3 Abril 2017

Os dois nasceram em Portugal, com um mês de diferença. Ambos começam a dar os primeiros passos e a ver nascer os primeiros dentes. Porém, a vida na barriga das mães foi bem diferente. O Miguel teve uma gravidez tranquila, sem sair de Portugal. A mãe de Mohamed fugiu da guerra na Síria e enfrentou o mar num barco sobrelotado. Uma viagem perigosa para que hoje, e para sempre, os dois possam ser iguais.

 

Por Cátia Silva, Amnistia Internacional Portugal

“Parabéns a você, nesta data querida, muitas felicidades, muitos anos de vida”. A música vai cantar-se em nossa casa daqui a um mês, quando o Miguel fizer um ano. Na casa de Mohamed a festa aconteceu no último fim de semana, a 1 de abril, quando ele completou o primeiro ano de vida. Quis o destino que nascesse naquele que é conhecido como o Dia das Mentiras, o que deixa antever uma vida cheia de piadas à volta do seu aniversário. Hoje, porém, este dia é ainda mais especial, porque Mohamed foi o primeiro bebé a nascer entre os refugiados relocalizados em Portugal ao abrigo do programa de Relocalização da União Europeia.

Para o pequeno Mohamed estes pormenor não é de todo importante, entre brincadeiras, prendas de anos e mimos dos papás. Mas é no irmão dele que penso hoje. Como terá o pequeno Yehia reagido quando bateram palmas ao irmão? Para que se perceba, importa regressar ao dia em que o conheci, no início de 2016, tinha ele próprio completado um ano há poucos dias. Encontrámo-nos em Ferreira do Zêzere, onde a família foi acolhida, na Escola EB2,3/S Pedro Ferreiro. O pai, Zakaria, e a mãe, Abir, tinham aceite o convite para uma sessão de sensibilização para a questão dos refugiados promovida pela Amnistia Internacional. A fotografia do início deste texto foi tirada nessa altura.

A sala de aula encheu-se de alunos e Zakaria e Abir sentaram-se à frente para explicar a perigosa viagem entre a Síria e Portugal. Yehia dormia tranquilamente ao colo de uma das pessoas que trabalha no Centro que acolheu a família, mas acordou a meio. Olhou em volta para tentar perceber o que se passava e continuou, como qualquer criança, sossegado e ao mesmo tempo com vontade de dar os primeiros passos. No final da sessão, a plateia aplaudiu, comovida, a coragem dos pais. E foi aí que Yehia chorou convulsivamente. A explicação era simples, mas inesperada: “Não gosta de palmas, porque lhe lembra o barulho das bombas a cair na sua cidade”.

Botao Noori

A fuga da Síria até Ferreira do Zêzere

Zakaria e Abir tinham uma “vida estável” em Deir el-Zor, uma cidade na parte oriental da Síria, contam-nos pouco antes de começar a sessão na Escola Pedro Ferreiro. Ele trabalhava como mecânico de aviões e ela estudava línguas no ensino secundário. Os dois tinham ainda uma loja de telemóveis. Em 2014, tudo mudou, quando a zona onde moravam foi tomada pelo grupo armado autoproclamado Estado Islâmico. “Eles chegaram e impuseram novas regras”, começa a explicar Zakaria. “Todos os homens tinham de deixar crescer a barba e havia uma vestimenta obrigatória para os homens e para as mulheres. Havia regras para tudo”.

“Quem não se vestir como eles querem e violar as normas em relação à roupa, paga em ouro e é chicoteado”, continua Zakaria. “Uma grama de ouro por violação”. É o que acontece, por exemplo, às mulheres que mostram a cara quando é obrigatória a burqa sempre que saem de casa. Abir raramente saía. Ficava em casa com Yehia, até porque não o queria pôr na escola. Zakaria explica que o Estado Islâmico controla as escolas e que a educação que transmitem é a do fundamentalismo. Conta ainda que quando Yehia nasceu não pôde sequer ver o filho, porque no hospital só podem entrar mulheres.

Fugir da Siria começava a ser uma necessidade cada vez mais forte, mas sair da cidade era proibido e demasiado perigoso. “Pensávamos sempre: ‘se Deus quiser as coisas vão melhorar’”, diz Zakaria. Mas não melhoraram. Em 2015 Abir estava grávida e não havia trabalho, nem instalações ou cuidados médicos. Além disso, era comum o Estado Islâmico fazer recrutamento forçado entre os homens. Tornou-se inevitável. Após mais de um ano de ponderação, a 15 de novembro de 2015 o casal começou a difícil viagem a caminho da Europa, com um filho ao colo e outro na barriga. Fugiram num grupo de 7 pessoas, todos com crianças. Na bagagem levavam só o essencial para sobreviverem.

Da Síria partiram pelas montanhas em direção à Turquia, sempre a fugir ao Estado Islâmico. Foram cinco dias e cinco noites a andar, contam. Depois embarcaram num barco sobrelotado, onde a água entrava muitas vezes, até chegarem à Grécia. “A decisão mais difícil foi colocar o meu filho e a minha mulher grávida num barco, pois ela não sabe nadar”, diz Zakaria. Também difícil, imaginamos nós, terá sido vender as alianças de casamento para poder pagar aos traficantes a perigosa travessia marítima. Seja como for, conseguiram todos chegar à Grécia sãos e salvos. Registaram-se como refugiados e entraram no Programa de Relocalização da União Europeia.

“Portugal aceitou acolher-vos”. Foi esta a notícia que o casal recebeu depois de um mês de espera na Grécia. “Portugal?”, questionaram… “Não sabíamos nada sobre Portugal”, confessa Zakaria. A família chegou juntamente com outras dezenas de refugiados que aterraram em Lisboa em dezembro de 2015 e a alegria, quando os conhecemos, era evidente. “Estamos seguros, o clima é bom e tudo está bem. Sair da Síria foi difícil… mas obrigado a Portugal pelo que nos tem oferecido”. Agora espera-se que o Miguel e o Mohamed se mantenham para sempre iguais no essencial: nos seus direitos humanos. Aos dois, só há uma palavra a dizer: “Felicidades!”

Artigos Relacionados