaçados pelo medo e que continuarão a fazer o seu trabalho após o ataque de Paris.

Eu, no que me toca, espero que eles continuem a fazê-lo – a nossa liberdade coletiva depende disso mesmo. #JeSuisCharlie

 

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