22 Dezembro 2014

 

Entrada em vigor do TCA

Ao fim de 20 anos de campanha determinada da Amnistia Internacional e outras ONG, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou de forma bem audível, a 2 de abril de 2013, o Tratado sobre o Comércio de Armas Convencionais (TCA, ATT na sigla em inglês). A 24 de dezembro de 2014, o histórico documento ganha força de lei internacional, com o que se poderá salvar as vidas de milhões de pessoas.

 

O que é o TCA e que diferença irá fazer?

O TCA é um tratado internacional que consagra, pela primeira vez, uma série de regras globais sólidas para travar o fluxo de armas, munições e materiais ou engenhos relacionados com o armamento para países onde se sabe que serão usadas para cometer ou facilitar crimes contra a humanidade, crimes de guerra, genocídio e outras graves violações de direitos humanos. Cada país tem de avaliar se existe o risco de que uma proposta de exportação de armas para outro país seja usada ou se contribuirá para abusos graves de direitos humanos – e, se assim for, essas armas não podem ser fornecidas.

Como é o comércio de armas atualmente?

Os detalhes precisos do comércio global de armas estão frequentemente envoltos em segredo, mas o valor das transferências internacionais de armas convencionais estão estimadas num número que chega atualmente aos 100 mil milhões de dólares anualmente (mais de 81 mil milhões de euros). Em 2010 terão sido na ordem dos 72 mil milhões de dólares.

Somando-lhe os serviços relacionados com os fornecimentos de armas, incluindo a assistência militar e a construção de estruturas militares, este é um negócio na ordem dos 120 mil milhões de dólares por ano.

Hoje em dia há perto de 40 países com capacidades de produção em larga escala de materiais de defesa, e outros 60 países produzem armas a uma escala menor – são mais de metade dos 193 Estados-membros das Nações Unidas que produzem e exportam armas e equipamento militar.

Este comércio de materiais mortais e perigosos não está ainda controlado de forma rígida e cuidadosa, o que se traduz na morte e mutilação de milhões de pessoas, a par de outros abusos de direitos humanos.

Quantas pessoas morrem todos os anos devido às armas?

Estima-se que cerca de meio milhão de pessoas são mortas todos os anos devido a armas de fogo, em campo de batalha, devido à repressão do Estado e na atividade de gangues criminosos.

Muitos outros milhões por todo o mundo morrem porque lhes é negado acesso a cuidados de saúde, a água potável e a alimentos enquanto se encontram em conflitos alimentados pelo debilmente controlado fluxo de armas. Na República Democrática do Congo, por exemplo, é estimado que cinco milhões de pessoas morreram indiretamente devido ao conflito armado desde 1998 no país.

E por cada pessoa que é morta num cenário de conflito ou violência armada, há que considerar também os muitos mais que são feridos, torturados, submetidos a abusos, sujeitos a desaparecimentos forçados, feitos reféns ou que de alguma outra forma veem ser-lhes negado os direitos humanos sob a ameaça de armas.

Este problema é enorme e real, tal como se vê na Síria, no Iraque, na Líbia e no Sudão do Sul. Em muitas partes do mundo, o comércio de armas irresponsável pode destruir, mais tarde ou mais cedo, todos os aspetos da vida e meios de subsistência das pessoas.

Quem é que é especialmente afetado pelo fluxo sem controlo das armas?

As mulheres são particularmente afetadas, de formas que frequentemente não são visíveis nem sequer muito faladas.

Os investigadores da Amnistia Internacional têm reunido histórias de zonas de conflito em países pelo mundo fora onde as mulheres são violadas sob a ameaça de armas. Este é um problema generalizado e, em alguns países, este tipo de violência ocorre em larga escala.

É registado também um efeito desproporcionado nas crianças, jovens e refugiados. Em alguns países, as crianças são recrutadas por forças armadas regulares e por grupos armados e obrigadas a combater.

Quem são os responsáveis por esta situação?

Os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas – Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido – estão entre os maiores comerciantes de armas do mundo. A Alemanha, Israel, Itália, Suécia, África do Sul, Estanha, Bélgica e Ucrânia são também importantes atores no comércio global de armamento.

Os maiores importadores de armas incluem a Índia, o Paquistão, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e outros países na Ásia e no Médio Oriente.

E as empresas privadas, não são também responsáveis?

É verdade que a grossa fatia do comércio mundial de armas é feita por entidades comerciais: empresas que produzem e vendem armas, fornecedores de serviços militares, negociantes e traficantes de armas, assim como aqueles que as transportam e os que financiam a sua produção e a sua compra.

Ao abrigo de dois importantes acordos firmados no seio das Nações Unidas – o Quadro de “Proteção, Respeito e Compensação” para Empresas e Direitos Humanos e o guia de Princípios Orientadores para Empresas e Direitos Humanos –, as empresas têm a responsabilidade de respeitar os direitos humanos independentemente das obrigações em matéria de direitos humanos dos próprios Estados.

Porém, no caso do comércio de armamento, a responsabilidade máximae primeira cabe aos Estados, os quais devem regular aqueles negócios através de um mecanismo de atribuição ou recusa de licenças; e só os Estados podem proibir a produção e comercialização de determinado tipo de armas, consideradas desumanas, e impor embargos e suspensões ao comércio de armas.

O problema crucial é que a conceção e o exercício do cumprimento das leis relativas ao comércio de armas não acompanham a forma como os mercados globais de armas evoluem, e a vontade política dos líderes mundiais para resolver esta questão tem sido extremamente fraca. Infelizmente, tal tem repercussões também na responsabilização dos atores empresariais deste sector.

O TCA é lei internacional?

É-o a partir de 24 de dezembro. Para se tornar vinculativo, o tratado teve de ser ratificado por pelo menos 50 Estados-membros das Nações Unidas – e isto aconteceu a 25 de setembro de 2014, abrindo então a contagem de 90 dias necessários para a entrada em vigor do documento. Até agora, o TCA foi ratificado por 60 países, incluindo cinco dos dez maiores exportadores mundiais de armas: o Reino Unido, a França, a Alemanha, a Espanha e a Itália. Portugal ratificou o Tratado sobre o Comércio de Armas Convencionais a 25 de setembro de 2014, tendo-o assinado a 3 de junho do ano anterior.

Em menos de um ano – desde a cerimónia oficial de assinatura, a 3 de junho de 2013, nas Nações Unidas (na foto) – um número impressionante de 130 países assinaram o tratado, incluindo os 70 que assinaram mas ainda não o ratificaram. Ao longo do último mês, vários países acorreram a a assinar ou fazer o depósito da sua ratificação, antes mesmo de o histórico tratado entrar em vigor. A Amnistia Internacional continua e continuará a fazer pressão para que todos os Governos ratifiquem ou adiram ao TCA posteriormente à sua entrada em vigor, e que o concretizem efetivamente e o mais cedo possível.

O que é a ratificação e a adesão?

A ratificação é o mecanismo legal pelo qual um Estado declara o seu consentimento em ficar vinculado às regras de um tratado. Normalmente este ato é precedido pela assinatura do tratado, antes do início do processo de ratificação do mesmo. O processo pelo qual se faz a ratificação tem dois passos: primeiro, o Estado incorpora as regras do tratado na sua legislação nacional, o que é normalmente feito após a aprovação no Parlamento; depois, o Estado declara formalmente o seu consentimento em cumprir e fazer cumprir as regras do tratado internacional, fazendo o depósito da documentação oficial nas Nações Unidas. Assim que estes dois passos estão dados, o país torna-se Estado-parte do tratado.

Já a adesão constitui uma outra forma de um país declarar o seu consentimento de vinculação ao tratado e trata-se de um mecanismo disponível nos tratados internacionais que já entraram em vigor e continuam a admitir a adesão de Estados-partes. O TCA, por exemplo, fica aberto a novas adesões por qualquer país que o queira integrar após a sua entrada em vigor, a 24 de dezembro de 2014.

O que significa exatamente “ganhar força de lei”?

Esse é o momento em que as regras consagradas no tratado entram em vigor, ganhando força de lei internacional vinculativa para todos os países que ratificaram o documento.

Agora que o TCA entra em vigor, o desafio será garantir a sua correta concretização de forma que nenhum país autorize fornecimentos de armas àqueles que cometem genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e outras graves violações de direitos humanos. Nem tão pouco que algum Estado-parte do tratado ignore fluxos de fornecimento de armamento por parte de negociantes ou traficantes de armas o qual venha a ser utilizado para cometer graves abusos de direitos humanos. A Amnistia Internacional continuará a trabalhar determinadamente para que o TCA se consolide como um mecanismo global de controlo de armas com os direitos humanos como princípio orientador no seu cerne.

E quanto àqueles países que ainda não assinaram nem ratificaram o TCA?

A campanha da Amnistia Internacional não termina aqui e agora. A organização de direitos humanos e ONG parceiras estão a manter a pressão nos países, expondo casos de flagrantes fornecimentos irresponsáveis de armas. E a pressionar os Governos para transporem as regras do TCA para as suas legislações nacionais através da ratificação ou adesão ao tratado. A Amnistia Internacional irá também manter ação no sentido de assegurar que os Estados-partes do tratado o concretizam de forma efetiva e robusta, e manterá uma monitorização atenta sobre a forma como os países o farão.

Os maiores exportadores mundiais de armas já adotaram o tratado nas suas leis?

Cinco dos dez maiores exportadores de armamento – França, Alemanha, Itália, Espanha e Reino Unido – já ratificaram o tratado. Apesar de os Estados Unidos e Israel ainda não o terem ratificado, ambos os países o assinaram. Tem-se registado resistência à assinatura e ratificação por outros grandes produtores de armas, como a China, o Canadá e a Rússia.

Sendo muito importante que todos os maiores exportadores de armas sejam Estados-partes do tratado, é também extremamente significativo que bem mais de metade dos países das Nações Unidas já assinaram o TCA, e mais de um quarto ratificaram o tratado em pouco mais de um ano – e este é um ritmo bastante rápido para um tratado global que incide em matérias de segurança e direitos humanos. A sociedade civil a nível global e os Governos que defendem o histórico tratado continuarão a intensificar a pressão sobre os outros países para que sigam este mesmo caminho.

Quem vai garantir que os Governos respeitam o tratado?

O TCA determina que todos os Governos têm de apresentar relatórios anuais sobre o seu comércio de armas. E os Estados-partes do tratado reunirão regularmente para asseverar que se mantem a pressão, de uns sobre os outros, para monitorizar se estão a agir de forma responsável. Caso um país acuse outro de violar os termos do TCA, pode ser aberto um processo de arbitragem ou mediação. Neste momento, o tratado não está dotado ainda de um mecanismo de verificação independente, mas é possível, em qualquer altura, que o documento seja reforçado através de reformas do seu clausulado.

Pela primeira vez, com o TCA, é estabelecido um padrão internacional que os Governos e a sociedade civil podem usar para responsabilizar aqueles que vendem armas ou munições de forma irresponsável. O tratado tem ainda a capacidade de impedir fluxos de armamento para locais onde as populações são atormentadas com violações de direitos humanos, ao fechar de uma vez por todas algumas das lacunas usadas pelos negociantes e traficantes de armas, assim como por Governos sem escrúpulos.

 
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